31/10/2016 12:22
Rosilene Miliotti¹
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui mais cabeças de gado (212 milhões) do que habitantes (206 milhões), e os pastos para a criação destes animais, somadas às áreas degradadas por esta atividade, ocupam o equivalente a cerca de 25% do território nacional, uma área estimada em 200 milhões de hectares. A pecuária bovina é, historicamente, a maior responsável pelo desmatamento no país, gerando pressão contínua sobre a Amazônia, mas é o Cerrado o bioma mais degradado e ameaçado. Ainda de acordo com o IBGE, a atividade está presente em 75% das propriedades rurais e os estados onde mais se concentram as criações são Mato Grosso, Minas Gerais e Goiás.
O pesquisador e consultor da FASE Sérgio Schlesinger conta que o Brasil produz 14% da carne do mercado global, sendo o maior produtor e o segundo maior exportador de bovino e o maior exportador de frango e de soja. “Somente a soja e o setor de carnes responderam, em 2014, por metade das exportações agropecuárias brasileiras. Entretanto, a sociedade desconhece a realidade do campo e os impactos gerados por essa indústria. No passado, praticamente todos sabiam de onde vinham e como eram produzidos os alimentos. Hoje, com a expulsão das pessoas do campo e o crescimento urbano, não só não sabemos mais a origem como, muitas vezes, escolhemos sem saber o porquê”, critica ele, em trecho do livro “Cadeia Industrial da Carne – Compartilhando ideias e estratégias sobre o enfrentamento do complexo industrial global de alimentos”.
Diana Aguiar, do Grupo Nacional de Assessoria da FASE, ressalta que o livro mostra que organizações como a FASE, mas, sobretudo, os movimentos sociais do campo e outros sujeitos políticos têm se organizado historicamente para lutar contra as violações cometidas por esse setor do agronegócio e resistir a seu avanço. “Por exemplo, os padrões de produção do agronegócio respondem por uma longa lista de problemas, entre eles a submissão dos produtores integrados com contratos injustos, inúmeras notificações de casos de trabalho análogo à escravidão, péssimas condições de trabalho nos frigoríficos, a elevação da emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa, a redução da água disponível para toda a população, a contaminação dos solos e dos rios, prejudicando ou inviabilizando a pesca e a agricultura familiar que produz alimentos diversificados”, cita Sérgio.
O livro apresenta a diversidade de visões e estratégias entre a necessidade de trabalhar a partir do atual cenário de crescente integração vertical da agricultura familiar até apontar a incompatibilidade entre a agricultura familiar e a cadeia industrial. “No limite, a integração do pequeno produtor é o extermínio enquanto agricultura familiar e camponesa. Na cadeia de produção do frango, por exemplo, o produtor familiar recebe por frango engordado, mas isso muitas vezes não paga nem o custo de vida dessas famílias. Elas, na prática, estão pagando para trabalhar”, explica Diana.
Mas, apesar de haver um movimento onde as pessoas da cidade começam a se preocupar com a origem dos alimentos que estão consumindo, não são todos que estão interessados em saber sobre os impactos no campo. “O trabalhador rural é, muitas vezes, um trabalhador integrado a essa cadeia da carne e ao agronegócio. É um desafio lidar com essa contradição”, expõe Diana. Para enfrentar esses impactos, Sergio ressalta que é preciso que a sociedade brasileira se mobilize. “A JBS [Friboi], por exemplo, produz e apresenta a comida no Brasil sem maiores preocupações; enquanto no exterior ela é obrigada a tratar melhor os animais. A sociedade civil europeia e a estadunidense têm mais capacidade de mobilização em torno deste tema do que temos por aqui”, compara.
Política pública para grandes empresas
De acordo com o governo federal, o Brasil é um grande produtor e exportador de carne devido a sua vocação para o agronegócio. Então, por que este setor precisa ser continuamente estimulado? A criação de políticas públicas para o setor, como o empréstimo subsidiado via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), foi determinante para turbinar o mercado nos últimos anos. Fundada em 1953, em Anápolis, Goiás, a JBS foi uma das chamadas “campeãs nacionais” apoiadas pela iniciativa. Antes do “incentivo”, em 2007, a empresa faturava R$ 4 bilhões por ano. Atualmente, líder global na produção de carnes, alcançou, em 2015, uma receita líquida de R$ 163 bilhões.
Além disso, o governo também incentivou que os fundos de pensão das estatais Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Petrobras comprassem ações nas empresas da indústria da carne. Em setembro, a Polícia Federal realizou a operação Greenfield sob a suspeita de que alguns dos administradores dos fundos tenham cometido crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, entre eles, gestão temerária ou fraudulenta. “É importante ressaltar que há uma escolha de política pública. Por que ao invés de incentivar uma agricultura familiar mais diversa, que produz uma alimentação mais saudável e na qual mais pessoas trabalham por hectare, o governo resolveu incentivar empresas que já são extremamente ricas e as suas estratégias de transnacionalização como se isso significasse um ganho do ponto de vista coletivo para o Brasil?”, questiona Diana.
Em maio deste ano, a JBS anunciou a transferência da sua sede para a Irlanda. A escolha do país seria em função da menor carga tributária. Entretanto, de acordo com recente nota emitida pelo BNDES, a reorganização planejada pela empresa iria desnacionalizá-la e, como o banco é dono de 20% da empresa, vetou o plano. Dentro e fora do país, os recursos disponibilizados pelo Banco foram utilizados, em grande parte, para fusões e aquisições de outras empresas. Sergio explica que a concentração de mercado nas mãos de poucos fornecedores, assim como a possível formação de oligopólios, pode acarretar também no aumento dos preços para os consumidores, em nível nacional e até global. “O poderio econômico dessas empresas se traduz ainda em poder político, assegurando a elas legislação e políticas governamentais favoráveis a sua contínua expansão e concentração”, analisa. Para Diana, com os sinais já dados pelo atual governo, a tendência é piorar. “As políticas voltadas ao apoio à agricultura familiar, e que de alguma forma apontavam em outra direção, foram as primeiras a serem suprimidas”, lamenta.
Alimento como questão cultural
Sergio explica que embora a compra de carne esteja historicamente ligada ao nível de renda, o consumo mundial por habitante indica a existência de questões culturais e de localização da produção de carne. “Em 2014, a Índia, com sua população de 1,3 bilhão de habitantes, consumiu 3,7 milhões de toneladas, enquanto os Estados Unidos, com 319 milhões de pessoas, consumiram 14 milhões de toneladas”, compara.
Para Diana, a transformação dos sistemas produtivos e do modelo de desenvolvimento não vai se dar via boicote ou escolha de consumo. “As pessoas em primeiro lugar comem o que podem. São poucos os que podem escolher o que querem comer. Uma minoria faz essa escolha de forma consciente, por motivações sociais e ambientais. Não estou dizendo que todo mundo tenha que se tornar vegetariano, mas se quisermos pensar no consumo a partir dos princípios de justiça, para que todas as pessoas do planeta tenham o direito a consumir como é o consumo per capita do brasileiro ou do alemão, isso seria insustentável”, alerta.
Diana destaca ainda que todos têm o direito de consumir carne bovina, suína ou de frango, mas que as culturas alimentares são historicamente, ricas por causa de sua diversidade e, estão sendo homogeneizadas a partir de um padrão ocidental que coloca a carne no centro da alimentação. Países onde o hábito alimentar de consumo de carne não era tão importante, agora promovem esse como um ideal de alimentação. “Por um lado, não devemos dizer que as pessoas que não consumiam carne não têm o direito de consumir. Da mesma maneira, não devemos promover esse padrão como algo globalizado. Temos que valorizar a diversidade alimentar e entender que esse padrão de consumo que existe no ocidente é insustentável e não deve ser tomado como referência”.
Sobre o livro
Em setembro de 2015, movimentos do campo, organizações sociais e sindicais e representantes de universidades brasileiras, dos Estados Unidos, da Alemanha e do Paraguai participaram da oficina² “Cadeia Industrial da Carne”, realizada no Rio de Janeiro, promovida pela FASE, pela Rede de Integração dos Povos (REBRIP), pela Fundação Heinrich Boll Brasil e Institute For Agriculture e Trade Policy (IATP).
O objetivo do evento foi compartilhar ideias e estratégias de enfrentamento ao complexo industrial global da carne e de alimentos. A proposta foi construída a partir da percepção de que esse setor tem intensificado a concentração do poder corporativo e causado graves impactos na vida de agricultores familiares. O tema também foi relacionado a outras questões como as mudanças climáticas, o uso do solo e a defesa dos modos de vida de povos tradicionais.
O livro, resultado da oficina, tem como referência o conteúdo dos debates realizados durante o encontro. “Esperamos que a publicação sirva como subsídio para potencializar as ações discutidas durante a oficina e também para estimular o aprofundamento das discussões sobre o agronegócio no Brasil e suas implicações para os movimentos sociais e seus processos de resistência”, conclui Diana.
[1] Jornalista da FASE.
[2] A oficina e a edição da publicação contam com o apoio da Fundação Heinrich Boll Stiftung e da Pão para o Mundo.