06/06/2018 23:36

Leandro Uchoas, Manoela Vianna, Catarina de Angola¹ 

O IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) reúne cerca de 2 mil pessoas, em sua maioria agricultores e agricultoras, quilombolas, indígenas, com pelo menos 50% de mulheres. É um evento de proporções grandes, assim como seus objetivos. Os participantes querem dar visibilidade a disputa de projeto de sociedade e às importantes lutas que acontecem cotidianamente nos seus territórios, destacando ações de quem está praticando a agroecologia. O Evento também deve revigorar o movimento agroecológico, reforçando o protagonismo de mulheres e jovens. Além disso, o IV ENA também quer aprofundar as conexões entre a cidade e o campo.

No contexto desta tarefa grandiosa, seminários temáticos aconteceram simultaneamente e deram destaque para experiências concretas de agroecologia apresentadas pelos agricultores e suas organizações. Foram realizados 14 seminários, com os seguintes temas: Biodiversidade: bem comum, soberania alimentar e territorial dos povos do Brasil; Educação do Campo e Construção do Conhecimento Agroecológico; Mudanças Climáticas e Agroecologia; Comida de Verdade no Campo e na Cidade: Caminhos e Diálogos entre a Agroecologia e a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN); Sem Feminismo não há Agroecologia; Agrotóxicos e Transgênicos; Direito à terra e território: conflitos e resistência dos povos do campo e da floresta; Agriculturas urbanas e direito à cidade; Comunicação e cultura: caminhos para a construção de conhecimentos agroecológicos, para o fortalecimento da democracia e para ampliação do diálogo entre campo e cidade; Saúde Integral e Medicina Tradicional; Água e Agroecologia: o papel da agroecologia na defesa das águas como bem comum; Construção Social de Mercados; Desafios e alternativas para o financiamento que viabilize  transição e consolidação da Agroecologia.

Os resultados de cada debate serão subsídios para a elaboração da Carta Política do IV ENA. Confira como foi a atividade em algumas das tendas.

Seminário Construção Social de Mercado (Foto: ANA/Reprod)

Biodiversidade: bem comum, soberania alimentar e territorial 

Hugo Lima

O seminário trouxe três experiências: desafios das quebradeiras de coco de babaçu; trajetória do Program

a Sementes do Semiárido da Articu

lação Semiárido Brasileiro (ASA); e a convivência da comunidade quilombola Corredor dos Munhoz, no bioma Pampa. Foram discutidos avanços, mas, principalmente, desafios para a defesa da biodiversidade, dentre eles o cerceamento do livre uso das sementes pelos povos que a cultivam, a defesa dos programas de acesso à água (como o Programa Cisternas), as diversas frentes legislativas que tentam esfacelar o que se conseguiu de controle do uso de agrotóxicos e também a defesa dos territórios tradicionais frente o avanço do agronegócio, da mineração e das empresas de energia, além da importância do fortalecimento da luta por reforma agrária.

Comida de Verdade no Campo e na Cidade

Cristiana Andrade

A iniciativa de 17 anos da Rede Ecológica – Movimento Social de Consumidores, no Rio de Janeiro (RJ), foi apresentada durante o seminário temático sobre comida de verdade, que traçou caminhos e Diálogos entre a agroecologia e a Soberania e a Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN). A experiência é uma rede on-line de compras coletivas, que busca evitar o desperdício e facilitar a vida do produtor rural e do consumidor. Hoje, são 12 núcleos na capital fluminense que recebem os itens e duas na Baixada Fluminense.  “A agenda de políticas públicas sobre essa temática é infinita e, para sermos atuantes, precisamos de consumidores engajados. O grande desafio é incluir mais pessoas no processo e colocar o agricultor cada vez mais próximo da população”, disse Annelise Fernandez, integrante da rede.

Para Luis Carrazza, que está à frente da Central do Cerrado, um elo de cooperativas de pequenos produtores brasileiros, com sede em Brasília (DF), é necessário provocar o consumidor e fazê-lo pensar sobre “o que ele financia quando consome comida da agricultura familiar, que não é apenas um alimento sem agrotóxico, mas que está intrinsecamente ligado à melhor distribuição de terra; à conservação dos biomas, da água e da terra; a justiça social”. A central reúne 21 organizações de oito estados e faz a comercialização dos produtos coletivamente.

Seminário Sem Feminismo não há Agroecologia (Foto: ANA/Reprod)

Comunicação e cultura

Veronica Pragana

O potencial transformador da comunicação e da cultura se fez visível: a capacidade de evidenciar relações de poder que geram opressão, violência e subjugação, mas que são naturalizadas por fazerem parte do cotidiano das pessoas. Também ficou evidente o papel dessas frentes de luta no fortalecimento da democracia, na construção de conhecimentos agroecológicos e na ampliação do diálogo entre campo e cidade.“Para defender uma sociedade mais dona das próprias forças é preciso discutir os meios de comunicação”, disse Florence Poznanski, integrante da Frente Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), de Minas Gerais.

O Grupo de Teatro Amador do Polo Sindical da Borborema, na Paraíba, fez uma esquete sobre a relação de poder construída no ambiente doméstico entre homem e mulher. Do quilombo, a liderança Sinei Martins testemunha: “através da cultura, fazemos transformação e nos fazemos notar pelos gestores que nos veem como a comunidade que atrapalha o progresso”. O projeto Curta Agroecologia, que produziu mais de 40 documentários sobre experiências agroecológicas e é resultado de uma parceria entre a Articulação Nacional de Agreocologia (ANA) e o Canal Saúde, ligado à Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), foi outra experiência apresentada. Por último, foi apresentado o projeto Terreiro Cultural, realizado no assentamento Denis Gonçalves, em Goianá (MG), com a parceria da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

Saúde Integral e Medicina Tradicional

Manoela Vianna

“Quem nunca tomou um chá? Quem nunca foi benzido? E quem nasceu de mãe de umbigo [parteiras]?”. Essas foram as perguntas provocadoras que abriram o seminário no IV ENA que enfatizou as conexões entre Saúde e Agroecologia. Lourdes Laureano, coordenadora da Articulação Pacari, afirmou que a medicina tradicional tem um lugar na agroecologia porque as pessoas que praticam essa medicina são as mesmas que cuidam do meio ambiente. Neusa representa uma iniciativa de Rondônia que existe há mais de 30 anos e hoje tem 600 multiplicadores, que disseminam as práticas da homeopatia popular.

Um desses multiplicadores é Claudiano, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Ele é responsável por divulgar em sua região tratamentos de homeopatia na agricultura e na pecuária e deu muitos exemplos de tratamentos, como no combate a carrapatos em vacas. O público também conheceu a história da raizeira Tantinha, que começou a produzir medicamentos caseiros para tratar um filho doente e seu primeiro remédio foi um xarope de folha de bananeira. Tantinha venceu a resistência inicial de seu marido, que acabou se envolvendo nas práticas intensamente.

Seminário sobre Comida de Verdade(Foto: ANA/Reprod)

Agroecologia na defesa das águas como bem comum

Camila Paula

O seminário trouxe discussõ

es acerca dos conflitos do hidro e agronegócio nos territórios e a experiência de convivência com o Semiárido e das tecnologias sociais como formas de fortalecer as resistências e criar alternativas em defesa das águas. Cleidiane Santos, do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), falou do conflito em Correntina (BA), que desde os anos 1970 vem se tornando menina dos olhos do hidro e agronegócio pela grande quantidade de águas que possui no território. Maria Teresa Corujo, mais conhecida como Teca, do Movimento pelas Serras e Águas de Minas, trouxe a preocupação com a Serra da Gandarela numa luta de 10 anos contra a mineração e o projeto Polo Minas da Vale.

Itacíria Medeiros, agricultora do Assentamento Monte Alegre, Upanema (RN), falou da experiência de auto-organização de mulheres e de reúso de água. “Lá onde eu vivo a água era salobra. Veio o programa de 1 milhão de  cisternas (P1MC) e a gente começou a juntar água da chuva para as coisas da casa. Isso muda nossas vidas porque somos nós que vamos buscar a água. Hoje, além da cisterna pra casa eu tenho a cisterna calçadão pra poder plantar no quintal e mais uma tecnologia que nós mesmas, as mulheres, que construímos: o água viva, reúso de água”, disse.

Transição e consolidação da agroecologia

Catarina de Angola

Desafios e alternativas para o financiamento que viabilize a transição e consolidação da agroecologia também foram debatidos em seminário. Entre as experiências apresentadas, estava a Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) exercida pelo Estado, contemplando um financiamento que considera o planejamento de agricultoras e agricultores familiares, distinto de um pacote já pré-determinado pelas instituições financeiras, foi apresentada pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) Paraíba.

O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) do Rio Grande do Sul trouxe a experiência do Plano Camponês, financiamento construído pelo movimento e aliado a matrizes agroecológicas. A FASE apresentou a experiência do Fundo Dema, que acontece no Pará, de financiamento e projetos coletivos de povos da floresta. Já a Rede Bico Agroecológico, do Tocantins, apresentou sua experiência de acesso ao projeto Ecoforte.

Seminário de Juventudes(Foto: ANA/Reprod)

Juventudes e agroecologia

 Mariana Santos

Com representações de várias delegações do país, as juventudes agroecológicas marcaram presença nos debates levantando pautas como a participação dos jovens na política, a importância do movimento estudantil e uma educação no campo de qualidade. Temas como o feminismo na agroecologia, a movimentação cultural liderada pelos jovens e o respeito a comunidades tradicionais e LGBTs também foram levantados durante o seminário. 

“Agroecologia é nosso futuro e é a democracia”, defendou Romário Bezerra, representante do Conselho Indígena de Roraima. A questão educacional foi tema de quase todos os depoimentos dos participantes do seminário, principalmente, frente à realidade do aumento nos números de escolas rurais fechadas nos últimos anos em todo o país. Sem bolsas nas universidades e falta de investimento em pesquisa e extensão, é cada dia mais difícil para o jovem ter condições de se dedicar à agroecologia. Em meio ao grande processo de desmonte da educação pública que o Brasil vive, defender a manutenção e a força do movimento estudantil foi demanda imediata das juventudes do IV ENA.

Sem feminismo não há agroecologia

Helena Zelic

O seminário foi um importante espaço de reflexão e compartilhamento de experiências das mulheres agricultoras, pescadoras, quilombolas e indígenas de todo o Brasil. Lideranças de organizações que compõem o Grupo de Trabalho (GT) de Mulheres da ANA trouxeram a trajetória da agroecologia feminista: como surgiram as reflexões coletivas, como as mulheres precisaram ocupar espaços na agroecologia, apesar de todo o machismo presente nestes espaços, como as pautas das mulheres se consolidaram dentro de diversos temas – vigilância sanitária, comercialização, entre outros -, que passam a ser tratados também a partir das experiências e necessidades das mulheres e adquirem um papel de intervenção e de formação de rede.

Mulheres de todas as regiões do país falaram sobre suas vivências e trajetórias, o que inclui o sucesso do uso das cadernetas agroecológicas, o resgate de sementes crioulas, o enfrentamento ao racismo, à divisão sexual do trabalho e ao controle machista de seus corpos e vidas. “Nós estamos sempre cuidando dos outros, mas quem cuida de nós?”, foi um questionamento que apareceu durante o seminário. Hoje, as mulheres atuantes na agroecologia ainda têm muitas dificuldades, mas, unidas, trilham um caminho diferente, com mais autonomia, mais liberdade e mais feminismo.

[1] Integrantes do Coletivo de Cobertura do IV Encontro Nacional de Agroecologia, que ocorreu de 31 de maio a 3 de junho em Belo Horizonte (MG). Texto originalmente publicado aqui.