19/11/2019 13:43

Francileia Paula de Castro e Laura Ferreira da Silva¹

A violência contra os quilombos do Brasil tem em sua estrutura o racismo. Um elemento estruturante das relações de poder, o racismo é parte da formação histórica do país. Neste processo, os quilombos configuram-se como símbolos da resistência e da insurgência negra, na sua origem, fundados como estratégia de enfrentamento ao sistema escravocrata, que perdura em sua essência até os dias atuais². Assim, a sociedade escravista jamais aceitou o fenômeno do quilombo. Procurou e procura de todas as formas destruí-lo³.

Quilombolas protestam em Brasília (Foto: José Cruz/ ABr)

A violência contra os povos quilombolas está estruturada não somente no Racismo Institucional, mas também através do Racismo Epistêmico e Econômico que considera a vida negra descartável e, portanto, não humana. Tanto que o Brasil ainda não conseguiu reparar a dívida histórica com os povos quilombolas e negros escravizados dos pontos de vista político e de direitos. Entre eles, a garantia do acesso à terra e a proteção de seus territórios [4]. Praticamente todas as comunidades quilombolas estabelecidas no processo de abolição da escravidão e após 1888 viveram e ainda vivem com ações que visam retirá-los de suas terras. Esse processo de expulsão das terras está relacionado com uma pressão econômica ligada à expansão do que se convencionou chamar de agronegócio, assim como está impregnada de racismo [5].

Com a constituição de 1988, o acesso à terra e território foram reconhecidos como direitos essenciais as comunidades quilombolas. Porém, foi somente em 2003 que o governo concedeu as primeiras titulações de terras coletivas às comunidades quilombolas. Isso só demonstra o quanto a garantia e acesso a direitos pelos quilombos caminha a passos lentos. Recentemente, vimos grandes retrocessos na política de proteção social, de igualdade racial, de ações afirmativas e de reforma agrária. Sem a garantia dos territórios quilombolas regularizados e reconhecidos, o acesso a outros direitos como saúde, educação, alimentação, trabalho, renda e cultura, permanecem negados. Atualmente, são 230 territórios de remanescentes que aguardam a identificação, segundo dados da Fundação Palmares.

Quilombos em Mato Grosso: entre cercas e porteiras

O município de Poconé está localizado na Baixada Cuiabana e reúne o maior número de comunidades quilombolas do Mato Grosso. Das oitenta reconhecidas até 2019 pela Fundação Palmares, 36% estão localizadas no município. Observa-se inúmeros conflitos de sobreposição, comunidades tradicionais sem documentação de suas terras, quilombos reconhecidos como assentamentos estaduais, e um avanço devastador de fazendas e empreendimentos de exploração como Mineração e monocultivos de soja, milho e outros grãos sobre estes territórios.

Jovens em atividade da FASE no quilombo Ribeirão da Mutuca. (Foto: Andrés Pasquis/Gias)

O não reconhecimento de territórios quilombolas, a não garantia do direito à terra, é a perpetuação da escravidão do povo negro. Que agora passam a ter sua mão de obra explorada por fazendeiros e empresários que representam uma elite branca de herança coronelista. A baixada cuiabana, é uma das regiões com altos índices de trabalhadores resgatados em situação análogas à escravidão. Segundo o Radar do Trabalho Escravo da Secretaria de Inspeção do Trabalho – STI, em Mato Grosso foram encontrados em condições análogas às de escravidão 6.140 trabalhadores no período de 1995 a 2018. Desta 4.133 ocorreram em situação de trabalho escravo rural. [6]

Quilombo Ribeirão da Mutuca: território de resistência

O Quilombo Ribeirão da Mutuca mantém-se na defesa do território a séculos. Nos meados dos anos de 1940, os gestores públicos do município de Nossa Senhora do Livramento (MT) convocaram fazendeiros e 80 empresários para tomada das terras na região. Com isso as fazendas cercaram as então denominadas “comunidades negras”, provocando êxodo rural com expulsão das famílias quilombolas para centros urbanos.

Apesar da opressão, algumas famílias resistiram. Isso foi essencial para a sobrevivência do quilombo Ribeirão da Mutuca, onde hoje vivem 128 famílias, número que inclui o retorno em 1992 de famílias que foram expulsas. Em 1996, o próprio governo estadual investiu em uma ação que provocou grilagem de terras e entrada de posseiros nos territórios quilombolas, acirrando os conflitos. Como estratégia de proteção, em 1997 foi criada a primeira associação da comunidade com o nome de Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Comunidade Sesmaria Boa Vida Ribeirão da Mutuca.

Um ano após o Decreto nº 4887/2003, que regulamenta os territórios quilombolas no Brasil, foi inaugurada a primeira escola da comunidade que recebeu o nome de Escola Rosa Domingas, homenageando uma das mulheres que liderou o quilombo por anos. Em 2005, a comunidade decide então mudar o nome da associação para Associação da Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca (ACORQUIRIM), com vistas a fortalecer a identidade cultural do quilombo.

Resistência cultural de quilombolas em MT. (Foto: Andrés Pasquis/Gias)

Somente em 2006 é expedida a certidão pela Fundação Palmares à Comunidade Quilombola Ribeirão da Mutuca. Fato que foi celebrado com festa e com muito siriri, uma das manifestações culturais preservadas pelas comunidades quilombolas e tradicionais do Mato Grosso. Como forma de valorizar as práticas de conservação e proteção do território a comunidade quilombola investiu na realização de atividades de sensibilização sobre a importância do modo de vida do quilombo, seus roçados coletivos, a produção de alimentos naturais, a forma de organização e os seus conhecimentos ancestrais.

Em 2009, foi realizada a primeira Festa da Banana do Quilombo Ribeirão da Mutuca, com a participação de apenas 25 pessoas. Mas a comunidade não desistiu e seguiu realizando a festa nos anos seguintes. Em 2018, ocorreu a 10ª Festa da Banana, reunindo aproximadamente 3 mil pessoas, incluindo várias comunidades e municípios vizinhos. A comunidade se tornou uma referência na preservação da cultura e história de resistência dos territórios quilombolas no estado de Mato Grosso.

[1] Francileia é engenheira agrônoma, mestre em Saúde Pública e educadora popular da FASE em Mato Grosso. E Laura é pedagoga, Bacharel em Direito, Quilombola da Mutuca e representante da Conaq. Leia na íntegra o artigo “O racismo e as comunidades quilombolas” no Relatório Estadual Mato Grosso – Fórum de Direitos Humanos e da Terra. 

[2] (CONAQ & TERRA DE DIREITOS, 2017).

[3] (FIABANI, 2012)

[4] (ANA, 2018).

[5] (PRIOSTE & BARRETOS, 2012).

[6] (STI, 2019).