03/02/2017 18:12

Diana Aguiar¹

Desde 2012, movimentos sociais e sindicais do campo, organizações sociais e grupos de pesquisa brasileiros acompanham as ações da Cooperação para o Desenvolvimento e os investimentos brasileiros no Corredor de Nacala em Moçambique, seus impactos sinérgicos e ameaças aos modos de vida dos povos daquele território. Este grupo² está movido, sobretudo, por princípios democráticos, de cooperação e soberania dos povos e de solidariedade Sul-Sul. Em sua essência, isso implica na defesa dos direitos dos povos de Moçambique à autodeterminação do futuro de seus territórios. Tal direito conflita com programas de “desenvolvimento” impostos de cima para baixo, como tem sido o caso do principal programa de Cooperação Sul-Sul oficial do Brasil na África, mais precisamente dirigido ao norte de Moçambique: o ProSavana.

Encontro Unitario 2016 credito ADECRU p6

Encontro realizado em 2016. (Foto: Adecru/Reprod.)

Ao mesmo tempo, esses princípios mobilizadores do grupo também expressam o reconhecimento de que as ameaças que avançam sobre os territórios das camponesas e camponeses de Moçambique são parte de um modelo de “desenvolvimento” liderado pelo agronegócio e que tem, há algumas décadas, avançado brutalmente sobre os territórios da agricultura familiar e camponesa e dos povos e comunidades tradicionais no Cerrado brasileiro, com consequências devastadoras. Além disso, reconhecemos que as agroestratégias que guiam esse processo de acumulação por espoliação se reafirmam e se renovam atualmente em programas como o ProSavana, em Moçambique, e o Matopiba³, no Brasil. Portanto, a resistência Sul-Sul a esses programas, e às agroestratégias que eles expressam, tem sido de solidariedade mútua e reverbera na construção coletiva de alternativas por meio de uma cooperação propositiva dos povos do Brasil e de Moçambique.

A cooperação triangular dos povos de Moçambique, Brasil e Japão, ao questionar esse programa de cooperação oficial dos governos dos três países, reflete a necessidade de pensar como programas de “desenvolvimento” de regimes democráticos podem ser atravessados por uma visão autoritária de “progresso”, instrumentalizada para justificar processos que servem em especial, e nesse caso, para garantir o acesso de interesses empresariais às terras moçambicanas. Diante da retórica de “desenvolvimento” que mobiliza imaginários, a FASE lançou recentemente uma publicação[4] que oferece subsídios a esse debate.

A primeira parte do livro “A Cooperação Sul-Sul dos Povos do Brasil e de Moçambique”  apresenta o histórico do processo de resistência triangular dos povos por meio de uma memória pública. A partir daí e considerando o contexto atual no qual o ProSavana avança, apesar de todo esse histórico de resistência, apresentamos na segunda parte uma análise que busca revelar o que o Plano Diretor do ProSavana de fato propõe em suas linhas e entrelinhas.

As análises do livro apontam para a defesa de que projetos de grande envergadura – tais como o ProSavana, a mina de carvão da mineradora Vale em Tete e seu corredor logístico até o Porto de Nacala – não podem se sustentar unicamente em uma justificativa de suposto “desenvolvimento”. É fundamental debater de forma democrática os próprios sentidos do desenvolvimento, envolvendo principalmente os povos que vivem e constroem o território, de forma a permitir que as camponesas e os camponeses deixem de ser espectadores e passem a assumir o papel de sujeitos políticos nesse processo . Em contradição com esse imperativo, o ProSavana é o programa de cooperação brasileiro que mais explicitamente tem confundido a ideia de solidariedade com a de atender interesses empresariais.

capa-prosavana_editadaO próprio processo de construção do Plano Diretor do ProSavana tem defeito de origem. Como fica evidente na memória pública contida no livro, princípios democráticos básicos do direito à Consulta Livre, Prévia e Informada, aos quais o Brasil está vinculado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), foram explicitamente violados. O novo processo, que se estabelece mais recentemente a partir de um “Mecanismo de Sociedade Civil” [5], não só deixa de sanar os problemas anteriormente apontados, como os aprofunda.

O conteúdo do Plano Diretor reflete o caráter antidemocrático de sua construção, especialmente em relação aos insuficientes mecanismos de consulta aos povos que vivem e trabalham na região. Neste contexto, não surpreende que sua Versão Zero apresente uma estratégia de desenvolvimento rural que não está alicerçada nos interesses da agricultura camponesa. Do contrário, seu conteúdo reforça modelos e pressupostos da “Revolução Verde”, que já se provaram devastadores em muitos territórios e para os modos de vida de muitos povos camponeses e tradicionais, como mostra nossa experiência histórica e contínua no Cerrado brasileiro. Isso ficou claro durante o Seminário Nacional “Matopiba: conflitos, resistências e novas dinâmicas de expansão do agronegócio no Brasil” , realizado em Brasília em novembro de 2016. Além dos movimentos e organizações sociais brasileiros membros da Campanha em Defesa do Cerrado, o evento contou com a presença de representantes de Moçambique e do Japão da Campanha Não ao ProSavana.

No Seminário, o intercâmbio de experiências entre a camponesa moçambicana Helena Terra, liderança provincial da União Nacional de Camponeses (UNAC), com camponesas e camponeses, quilombolas, indígenas e quebradeiras de coco babaçu do Cerrado brasileiro apontou para um entendimento profundo das ameaças comuns e da necessidade de lutar juntos em solidariedade Sul-Sul. A  apresentação realizada pela ativista japonesa Naoko Watanabe, da organização Japan Volunteer Center (JVC), revelou a estratégia contínua do governo japonês de promover os interesses de transnacionais daquele país, em especial a Mitsui, no acesso a terras para produção e escoamento de commodities agrícolas para os mercados globais. Trata-se de uma estratégia que remonta à colonização japonesa da Manchúria chinesa durante a Segunda Guerra e que reverberou no Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer), nos anos 1970, no ProSavana e, mais recentemente, no Matopiba.

Reunião com comunidades atingidas em Nampula, 2013 Credito Sérgio Schlesinger _ FASE p 23 livro

Reunião com comunidades atingidas em Nampula, em 2013. (Foto: Sérgio Schlesinger)

A resistência de povos e comunidades camponesas, indígenas e tradicionais do Cerrado brasileiro a estes processos tem como referência uma série de experiências ligadas aos modos de vida e produção destes povos. É, portanto, a partir da experiência brasileira e à luz do acúmulo de conhecimentos e práticas de alternativas baseadas na agroecologia, na soberania dos povos e em políticas públicas voltadas à agricultura familiar e camponesa, que apresentamos a publicação sobre o ProSavana. Esperamos que sirva de incentivo ao debate público, ainda mais necessário em tempos em que forças conservadoras operam para reduzir mais e mais os sentidos, já tão restritos, da democracia realmente vivida.

[1] Integra o Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE.

[2] Grupo composto por:  MPA; Contag; Fetraf; MMC; CPT; Conaq; MST; Cimi; FASE; Inesc; Instituto PACS; Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; FBSSAN; Oxfam Brasil; Action Aid Brasil; e integrantes de departamentos de pesquisa, tais como CPDA/UFRRJ; NAEA/UFPA; Núcleo Tramas/UFC; e LabMundo/UFBA.

[3] Região delimitada para fins de planejamento em parte dos territórios do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – formando com as primeiras sílabas dos nomes desses estados a sigla Matobiba – como fronteira para expansão do agronegócio no Cerrado brasileiro.

[4] Publicação organizada por Diana Aguiar e Maria Emília Pacheco, ambas da FASE, com textos dos pesquisadores Fátima Mello e Silvio Porto. Baixe gratuitamente.

[5] Campanha Não ao ProSavana denuncia as irregularidades do processo de Diálogo sobre o ProSavana, março de 2016. Comunicado Conjunto e Questionamentos da Sociedade Civil de Moçambique, Brasil e Japão sobre o ProSAVANA com Relação aos Documentos do Governo Recentemente Vazados, agosto de 2016.