02/06/2017 15:14

Juliana Camara e Emmanuel Pontes¹

Na manhã desta quinta-feira (01), foi realizada uma audiência pública destinada a “Debater os desdobramentos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 504/2010, que reconhece os Biomas Caatinga e Cerrado como Patrimônio Nacional, nas políticas públicas de desenvolvimento urbano e moradia popular”, no âmbito da Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados. Solicitada pelo deputado Luiz Couto (PT-PB) ao presidente da Comissão Givaldo Vieira (PT-ES), a audiência tratou das consequências da devastação do Cerrado e da Caatinga nos centros urbanos do país. Ao fim do evento, Vieira se comprometeu a encaminhar indicação para que o plenário da Câmara vote a PEC.

Durante a audiência, o número de mortos no campo devido aos conflitos por terra também foram lembrados. (Foto: Thomas Bauer / CPT)

“Estamos passando por crises hídricas nos grandes centros urbanos e o Cerrado é considerado a caixa d’água do Brasil”, justificou ele, que também é presidente da Comissão Especial da Crise Hídrica. A PEC 504/10, do ex-senador Demóstenes Torres (DEM/GO), altera o § 4º do art. 225 da Constituição Federal, para incluir o Cerrado e a Caatinga entre os biomas considerados patrimônio nacional. Só em 2017, a proposta foi colocada em pauta 13 vezes, porém não foi apreciada. Atualmente, segundo a Constituição, são patrimônios nacionais a Amazônia, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona Costeira. “Eles não querem colocar a PEC em votação porque vai prejudicar o agronegócio“, justificou Padre Couto em sua fala de abertura. O avanço da fronteira agrícola já resultou no desmatamento de mais de 50% do Cerrado e de 46% da Caatinga. A aprovação da PEC reforçaria a importância de preservar a vegetação restante e facilitaria a criação de novas políticas de proteção dos biomas.

Isolete, da CPT. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Resultado dos esforços de articulação da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado², a audiência foi acompanhada por um plenário repleto de representantes de populações tradicionais dos dois biomas, como indígenas e quilombolas. Além dos deputados, compuseram a mesa Maria do Socorro, do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB); Isolete Wichinieski, da Comissão Pastoral da Terra (CPT); Maria de Fátima Barros, da Articulação Nacional de Quilombos (ANQ); e Gerardo Cerdas, da ActionAid no Brasil, todos integrantes da campanha.

“Se substituirmos a vegetação nativa do Cerrado pela soja, sofreremos consequências graves”, aponta Isolete. Isso porque o Cerrado é uma floresta invertida, com árvores pequenas porém com raízes grandes, que ajudam a água a penetrar nos lençóis freáticos e aquíferos. “Preservar sua vegetação restante é fundamental para que tenhamos água hoje e no futuro”, alertou. Para reforçar, Isolete trouxe o exemplo da recente crise hídrica. “Vivemos, nos últimos três anos, problemas de falta de água nos centros urbanos. Na verdade, São Paulo, Espírito Santo, Distrito Federal e Rio de Janeiro ainda estão passando por isso. E quem consome mais água é a agricultura por meio dos pivôs de irrigação. Apenas 10% da água são para uso humano. Então, a grande questão hídrica está no campo”.

Maria de Fatima, representante quilombola do estado do Tocantins. (Foto: Rosilene Miliotti/FASE)

Maria do Socorro e Maria de Fátima compartilharam um pouco de suas experiências como quebradeira de coco e quilombola no estado do Tocantins. A representante do MIQCB destacou os impactos do modelo adotado pela agricultura de extensão para o meio ambiente e as populações rurais: “As grandes empresas do agronegócio destroem o que estamos preservando. Eles fazem queimadas e, quando não é fogo, é derrubada; quando não é derrubada, é envenenamento. O veneno mata a floresta e os seres vivos. Temos hoje muitas mortes por câncer, por causa do veneno na água, no ar e nos alimentos”, disse ela, que também fez um apelo pela aprovação da Lei do Babaçu Livre, estratégia em nível federal de regulamentação e proteção da atividade das quebradeiras de coco babaçu que somam, em todo o país, mais de 300 mil mulheres.

“Minha família reside no território desde 1888. Depois de mais de cem anos, continuamos a viver da agricultura familiar, da caça e da pesca”, contou Maria de Fátima. A quilombola alertou sobre a importância dos povos tradicionais para a preservação do meio ambiente frente os avanços de projetos de infraestrutura e agropecuária. “Mas até quando? Até que as hidrelétricas se imponham sobre nosso território? Até que a monocultura se estenda sobre o Bico do Papagaio, como a gente já está vendo? Nós somos os guardiões dos biomas”. Ela reforçou ainda as consequências da expulsão das populações do campo. “Quando nossos meios de vida no campo são destruídos, nossas crianças vão para as periferias das grandes cidades e são submetidas a todos os tipos de violência. Ter a PEC aprovada é uma forma de continuar existindo e resistindo.”

Gerardo, da ActionAid Brasil. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Para Gerardo, manter o ritmo desenfreado de desmatamento do Cerrado e da Caatinga significa sacrificar o bem comum das populações rural e urbana em prol dos interesses de pequenos grupos. “Vários estudos apontam que o desmatamento do Cerrado vai, num prazo muito curto, por volta de 30 anos, diminuir os aquíferos e os lençóis freáticos, o que pode acabar com rios. Isso quer dizer que muitos de nós assistiremos ao aprofundamento da crise atual. O cenário não é alentador. Há interesses que vão para além do particular. Estamos pagando as consequências das atividades de muito poucos”, explica.

Nas considerações finais feitas pela plateia, Paulo Fiuza, da Fundação Mais Cerrado, foi bastante aplaudido ao chamar atenção para o “apartheid ambiental” que representa o fato de o Cerrado ser um dos poucos biomas que não são patrimônio nacional. “Cerrado é água, é vida, é produção, é alimento. Não é uma causa local, mas o coração do Brasil. Sem ele, o país para. A PEC é o primeiro passo na correção de um absurdo, do verdadeiro apartheid ambiental. Por que alguns biomas são protegidos e outros não, se todos eles estão ligados?”, questiona.

Em mais uma passo para pressionar os parlamentares pela aprovação da PEC 504/2010, a Campanha lança, no próximo dia 5 de junho, uma petição online para que toda a sociedade possa se engajar na causa.

[1] Jornalistas da ActionAid/Brasil e Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, repesctivamente.

[2] Do qual a FASE é parte junto à outras 50 instituições.