21/12/2016 12:23
Gilka Resende¹
Em 2016, ano em que o país enfrentou um golpe, a FASE completou 55 anos. Diante de ataques diários sofridos, em diferentes níveis, por populações pelo país, a organização convidou integrantes de movimentos sociais, instituições e pessoas comprometidas com a transformação da sociedade para o debate “Para além dos desafios da conjuntura: construir alternativas ao desenvolvimento e à crise democrática em curso no Brasil”, realizado no dia 23 de novembro no Rio de Janeiro. De variadas formas, o tema mais amplo foi perpassado pelas ações da FASE, abordando a educação popular, a atuação em redes e fóruns e em espaços institucionais de disputa política.
Tatiana Dahmer, presidenta da FASE, mediou o debate, que contou com os palestrantes Cunca Bocayuva, professor da UFRJ; Guilherme Boulos, do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto Brasil (MTST); e Lucia Xavier, da organização Criola. “Vivemos um momento difícil. Precisamos estar juntos pensando sobre esses dilemas”, disse a professora da Faculdade de Educação da UFF. Nessa mesma linha, Boulos destacou que a ofensiva conservadora da direita “traz uma regressão profunda”. “É necessário estar com todos e todas que queiram e que estejam dispostos a resistir a esse processo”, avaliou.
Boulos caracteriza o governo de Michel Temer como “o mais perigoso para os interesses populares” desde o fim da ditadura civil-militar. “Não foi eleito e não pretende disputar eleições. Não paga o preço político do que fizer. Ele pode ter o programa mais abusado de ataque aos direitos”, ressaltou. Sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, antiga 241, o militante falou: “Em nenhum país se estabeleceu uma política de austeridade por 20 anos como uma cláusula constitucional. Nem os governos mais liberais na América Latina dos anos 1990 fizeram isso. A PEC estabelece a política econômica brasileira para os próximos quatro governos”.
O que antecede o golpe?
Tanto os palestrantes como os convidados destacaram que a “crise de representatividade” e a “descrença na política” são resultados de um período que antecede o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, questionado por organizações de direitos humanos e até mesmo por governos de outros países. Cunca destaca que houve esperança de que o desfecho dos governos do PT fosse a realização de “reformas fortes”. “Evidentemente não transitamos nessa direção e tivemos uma perda de capital social e simbólico. Abriu-se demais para a política do adversário, o que minou a capacidade de produzir mais avanços”, avaliou.
Para o professor, é preciso considerar as conquistas resultantes de lutas populares, como o acesso de negros e pobres às universidades e o aumento real do salário mínimo, o que em sua opinião são elementos até mais relevantes que a concessão de crédito à população, que gerou uma onda de endividamento, e os programas sociais. Apesar dos erros dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, Cunca ponderou dizendo que o PT chegou ao poder em um ciclo mundial conservador após o atentado às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos.
Boulos concorda que as “políticas sociais não devem ser minimizadas”. No entanto, foi mais duro ao analisar as opções dos governos Lula e Dilma. “Não foram combatidos os privilégios da Casa Grande no Brasil”, resumiu. Para ele, o golpe no Brasil marca o fim de dois ciclos. O primeiro é o esgotamento de uma política de pacto social de adesão a “um modelo de crescimento econômico que surfou na onda internacional de commodities e da demanda chinesa”. “Bateu no teto a política de ‘ganha-ganha’. Não é possível mais obter ganhos sem que ocorram conflitos”, ilustrou. O segundo ciclo a se fechar, aponta Boulos, é o da “Nova República”, um modelo democrático feito a partir de “um arranjo produzido nos anos 1980”. “Foi baseado na ideia de governabilidade e de acordos com oligarquias locais. O azeite desse sistema foi a corrupção, com o financiamento privado de campanhas e a distribuição de cargos em troca de apoio [político]”, afirmou. Boulos analisa que a “Nova República” teve que recorrer ao golpe para conseguir seguir adiante.
Sobre o fim da política de “ganha-ganha”, destaca ainda que antes mesmo de ela “bater no teto” já era atravessada por contradições. Entre outros exemplos, citou a questão da moradia. “O Minha Casa, Minha Vida foi criado para atender os interesses do capital da construção civil, e não para resolver o déficit habitacional. O processo de investimento urbano, via PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] gerou um surto de especulação imobiliária, o que fez que os aluguéis subissem. Chegam os megaeventos [Copa do Mundo e Olimpíadas] e ocorrem uma série de despejos”, pontua. Disse ainda que as mudanças no cenário da política internacional provocaram uma crise que “bateu com força no Brasil”. “O cobertor ficou curto e as opções do governo após as eleições 2014 também ajudaram a dar base social para o golpe”, acredita.
Horizonte de resistências
Cunca avalia que ocorreu “uma derrota parcial que pode se aprofundar, mas que existem elementos que mostram capacidade de lutas”. Uma saída seria criar unidade em torno de uma única bandeira. Ele chegou a citar pautas como “Fora Temer” e “Diretas Já!”. “Não que realmente consigamos tirá-lo ou convocar eleições, mas são temas que podem criar um imaginário mais geral. Isso em uma situação onde se espalham o ódio de classe, o medo, a morbidez e uma lógica punitiva. A conjuntura do impeachment não fechou. Temos que reagir agora”, incitou.
Para o militante do MTST, existem dois grandes desafios: resistir ao desmonte da política social no Brasil e aos ataques brutais, que vão se intensificar; e trabalhar na redefinição esquerda brasileira, o que incluiria mudanças nas estratégias, na construção de novos espaços e instrumentos de luta. Ele afirma que essa renovação deve “ter conexão com as lutas de resistência”. Já Lúcia Xavier fez um resgate histórico. “Estamos sentindo tempos conservadores, mas será que são tão recentes assim? Há 128 anos vivíamos em um regime de escravidão. Depois, até 32 anos atrás, em uma ditadura. Só 84 anos atrás as mulheres começaram a votar. Então, isso tudo revela o quanto de trabalho foi feito nessa sociedade para que a gente rompesse com dinâmicas elitistas e pudesse empurrar barreiras e arregimentar direitos”.
Lúcia convidou ainda para uma reflexão sobre a democracia. “51% da população no país são negros. A maioria da população é de mulheres. Nem 10% desses grupos estão representados no parlamento”, lembrou. Ela foi enfática ao apontar os limites desse sistema: “Morrem 116 brasileiros por dia. São assassinados pelo Estado e por outros grupos. São 650 mil pessoas encarceradas, algumas por motivos torpes. Mulheres no Rio de Janeiro são presas principalmente pelo rodo no scanner, quando entram com drogas na prisão. Há um processo violento junto às classes populares que não foi disputado durante a reorganização democrática do Estado brasileiro”. Com isso, ela afirma que o padrão de democracia que se tinha não foi alcançado pela maioria das pessoas no país.
“Outro dia quase quebrei um vaso Ming. Fiquei preocupada. Teria que trabalhar a vida inteira e não conseguiria pagá-lo. Mas eu nem reconheci que era um Ming. Então, não tinha a possibilidade de saber o prejuízo que eu estaria causando. E é mais ou menos assim o sentido da democracia brasileira. Ela é um Ming. Todo mundo acha lindo, a maioria não vai ter, mas se quebrar ficamos chateados. Na nossa cultura, esse vaso só faz sentido por valer dinheiro. Mas somos seres humanos, não valemos dinheiro. Então, acho que esse luto que enfrentamos pela perda de concepções de esquerda tem a ver com a nossa incapacidade de transformar essa democracia”, ilustrou.
Lúcia lembrou que parte da esquerda se recusou a reagir às contradições vividas nos últimos anos. “Acreditamos que qualquer esbarrão nesse Ming iria quebrá-lo”, afirmou. “E também fomos rechaçados nesse processo, considerando que a nossa fala era a de alguém visto como ressentido. Se havia política para as mulheres, políticas para a promoção da igualdade, ProUni [Programa Universidade para Todos] e cotas, porque não estávamos contentes? O que estava faltando? É que o preço que a gente pagava era muito alto. Então, logo a reclamação era contínua”, explicou.
Ela recordou que a Marcha das Mulheres Negras, em 18 de novembro de 2015, foi realizada a partir de um trabalho com catadoras, intelectuais, prostitutas, trabalhadoras domésticas, transexuais, dentre outras, em que se discutiu a sociedade brasileira e concluiu que não era possível seguir da mesma maneira.“Mas nos disseram não!”, afirma. Na sua opinião, a maior parte da esquerda não vocalizou os diferentes grupos que formam as classes populares. Lúcia enfatiza que é preciso discutir com eles, não falar o que eles devem dizer ou mesmo falar por eles. Boulos completou dizendo que outro desafio é não cair na cilada das conciliações. “Esse é o fio da navalha no próximo período. Estamos sujeitos a uma série de erros e enfrentaremos riscos. Espero que sejamos capazes de cometer ao menos novos erros, e não os mesmos que nos trouxeram até aqui”, concluiu.
FASE e sua caminha de lutas
Letícia Tura, diretora da FASE, disse durante o debate que, mesmo diante de um ano difícil, comemorar os 55 anos da organização tem o significado de afirmar a existência e a resistência de todo um campo de lutas. Ela também lembrou a ausência do educador Jean Pierre Leroy. “Recentemente perdemos uma pessoa importante para a gente. Ele foi diretor da FASE no início dos anos 1980, um momento de reconstrução no Brasil”, afirmou. Na ocasião, foram lançados os vídeos “55 anos de FASE: uma caminhada de lutas”, produção dedicada a Jean Pierre, e a animação “Que FASE é essa?”.
“Apesar do atual contexto, não tiramos da pauta o debate sobre as alternativas ao desenvolvimento nem a construção de resistência junto às populações com as quais trabalhamos nos territórios. Ou seja, não abandonamos o que dá robustez institucional à FASE. Continuamos acreditando na capacidade de construir relações de solidariedade, reciprocidade, de ativismo e, principalmente, de sempre colocarmos em debate questões que estão clamando”, finalizou Evanildo Barbosa, também diretor da FASE.
[1] Jornalista da FASE.