19/12/2017 15:40
Gilka Resende¹
O Serviço de Análise e Assessoria a Projetos (SAAP), da FASE, reuniu em novembro representantes de 26 grupos, de diferentes regiões do país, no “Encontro Nacional de Acompanhamento e Monitoramento – Resultados, Aprendizados e Intercâmbio de Experiências”. Os participantes foram aprovados no edital “Que democracia é essa? Construindo Cultura de Direitos”, tema que também atravessou os debates da atividade, realizada no Rio de Janeiro. “Esses grupos promovem transformações em seus locais de atuação. No evento, tivemos a oportunidade de promover o intercâmbio de experiências e a articulação entre os coletivos para fortalecer ainda mais as suas lutas”, explicou Mônica Ponte, educadora do SAAP.
Vilma Piedade², da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), participou do encontro. Ao lado de Carlos Matos³, pesquisador de povos indígenas nas cidades, ela debateu os principais desafios para afirmação da diversidade ética, de gênero e o enfrentamento a intolerância religiosa. Sobre esse último ponto, Vilma recordou recentes episódios ocorridos no Rio de Janeiro, em que terreiros de candomblé e de umbanda foram depredados. “Aqui trabalho com racismo religioso. Por que não é só sobre intolerância que estamos falando, é sobre racismo”, destacou.
Para demonstrar que esse tipo de violência “não é uma novidade”, a pesquisadora relembrou episódios que remontam “uma cultura de ódio religioso”, começando pela chamada “Quebra de Xangô”, ocorrida em Alagoas no ano de 1912. “Foi a invasão e destruição dos principais terreiros de Xangô de Maceió. Todas as casas de culto afro-brasileiro da região foram destruídas. Terreiros foram invadidos, os objetos retirados, pais e mães de santos foram espancados. A partir daí, os adeptos da prática do culto aos Orixás criaram o chamado “Xangô rezado baixo”. O que era? Era cantar baixinho e não tocar tambor”, explicou.
Vilma ressaltou que a opressão vivida hoje por terreiros atravessa séculos, sendo empregada, inclusive, por instituições. “No século XIX, era comum a polícia invadir os cultos de religiões de matriz africana. Apesar da Constituição de 1891 garantir a liberdade de crença, o Código Penal de 1890 criminalizava as casas sagradas. Dizia que as práticas de cura eram charlatanismo e exercício ilegal da medicina. E esse mesmo Código criminalizava a capoeira e o samba”, ressaltou Vilma. Também evidenciando o processo histórico, Carlos questionou: “A pergunta que faço é: quando se pensa em indígenas, se pensa em quem? Para teorias do século XVIII, indígenas estão relacionados a selvagens, primitivos em oposição aos civilizados. E essa teoria se justifica por que um desumaniza o outro, não é? E justifica também o extermínio de povos e a expropriação de seus territórios”.
Dialogando com estudos do João Pacheco de Oliveira, acadêmico do Museu Nacional (UFRJ), Carlos destacou que, em 1852, o termo “caboclo” era usado pelo Censo para se referir ao indígena “amansado e catequizado”. Em 1879, a palavra “pardo” foi usada para definir tipos de mestiçagem. Em 1891, pela primeira vez, aparece a categoria “indígena” sobre a forma do quesito cor ou raça. “Só em 2010 ocorreu o primeiro Censo Indígena no Brasil. Qual foi a ideia defendida por João? O suposto desaparecimento do indígena do conto nacional. Se sabe que, assim como na questão dos negros, é uma tentativa de apagar, de descontruir identidades. A história indígena nas cidades é tão antiga quanto a formação delas. E essa não é só uma realidade das cidades da Amazônia. Ela está no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras cidades”, defendeu.
Visão e linguagem coloniais
Vilma apontou que a opressão também se dá em vocabulários que, muitas vezes, passam despercebidos em uma sociedade engolida por preconceitos. Nesse sentido, a proposta defendida é a de não achar natural expressões como “mercado negro”, “inveja branca” ou “dia de preto”. “Se é magia negra, é vista como ruim, como maldita. Isso entra como alimento imaginário no cotidiano. O racismo também está na língua do colonizador. A língua portuguesa nos alija”, disse.
Da mesma maneira, formulações como “programa de índio” e “índio é preguiçoso” seguem sendo reproduzidas. Soma-se a essas, a noção de que o indígena somente é indígena se viver junto ao seu povo. “Quando a própria Funai [Fundação Nacional do Índio] fala de indígenas nas cidades, fala em “índios urbanos”. São desterritorializados, por que se pressupõe o lugar do indígena. E qual é esse? É na aldeia, sob a tutela da Funai. Jamais na cidade. Então, na verdade, um indígena na cidade é visto como um forasteiro, um estranho, um estrangeiro. Qual a consequência drástica disso? É a invisibilidade”, expôs Carlos. Para ele, a visão preconceituosa sobre as realidades dos povos indígenas serve muito bem ao mercado de terras no Brasil.“Chegam nos territórios com a soja, a pecuária, a agricultura, as estradas, as hidrelétricas. E aí eles perguntam: para que tanta terra para pouco índio? Não é assim que falam? ”, criticou.
Ou seja, a sociedade muda o tempo todo, mas a visão sobre o que é ser indígena permanece recortada e descontextualizada. Para contribuir com mudanças nessa realidade, Carlos realizou pesquisas em três cidades: Altamira, no Pará, por causa das violações levadas pela instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte; São Gabriel da Cachoeira, cidade que faz fronteira com a Colômbia; e Manaus, metrópole capital do Amazonas. Também faz parte dos resultados de seus estudos o documentário “A cidade indígena de São Gabriel da Cachoeira”, que fomentou os debates durante a atividade do SAAP. As lutas dos povos para valorizar suas tradições, tão centrais para a riqueza cultural brasileira, foram colocadas no centro dos debates. Aliás, muitos indígenas vão para as cidades justamente para desenvolver ações que salvaguardem seus territórios. Depoimentos demonstraram que não há necessariamente oposição entre em ir para áreas urbanas e defender seus conhecimentos ancestrais.
As propostas dos grupos apoiados pelo SAAP ressaltam que, assim como existe uma diversidade de povos e de línguas, há várias realidades indígenas no país. Dentre elas, a do indígena que veste jeans e usa celular; a do indígena que foi para a cidade fugindo da fome; se desviando da bala do fazendeiro ou da motosserra do madeireiro; ou, ainda, a do indígena que vai a universidade a fim de disputar este espaço de poder. Esse é o caso de Braulina Baniwa, da Associação dos Acadêmicos Indígenas da Universidade de Brasília (UnB). “Temos um histórico em que indígenas e negros não têm acesso à academia. Na UnB, existem até hoje professores que fazem perguntas violentas e cheias de preconceitos. Através do nosso coletivo, conseguimos dar visibilidade aos acadêmicos indígenas, conseguimos ter mais voz. Hoje, são 105 estudantes indígenas na UnB. Em 2018, chegam mais 38”, conta.
Além de atuar no interior da universidade, o coletivo se articula com outras instituições com o objetivo de conquistar políticas públicas para os povos indígenas das áreas da educação, terra, saúde, dentre outras. A ideia é também combater a lógica dos “direitos que chegam de cima para baixo”. “A partir do momento que os direitos forem construídos de igual para igual, a gente vai sentir realmente a mudança”, defendeu Braulina, que compartilhou com os outros grupos apoiados pelo SAAP os avanços conquistados pela Associação, que vão do combate às discriminações até a conquista de bolsas e outros auxílios necessários à permanência na universidade.
Questão de gênero
Durante o encontro, os depoimentos também deixaram evidente que as opressões relacionadas à religiosidade e ao racismo também são atravessadas pelo machismo e pela LGBTfobia. Vilma, que acaba de lançar o livro “Dororidade”, apontou que para mais avanços em relação aos temas é preciso que o feminismo seja cada vez mais inclusivo e interseccional. Nesse sentido, o conceito criado por ela vem a se juntar ao de “sororidade”. Sem excluir a importância deste histórico termo feminista, que significa cumplicidade, solidariedade e cuidado entre mulheres, Vilma expõe que ele, por exemplo, “não dá conta das vivências das mulheres negras”. “Dororidade vem de dor. É ela que aparece na vida da todas nós. E a dor das mulheres negras é agravada pelo racismo”, frisou.
Frente às desigualdades e opressões, os coletivos têm resistido ao se juntarem para conhecer e dar visibilidade as suas histórias. Entre as formas de se fazer isso, alguns grupos apostam na luta pelo direito à comunicação e à cultura. “Ter uma revista ou um filme em que a equipe seja formada por pessoas negras e indígenas é um orgulho”, exemplificou Alane Reis, da Revista Afirmativa. Na proposta enviada ao SAAP, esse veículo de mídia livre e independente da Bahia fez questão de lembrar que o controle dos meios de comunicação nas mãos de poucos setores econômicos é extremamente prejudicial à sociedade brasileira. Alane destacou que isso se torna ainda mais importante no atual contexto. “Temos enfrentado muitos desafios nessa conjuntura temerosa. Mas, no Brasil inteiro, encontramos coletivos resistindo ao golpe”, completou.
[1] Jornalista da FASE com colaboração de Jamilie Aragão, estagiária de Comunicação da FASE. Veja outras fotos da atividade, que ocorreu nos dias 8 e 9 de novembro, no Flickr da FASE.
[2] Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira formada pela UFRJ com pós-graduação em Ciência da Literatura.
[3] Doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ).