17/11/2017 12:30

Leandro Uchoas¹

Julianna Malerba. (Foto: Fundação Böll)

Assessora nacional da FASE e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), Julianna Malerba concede entrevista à Fundação Heinrich Böll². Ela fala dos retrocessos na legislação socioambiental brasileira, com foco no setor da mineração, e estabelece a que, ao lado da reorganização do mercado de trabalho, a reestruturação do mercado de terras está no centro dos interesses dos grupos que mantém Temer no poder.

Tem visto um preocupante agravamento dos impactos socioambientais de atividades extrativas e os relaciona à flexibilização das legislações ambientais e de direitos territoriais e ao crescimento da violência e da criminalização dos movimentos sociais. Mas é otimista ao verificar a emergência e fortalecimento de várias expressões de resistência anti-mineral a nível nacional. Na FASE, Julianna costuma trabalhar temas relacionados a conflitos socioambientais, direitos territoriais, justiça ambiental e bens comuns.

Você está fazendo um levantamento das alterações de legislação envolvendo questões socioambientais e direitos territoriais. Como está isso?

A partir do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ainda durante o governo Lula, começamos a assistir a uma ofensiva permanente de setores do governo federal e, de um fortíssimo lobby de empreiteiras e demais grupos interessados, em favor da flexibilização das normas de licenciamento ambiental. Entre os membros da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) percebíamos que além de criar condições financeiras para a expansão das atividades agroindustriais, minerais e de infraestrutura via financiamento público, havia uma clara intenção em criar condições normativas para garantir essa expansão. Já nesse primeiro momento, as legislações ambientais e que estabelecem reconhecimento e proteção da posse da terra em favor de indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais começaram a ser atacadas por uma articulação de forças situadas dentro e fora dos poderes legislativo e executivo. Nesse período é proposta pelo PFL (atual DEM) a Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/2004, que contesta o critério de autoatribuição fixado no decreto nº 4.887/03, que regulamenta o procedimento de titulação das terras ocupadas por populações quilombolas. São lançadas as primeiras portarias do Ministério do Meio Ambiente que buscavam acelerar o licenciamento ambiental, reduzindo pela metade os prazos para a concessão das licenças, e o Código Florestal é modificado em favor dos interesses do agronegócio. A partir de então esse processo de acelera.

A PEC 215, que pretende transferir para o Congresso Nacional a competência de demarcar e homologar Terras Indígenas (TI), criar unidades de conservação e titular terras quilombolas, embora tenha sido elaborada no Congresso no inicio dos anos 2000, torna-se prioridade da bancada ruralista. A Advocacia Geral da União (AGU) publica a Portaria 303, que coloca em vigor as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante julgamento que homologou a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol e confirma para todas as demais terras indígenas o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que os direitos dos indígenas sobre as terras não se sobrepõem ao interesse público da União, de forma que seu usufruto fica condicionado à política de defesa nacional, à expansão da malha viária, à exploração de alternativas energéticas e de riquezas de cunho estratégico para o país, como a mineração. Embora essa portaria tenha sido suspensa por pressão dos movimentos sociais, no governo Temer ela é republicada pela AGU na forma de parecer que, graças à lei complementar n°73/1993, passa a ter força normativa, alcançando toda a administração federal.

(Foto: ABr/Reprod)

Atualmente, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), há 33 propostas que buscam alterar os processos de demarcação de TI, sustar portarias demarcatórias, impedir a desapropriação de terras para demarcação de TI, autorizar seu arrendamento e estabelecer indenização para os invasores que ocuparem as terras depois de 2013. Em Temer, o ataque aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais assim como as medidas que alteram a legislação ambiental – como medidas provisórias e projetos de lei que atacam o sistema nacional de unidades de conservação e visam mudar as regras de licenciamento ambiental (PL 3729/2004 e 654/2015) ou mesmo extingui-lo (PEC 65/2012) – não estão mais sob a tensão da perspectiva desenvolvimentista da era PT, onde, em parte, os propósitos que moviam os retrocessos era estimular o desenvolvimento econômico de atividades que geram saldos comerciais ao país e mantém a estabilidade de uma política econômica altamente dependente de recursos externos. Naturalmente temos muitas críticas a esse padrão de crescimento baseado na extração intensiva de recursos naturais e na produção sistemática de injustiças ambientais que caracteriza o projeto desenvolvimentista da nossa esquerda histórica. Mas, atualmente, o desenvolvimento econômico representa mais um instrumento retórico.

A agenda dos retrocessos responde mais a demandas dos setores que representam a base de sustentação do governo Temer – com destaque para a bancada ruralista, cuja agenda têm se concentrado, sobretudo, em questões fundiárias – que a uma orientação estratégica de um plano de governo, já que o único plano deste governo é manter-se no poder a qualquer custo. Com o golpe, a reestruturação do mercado formal de terras parece assumir o centro das motivações que tem acelerado os retrocessos que estavam em curso desde a era Lula. A medida provisória n° 759, convertida na Lei 13.465/17 evidencia isso. Ela altera os regimes jurídicos relacionados à regularização fundiária rural e urbana, à regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e as regras de alienação dos imóveis da União. A lei cria mecanismos que facilitam os critérios de titulação e a antecipação da emancipação dos assentamentos para que os lotes estejam disponíveis para serem transacionados no mercado de terras. Também facilita a regularização fundiária de terras públicas e devolutas, possibilitando, inclusive, a legalização da grilagem, uma vez que amplia para 2.500 hectares o limite da área de terra devoluta passível de ser regularizada na Amazônia pelo Programa Terra Legal.

Uma área desse tamanho não corresponde a uma ocupação de boa fé, destinada à produção e trabalho familiar. Além disso, os valores para pagamento da regularização dessas terras ao Estado é baixíssima. Além de permitir a regularização de áreas a pessoas que possuem mais de um imóvel, a nova lei estabeleceu que o preço do imóvel considerará o tamanho da área e será estabelecido entre 10 % até o limite de 50% do valor mínimo da pauta de valores da terra nua. Isso estimulará a especulação imobiliária já que a concessão de terras públicas por preços muito abaixo do valor de mercado desestimula as atividades produtivas e, consequentemente, induz à ocupação de novas áreas que acarretem maior retorno financeiro. Essa medida estimulará a ocupação de novas áreas gerando grilagem e ameaçando territórios de populações tradicionais não regularizados, assim como o assalto às pequenas posses.

(Foto: Sérgio Amaral/MDS)

A lei ainda elimina qualquer sanção ao latifúndio e à propriedade que não cumprirem com sua função social já que permite o pagamento em dinheiro nos imóveis rurais frutos de aquisição por compra e venda ou na arrematação judicial pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) (a regra anterior estabelecia o pagamento em Títulos da Dívida Agrária com liquidação de forma escalonada de dois e 20 anos, a depender do tamanho do imóvel). Essas medidas desconstroem a Reforma Agrária, pois estimulam a conversão da terra a um ativo financeiro bastante atrativo. Tais medidas deverão travar completamente as ações de democratização da terra, pois com a redução brutal do orçamento da Reforma Agraria e o congelamento de investimentos públicos por 20 anos não haverá recursos para promover a desapropriação em favor da criação de assentamentos. Fica claro que o objetivo é liberar terras públicas e devolutas ao mercado, premiando o latifúndio e neutralizando regimes fundiários que garantem o acesso à terra aos trabalhadores rurais e que estabelecem reconhecimento e proteção da posse da terra em favor de indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.

Isso é apenas pressão da bancada ruralista, ou existe lobby internacional, em relação ao mercado de terras?

Sem dúvidas há uma convergência entre os interesses de elites nacionais e internacionais em relação ao controle de terras. O próprio agronegócio é um setor que se internacionalizou. Há algumas décadas vem ocorrendo uma oligopolização mundial dos complexos agroindustriais, que estabelece o controle da cadeia desde o processamento até a distribuição dos produtos. A isso se soma a outro processo de expansão das fronteiras territoriais pelo capitalismo como forma de aumentar sua lucratividade: após a crise financeira de 2008, o capital passa a necessitar de novos setores para garantir a acumulação e o setor agrícola e de mercado de terras (apesar de sua menor liquidez) tornam-se uma alternativa bastante atraente.

Nos últimos 10 anos, a terra foi o ativo que apresentou maior valorização: entre 2009 e 2014, os preços médios da terra no Brasil cresceram 95% no país, com destaque para o Centro-Oeste, onde esse índice chegou a 130%, coincidindo, portanto, com a expansão da fronteira agrícola. A expansão da compra de terras no Brasil – inclusive por capital estrangeiro – está atrelada à expansão das atividades agropecuárias e agroindustriais, relacionadas tanto ao setor de grãos e cana-de-açúcar, quanto aos setores de plantio homogêneo de árvores e de mineração. […]

Na sua opinião, é isso que está por trás dessa movimentação para alterar leis?

Há sem dúvida uma tentativa muito clara de desconstruir os regimes fundiários instituídos pela Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, as premissas que os balizam, que estabelecem: que a destinação de terras públicas e devolutas deve ser compatível com o Plano Nacional de Reforma Agrária; e que a propriedade deve ser condicionada ao cumprimento de sua função social e ambiental.

Mesmo sabendo que os processos de implementação dessas políticas têm muitos limites e que, com exceção das terras quilombolas, todas as demais continuam sob propriedade estatal (o quê, em tempos de captura corporativa do Estado, fragiliza a segurança fundiária que visam oferecer), o fato é que elas tiveram a importância de reconhecer sujeitos políticos, evitar sua desterritorialização e de valorizar formas contra-hegemônicas de territorialização e de uso dos recursos. Além disso, o fato dessas políticas garantirem não apenas o usufruto, a propriedade ou a posse coletiva das terras, mas também as protegerem da alienação e, em alguns casos, de atividades intensivas no uso da água e do solo (a exemplo da mineração nas Reservas Extrativistas (Resexs) e nas terras indígenas³), significou a criação de uma barreira à expansão do modelo hegemônico e predatório de ocupação do território brasileiro.

(Foto: Saulo Cruz)

A corrida mundial por terras e o aumento da força política que os ruralistas adquirem no governo Temer são fatores que, sem dúvida, têm um grande peso nesse processo. Mas eu arriscaria dizer que não são apenas motivações econômicas que justificam o objetivo de alterar as leis ligadas ao uso do território. Há uma sistemática e histórica invisibilidade da diversidade cultural e social brasileira que volta a ganhar força em uma sociedade que, amparada em um imaginário racista, nega aos grupos historicamente vulnerabilizados – negros, pobres, indígenas, populações tradicionais, sem terra, sem teto – o papel de sujeitos políticos. Sujeitos que, em alianças com outros segmentos, conseguiram “disciplinar” e regular o direito de propriedade em favor da justiça social. […]

É nesse contexto mais geral que se dá as mudanças que estão sendo propostas na área da mineração?

O debate sobre o novo Código Mineral está atravessado por todo esse contexto pré e pós golpe. A partir de 2000, o mercado mineral cresce, assim como o preço dos minérios. E o Brasil vai se tornando um grande player no mercado mundial mineral. Considerando que estávamos na era de governos petistas que, com todos os limites, tinham uma visão menos liberal do Estado, havia uma sinalização vinda do governo de que era preciso garantir mais controle estatal sobre a política mineral e maior captura da renda extrativa. Quando a proposta de um novo Código Mineral é enviada pelo governo Dilma ao Congresso, em 2013, no centro dela estava a mudança no regime de outorga dos títulos minerários.

O governo propunha mudar o regime atual de prioridade (que garante ao primeiro interessado a obtenção dos direitos minerários sobre uma determinada área) pelo regime de concessão precedido de licitação, o que ampliaria a capacidade de controle e planejamento do Estado, permitindo-lhe definir, por exemplo, quais minerais e áreas deveriam ser prioritariamente explorados. Essa proposta e outras que garantiam maior governança pública dos recursos minerais foram rapidamente neutralizadas pelo Congresso. A bancada de deputados financiados por grandes mineradoras tratou de retirar daquele projeto de lei todas as proposituras que garantiam alguma governança pública sobre a política mineral e de incluir emendas que ampliavam não apenas as possibilidades de acesso aos recursos minerais pelo mercado, quanto facilitavam o acesso à terra e às águas às mineradoras.

Baixe a versão completa.

A queda de braço do Congresso com o governo e a pressão da sociedade civil organizada que se posicionava criticamente a essas emendas, e também a total ausência de preocupações quanto ao direito das populações afetadas expressa na própria proposta do Executivo, acabaram impedindo que o Código fosse votado. Com Temer, o foco da disputa que se dava em torno do Código perde a centralidade porque o próprio governo busca viabilizar as propostas liberalizantes apresentadas pelos parlamentares por meio de medidas provisórias, decretos e portarias que esvaziam as possibilidades de debate público dada a celeridade com que são tramitadas e aprovadas. […]

[1] Jornalista da Fundação Heinrich Böll.

[2] Edição da entrevista originalmente publicada no webdossiê “Flexibilização da legislação ambiental brasileira“. Leia na íntegra aqui.

[3] Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, a mineração em faixa de fronteira e em terras indígenas deve ter tratamento especial e regulamentação específica. Embora a mineração em áreas de fronteiras tenha sido regulamentada em 1979, a regulamentação da atividade em terras indígenas ainda não foi aprovada pelo Congresso.