11/12/2005 15:42
No meio rural brasileiro, as relações sociais, historicamente complexas, ainda aguardam por transformações fundamentais para a garantia da democracia, da cidadania e da sustentabilidade ambiental. Uma delas é a construção da igualdade entre homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras. Uma via de acesso à equidade de gênero no campo parecem ser os modelos alternativos de produção agrícola inspirados na agroecologia. Comprometidos com a sustentabilidade sócio-ambiental, são modelos de desenvolvimento rural capazes de gerar renda desconcentrada.
Nesta entrevista concedida ao jornalista Fausto Oliveira, da FASE, a diretora Maria Emília Pacheco comenta a aproximação do debate sobre a agroecologia e as questões do feminismo. Como conectar discussões que sempre se travaram em eixos diferentes, mas que, na realidade cotidiana, apresentam uma proximidade desconcertante, que se pode sentir pela necessidade de mudar as relações entre homens e mulheres no campo? Não há respostas definitivas ainda, mas há um intenso debate e muita ação política se espalhando pelo interior do país.
Como movimentos e organizações vêm juntando estes dois campos de debate e ação política – agroecologia e feminismo?
Esta interação continua sendo um desafio. Durante o I Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), em 2002, um grupo de mulheres questionou a falta de equidade de gênero na composição da representação das entidades participantes e o isolamento do debate sobre as relações sociais de gênero em um grupo de trabalho – A questão de gênero no desenvolvimento agroecológico. A crítica foi sintetizada na carta apresentada à plenária que dizia:“ (…) A agroecologia, ao considerar todos os componentes dos sistemas de produção contribui para dar visibilidade ao trabalho desenvolvido pelas mulheres, que é fundamental para a sustentabilidade do sistema e para a reprodução familiar. Porém, se não colocarmos as questões apontadas pelo feminismo, poderemos visibilizar o trabalho das mulheres, sem contudo, problematizar a naturalização da divisão sexual do trabalho, baseada na idéia da complementariedade entre o trabalho desenvolvido pelos membros da família. Ao valorizar o trabalho da mulher na agroecologia podemos correr o risco de ter uma visão instrumental da questão, considerando apenas que o trabalho das mulheres pontencializa a agroecologia, sem refletir sobre o que a agroecologia pode contribuir para a luta das mulheres por sua autonomia e conquista de direitos. Consideramos importante reconhecer o papel histórico do feminismo e do processo de auto-organização das mulheres, que tem como um de seus resultados, a incorporação de gênero na pauta dos diversos movimentos e organizações”.
Esta perspectiva ecoou no ENA e foi incluída dentre as diretrizes políticas afirmadas na Carta Política na defesa de um modelo agrícola de novo tipo: o desenvolvimento rural sustentável só será possível se baseado na justiça social, na distribuição dos recursos produtivos e no uso de tecnologias que, ao mesmo tempo conservem o meio ambiente e garantam níveis de produção adequados; a agroecologia é a abordagem da gestão produtiva dos recursos naturais mais apropriada para o alcance da sustentabilidade da produção familiar; a igualdade das relações sociais entre homens e mulheres é condição essencial para a sustentabilidade da produção agroecológica.
Em sua construção histórica, a agroecologia vem fornecendo os princípios ecológicos básicos para o estudo e tratamento de ecossistemas produtivos e de preservação de recursos naturais, com uma abordagem que articula vários aspectos: (i) incentiva técnicos/as e pesquisadores/as a dialogar com o saber dos agricultores/as e identificar suas respostas técnicas; (ii) propõe o desenvolvimento de agroecossistemas baseado nas interações ecológicas, com a utilização de recursos renováveis, acessíveis localmente e com baixa dependência de insumos comerciais; (iii) valoriza a preservação e uso social da biodiversidade sustentada pela diversidade cultural; (iv) estimula o estabelecimento de circuitos curtos para o consumo de mercadorias.
A aplicação desses princípios visa assegurar, nos programas de desenvolvimento rural objetivos como: a) melhorar a produção de alimentos básicos nas unidades produtivas, fortalecendo e enriquecendo a dieta alimentar, através da valorização de produtos locais/tradicionais e conservação de germoplasma de variedades cultivadas locais; b) aumentar a diversidade vegetal e animal e promover o uso eficiente de recursos locais para diminuir os riscos; c) melhorar a base dos recursos naturais através da conservação e regeneração do solo, água, enfatizando o controle de erosão e formas de captação de água; d) garantir que sistemas alternativos resultem em fortalecimento da organização social.
As influências sobre o pensamento agroecológico, conforme nos diz Altieri, estão ancoradas nas ciências agrícolas, no movimento ambientalista, na ecologia, nos estudos antropológicos e etnografias sobre sistemas agrícolas de populações tradicionais. Estes estudos colocaram como foco o uso de recursos e manejo de toda a base de subsistência e não só das parcelas agrícolas, analisando as categorias de pensamento das populações indígenas e camponesas sobre as condições ambientais, práticas agrícolas e agroextrativistas. Enfatizaram que a organização social e as relações sociais deveriam ser consideradas com a mesma intensidade que o ambiente e os cultivares.
A partir de uma certa época, os principais formuladores da abordagem agroecológica, a exemplo de Altieri, identificaram também a importância dos estudos das feministas sobre o lugar das mulheres nesses sistemas agrícolas. Essas análises têm demonstrado que as relações entre homens e mulheres no âmbito familiar e a forma como a família é constituída e reproduzida são tão importantes quanto as relações de classe, quando se trata de explicar as diferenças sociais do campesinato, assim como a sua reprodução social. Mas está apenas iniciando no Brasil, o debate sobre a incorporação da construção da igualdade de gênero como um princípio integrado à estratégia da promoção da agroecologia.
De que maneira a característica familiar do sistema de produção agroecológico pode representar uma maior inserção produtiva e cidadã para as mulheres do campo?
Esta questão remete-nos a um debate mais amplo para ganhar coerência o sentido de sustentabilidade ambiental e social que defendemos na contracorrente do paradigma da produção dominante baseada na homogeneidade, nas monoculturas e na centralidade do mercado. Falo de um debate necessário que articule as críticas da economia ecológica à crítica feminista à economia.
A economia convencional desconhece conceitos de limites naturais, de capacidade de suporte dos ecossistemas e de equilíbrio ecológico. Desconsidera também o contexto ecológico-social e dimensões não quantitativas dos processos produtivos. Sabemos dos efeitos ambientais da chamada agricultura convencional – contaminação dos alimentos e da água; erosão genética; uso de energias esgotáveis dos combustíveis fósseis. A estes efeitos que não são medidos pelo mercado, os economistas lhes dão o nome de “externalidades”.
As diversas escolas de pensamento têm utilizado diferentes categorias para a análise socioeconômica das sociedades: sistemas econômicos, modo de produção, graus de desenvolvimento do capitalismo, etc. Mas a reprodução humana como processo social nunca foi considerada. Como nos diz a economista feminista Cristina Carrasco, para a economia dominante a sustentabilidade da vida humana não tem sido uma preocupação analítica central. Ao contrário, usualmente é considerada uma “ externalidade” do sistema econômico.
No pensamento econômico dominante tanto a natureza é vista como um bem ilimitado como o trabalho da mulher é visto como algo ilimitado, algo elástico. A centralidade da produção mercantil como objetivo econômico básico, a dependência do salário para uma parte da população e a cultura masculina do trabalho têm contribuído para obscurecer a relevância dos processos de sustentabilidade social e humana, em grande parte realizados pelas mulheres, e compreender suas conexões com a produção capitalista. Os diferentes espaços, trabalhos e atividades são hierarquizados socialmente e não têm o mesmo reconhecimento.
Este debate que implica em nova construção teórica marca os estudos feministas sob três ângulos: (i) a introdução do conceito de gênero na análise do trabalho das mulheres tem tido implicações nas teorias de mercado de trabalho e nos estudos sobre organização do trabalho; (ii) paralelamente tem sido também recolocado o debate sobre as categorias trabalho e produção para eliminar o viés ideológico que leva a subvalorizar ou não considerar o trabalho das mulheres; toda conceituação de atividade econômica deve incluir todos os processos de produção de bens e serviços orientados para a subsistência e reprodução das pessoas independentemente das relações sob as quais se produzam; (iii) a construção teórica do conceito de reprodução social como processo que implica na reprodução biológica e da força de trabalho, a reprodução dos bens de consumo e de produção, e a reprodução das relações de produção.
A dicotomia entre produção e reprodução e a questão da subordinação das mulheres, questionada como produção histórica do sistema patriarcal e do sistema capitalista, continua presente nas estatísticas, nas práticas sociais e nas políticas públicas.
As feministas mostraram também que as análises de gênero têm impacto em conceitos de análise do campesinato: a) a distribuição do produto do trabalho é mais igualitária nos sistemas de produção nos quais a mulher participa das decisões do planejamento e da forma de dispor os produtos; b) não há necessariamente correspondência entre a geração de receita e consumo; a preferência dada aos homens para o consumo de proteína é recorrente em várias situações; c) quando se expande o leque de atividades geradoras de renda nas quais as mulheres se envolvem, aumentam suas opções estratégicas; d) a família como lugar de cooperação e conflito, onde se expressam interesses distintos. Estes são alguns pontos que merecem um tratamento quando estamos engajados em dinâmicas sociais e experiências de promoção da agroecologia.
A dimensão da invisibilidade que cerca o trabalho das mulheres na área rural é bem demonstrada no estudo de Hildete Melo, que analisa as duas formas possíveis de se agrupar as informações da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios, do IBGE). Adotando-se o critério restrito, isto é, excluindo os dados dos/as trabalhadores/as ocupados/as no auto-consumo e em jornadas inferiores a 15 horas semanais, temos 22,53% de mulheres ocupadas no chamado setor agropecuário. Com a aplicação do critério “amplo”, que incorpora essas variáveis, este percentual sobre para 32%.
Novas práticas, novos valores e também novas propostas de políticas acontecem nos locais onde as mulheres se organizam de forma autônoma e participam das dinâmicas sociais, criando condições para sua participação ativa nas decisões sobre o planejamento agrícola. Vi projetos de implantação de sistemas agroflorestais, por exemplo, tornarem-se mais diversificados na medida em que as mulheres sugerem a inclusão de novos produtos, cuja importância é avaliada tanto do ponto de vista da segurança alimentar como das possibilidades de geração de renda. A participação das mulheres nesses projetos não está dada, é resultado de uma conquista, e está associada a sua capacidade organizativa.
No campo das políticas governamentais tomemos também um exemplo. Há alguns anos passados a assistência técnica oficial fazia uma diferença clara: a capacitação produtiva era para os homens, e a “do lar” para as mulheres. Foram as mulheres que, contestando historicamente essa identidade “do lar” e, reivindicando o direito de serem consideradas como trabalhadoras, começam a exigir também capacitação no campo produtivo. Ainda assim não se tornou uma prática recorrente as mulheres serem convidadas para participar de atividades de capacitação sobre gestão e manejo sustentável de recursos naturais. São chamadas muito mais para as atividades que têm caráter de trabalho doméstico.
Muitos estudos vêm sendo feitos sobre o cotidiano das mulheres nos quais estão presentes questões sobre sua jornada de trabalho, sua participação nas várias operações agrícolas. Seria importante reorientá-los, analisando, nos vários biomas, os processos pelos quais as mulheres vão se afirmando como sujeito político na gestão da produção e manejo dos recursos naturais, sob a ótica da segurança alimentar e da preservação da biodiversidade. As experiências dos movimentos de mulheres, bem como as experiências de organizações que promovem a agroecologia poderiam se constituir em objeto de debate.
O que o associativismo rural tem a ganhar com a inclusão da discussão de gênero nos projetos alternativos de produção agrícola?
Em cidadania e democracia, com certeza. O número de mulheres em organizações associativas e cooperativas ainda é muito pequeno no Brasil. Devemos lembrar que foi apenas na década de 80, que as mulheres começaram a reivindicar o direito de se associar em sindicatos. Isso já foi uma grande batalha. Havia uma resistência muito grande dos sindicatos. Nos últimos tempos há um processo de mudança da agenda política das mulheres. Na Amazônia, por exemplo, há uma Rede de Empreendedoras Rurais, da qual participam associações de beneficiamento de produtos da alimentação, do artesanato, etc. Mas este ainda é um lugar dos homens, porque a diferença entre trabalho e não-trabalho está associada com a idéia de quem detém o controle financeiro. É um lugar considerado masculino por excelência. Há um dado importante: em muitos casos as mulheres não querem se organizar em cooperativas, preferem associações menores para depois dar outro passo. A luta das mulheres para participar nessas organizações significa, antes de mais nada, um reconhecimento de sua cidadania e uma possibilidade de autonomia. Onde as mulheres têm autonomia financeira elas têm mais chance de se realizarem como trabalhadoras e cidadãs. Um bom exemplo é o movimento das quebradeiras de coco. Nas regiões onde predominam associações de transformação e beneficiamento do coco babaçu estão fundamentalmente as mulheres. São elas que estão à frente da economia do babaçu. Sempre que falamos da situação da mulher no campo temos que conjugar análises de classe e de gênero.
O lugar da agricultura familiar e do agro-extrativismo é um lugar subordinado, um lugar secundarizado. Mas tem sido exatamente a organização das mulheres que combina a luta pela afirmação de sua identidade, pela defesa de um sistema agroextrativista e preservação ambiental, que permitiu deslocar um pouco este lugar. Lutam por instituir um novo direito, expresso na consigna do babaçu livre e questionam a economia, exigindo medidas de valorização e proteção para o seu trabalho e desse bem da natureza. Quando elas se organizam, conseguem dialogar com a sociedade e os poderes públicos a partir de uma outra condição.
Entretanto, ainda falta no Brasil um levantamento sobre a participação das mulheres nas associações, grupos produtivos e cooperativas. A CUT realizou um estudo há alguns anos com relação aos sindicatos, mas sobre associações, pequenas e médias cooperativas, ainda está para ser feito.
Qual o peso político das mulheres agricultoras nas lutas por um modelo de produção agrícola sustentável?
Na análise de reconhecidas autoras feministas como Carmem Deere e Magdalena León, o movimento de mulheres na América Latina, nos últimos anos, tem dado pouca prioridade à defesa dos direitos de propriedade, em comparação com outras questões como direitos reprodutivos ou o fim da violência contra a mulher. Constatam que os principais focos de atenção são a identidade de gênero da mulher e a luta pelo reconhecimento das diferenças entre homem e mulher, associados à compreensão de que a categoria “mulher” está marcada por diferenças fundamentais de classe, raça e etnia. O surgimento da política de identidade de um modo mais amplo na era neoliberal teria afastado tanto do norte como do sul o “imaginário político da justiça”, das questões de classe, economia política e redistribuição, preponderando o domínio da cultura. Em resumo estaria havendo maior concentração em questões de reconhecimento do que em questões de redistribuição. Falando da realidade brasileira, algumas autoras têm compartilhado esta visão.
Uma interessante pesquisa da ONG Sos Corpo , sobre Trabalho e Agricultura Familiar, em várias regiões do nordeste, também nos dá elementos para este debate. Ao falar da pouca relevância atribuída à discussão sobre desenvolvimento rural no âmbito de alguns movimentos de mulheres no campo, as autoras fazem uma leitura de gênero, mostrando como temas considerados áridos por serem estruturais ou macroeconômicos pareciam encontrar limites para chegarem até as organizações de mulheres, concentrando-se nas diretorias de sindicatos ocupadas majoritariamente por homens. Quanto aos temas trazidos pelas organizações de mulheres, muitas vezes, ficaram “guetificados” em secretarias ou comissões específicas. De um outro ângulo, as autoras também avaliam que “os projetos de agricultura alternativa, por sua vez, que poderiam ser um excelente espaço de experimentação de igualdade de gênero, com poucas exceções, pouco se articulam com os movimentos de mulheres rurais. No caso específico do MMTR/NE, não há envolvimento dos grupos de mulheres que o compõem com projetos dessa natureza.”
Do meu ponto de vista, o cenário é de mudanças tanto no plano regional como nacional. É como se tivéssemos agendas políticas co-extensivas. O movimento de mulheres no campo continua lutando pelo reconhecimento da mulher como trabalhadora, mas nos últimos anos esse movimento vem progressivamente dando significados concretos para as grandes bandeiras de luta por reforma agrária e novo modelo agrícola. Há sinais claros, embora variem de movimento a movimento, de construção de proposta de agricultura sustentável que incorpora a contestação às formas de subordinação das mulheres.
Uma recente pesquisa, por exemplo, na região do Apodi, no Rio Grande do Norte, mostra que 78% das mulheres declararam sua condição de trabalhadora rural. Outras, no total de 15% ainda afirmaram que sua ocupação era “o lar”, uma realidade muito distinta, como sabemos, de anos passados, indicando seguramente a ação das organizações e movimentos de mulheres. As campanhas pelos direitos sociais das mulheres realizadas pelo Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, ou pela antiga Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais, ou ainda pelas mulheres da Comissão Nacional de Trabalhadoras Rurais da CONTAG, apoiadas por ONGs que atuam na defesa dos direitos das mulheres, seguramente tiveram e continuam tendo eco em muitos lugares desse país. Nesse mesmo contexto, observamos um sinal de permanência e outro de mudança. Se, por um lado, a comercialização continua quase exclusivamente sob o controle dos homens (92%), no que se refere à qualificação profissional, cerca de 53% das mulheres tiveram a participação em cursos, destacando-se como principais – agroecologia ( 28%), hortas orgânicas (18%) e crédito (11%).
O Movimento de Mulheres Camponesas, por exemplo, defende um projeto popular para a agricultura, através da agroecologia, da preservação da biodiversidade, do uso das plantas medicinais, da recuperação das sementes como patrimônio dos povos a serviço da humanidade, da alimentação saudável como soberania das nações, da diversificação da produção e da valorização do trabalho das mulheres camponesas. Sublinham a necessidade de fortalecer experiências de resistência para a construção desse projeto. Relacionam esta pauta com o desafio de enfrentar a cultura patriarcal machista, com suas formas de opressão, discriminação, subordinação e culpa impostas às mulheres e pobres. Recentemente, por ocasião da forte estiagem no sul, esse movimento, através de suas representações regionais, encaminhou ao CONSEA um apelo por uma aplicação de recursos específicos para plantios de mulheres. Interessante que elas estavam insistindo no apoio e na suplementação de recursos para aqueles produtos nos quais se baseia a diversidade da alimentação.
Se tomarmos também o exemplo da Marcha das Margaridas, vamos observar a ampliação da pauta política das mulheres. Permanecem colocando a centralidade das lutas pelos direitos reprodutivos e a luta contra a violência. Mas também estão assinalando propostas que apontam para um novo modelo de agricultura, com sustentabilidade, justiça social e ambiental. Em 2003, elas não só debateram alternativas para o sistema agrícola, mas também questionaram o padrão energético no Brasil. Na Amazônia, o GTA (Grupo de Trabalho Amazônico), em sua recente assembléia, no mês de março, decidiu incorporar a construção de igualdade de gênero em suas pautas e afirmou “a necessidade de fazer o levantamento do perfil do movimento de mulheres na Amazônia, incluindo a questão étnica, e das experiências produtivas de manejo sustentável, para que sejam potencializadas e disseminadas com aporte necessário de assistência técnica e linhas de crédito”.
A abertura de espaço no Ministério do Desenvolvimento Agrário, através do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, para o debate sobre a construção de uma política de acesso das mulheres ao crédito rural, está contribuindo, a meu ver para o aprofundamento da agenda dos movimentos de mulheres. A Comissão Nacional das Mulheres da CONTAG tem problematizado os limites do PRONAF MULHER, apresentando propostas para sua ampliação. Por outro lado, o Movimento de Mulheres Camponesas, tem colocado em questão a modalidade de sobreteto do PRONAF MULHES e, em última análise, o próprio PRONAF, colocando em outras bases uma proposta de financiamento que “ contemple a reestruturação das pequenas propriedades, potencializando todos os recursos existentes, canalizando para suprir a necessidade da produção de produtos de subsistência, bem como na demanda da industrialização e comercialização”. Trata-se de um importante debate que traz sinais, a meu ver de contestação da dicotomia produção /reprodução, ao mesmo tempo em que tem como base a perspectiva agroecológica.
Concluindo, há um ambiente sócio-político cultural propício para o debate e novas práticas. Há uma diversificação nas pautas e também um crescimento da ação e da prática em associações. Várias experiências e dinâmicas locais e regionais têm estimulado o debate sobre alternativas para o campo. O crescimento das organizações e movimentos de mulheres no campo, pode contribuir para frutificar o diálogo com o movimento agroecológico.
É na gestão estratégica da sustentabilidade, em suas várias dimensões – social, econômica, ecológica – como condição para a promoção da agroecologia e o desenvolvimento de projetos sócio-ambientais que a igualdade de gênero precisa afirmar-se. Isto requer a análise que relaciona a crítica feminista ao paradigma dominante da economia na defesa de uma economia do bem estar e da sustentabilidade da vida humana, com a crítica da ecologia e da agroecologia à apropriação privada dos recursos naturais, mercantilização e artificialização crescente do meio ambiente.
Retomo aqui alguns passos sugeridos por Magdalena León na perspectiva da construção da igualdade de gênero, e acrescento outros para interagir com a abordagem agroecológica: a) aprofundar análises e experiências das mulheres, organizadas em grupos, associações e movimentos, sobre a gestão da produção e recursos naturais na ótica da segurança alimentar e preservação da biodiversidade; b) visibilizar o trabalho das mulheres como agentes econômicas e a produção de informação e análise, mostrando a dinâmica de gênero no trabalho; c) incorporar o tema da igualdade no trabalho produtivo e reprodutivo nas agendas das organizações e dos movimentos e não somente no movimento de mulheres; d) visualizar as iniciativas econômicas das mulheres de gestão e acesso a recursos; e) continuar aprofundando a pauta de reivindicação sobre as políticas de assistência técnica e formas de financiamento que garantam igualdade de gênero e a afirmação da agroecologia f) demandar políticas e serviços públicos de caráter universal para o cuidado humano. A efetivação das políticas públicas no campo da saúde, saneamento, educação, programas sociais, direitos da criança e adolescente podem contribuir para melhorar a qualidade de vida no campo e criar condições mais favoráveis ao trabalho da mulher, com redução da carga de trabalho e construindo sua cidadania.