06/01/2020 14:27
Grupo Carta de Belém¹
Entre os dias 02 e 13 de dezembro aconteceu a 25ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Madri (COP 25). A previsão era de que o evento ocorresse no Brasil. No entanto, o governo brasileiro, eleito em 2018, recusou-se a sediar a COP alegando indisponibilidade financeira. Em negociação com o presidente do Chile, Sebastián Piñera, a Convenção foi, então, transferida para Santiago. Contudo, em meio à desestabilização política e a onda de protestos no país a menos de um mês para a realização da Conferência, Piñera recuou da sua decisão anterior. Articulado ao governo Espanhol, e com o aval do secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), o encontro foi transferido para Madri.
Em paralelo à Conferência oficial, os movimentos sociais e a sociedade civil global costumam organizar as suas próprias cúpulas. Em 2019, a Cúpula dos Povos e a Cúpula Social pelo Clima aconteceram simultaneamente no Chile e em Madri, respectivamente.
Uma COP europeia
Mais uma vez, acabou se realizando uma COP no Norte Global, prejudicando a participação da sociedade civil latino-americana. Além disso, o governo brasileiro não organizou o tradicional estande oficial do país dentro da COP, assim como foram negadas as credenciais de delegação aos representantes da sociedade civil, prejudicando a transparência e diálogo da delegação oficial com a sociedade civil que esteve presente ao evento.
Muda a orientação da diplomacia brasileira
A COP 25 marca uma inflexão no posicionamento do Itamaraty frente à negociação. O Grupo Carta de Belém avalia que a mudança implicou em retrocessos em relação ao passado. O ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, declarou à imprensa que “O esforço do Brasil é conseguir recursos”, conforme destaca manchete do portal G1. O ministro opinou que o país deveria ser recompensado pelos resultados de mitigação apresentados e argumentou que “o país já cumpre suas metas de combate às mudanças climáticas”. Contudo, esse cenário não condiz com a realidade brasileira.
Como aponta o texto recentemente publicado pelo Grain e pelo Grupo Carta de Belém, o ano de 2019 representa o pico de queimadas na Amazônia, tendo um aumento de 34% dos incêndios, sendo 47 mil focos de janeiro a agosto. Em comparação a agosto do ano anterior, o aumento chegou a 196%. Além disso, os alertas de desmatamento subiram 55%. Também em 2019 o governo investiu na completa destruição da institucionalidade socioambiental brasileira (Dossiê da flexibilização socioambiental), e, às vésperas da COP 25, foram editados decretos e portarias que enfraquecem a governança climática e ambiental do país, excluindo a participação de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. A sociedade civil não foi chamada a participar, desconsiderando-se o papel democrático da participação social na construção das políticas ambientais.
Movimentos e organizações brasileiros na COP Madri
Como forma de denúncia e ampliação do debate sobre a conjuntura, o Grupo Carta de Belém realizou em parceria com movimentos sociais e organizações da sociedade civil brasileira e internacional três atividades na Cúpula Social pelo Clima, que ocorreu na Universidade Complutense em Madri do dia 07 a 13 de dezembro.
No dia 07 de dezembro o Grupo Carta de Belém realizou a atividade Clima, Terra e Soberania: as Narrativas Climáticas sobre os territórios do sul global em parceria do GCB com a Fase, Terra de Direitos, Grain e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Um dos temas debatidos foi o crescimento do desmatamento e das queimadas na Amazônia e no Cerrado. Durante o encontro buscou-se relacionar diretamente desmatamento, queimadas e a desconstrução das políticas territoriais e socioambientais no Brasil. A agricultura foi outro tema de interesse. Segundo estudo do GRAIN, o impacto da agricultura industrial no clima e’ de cerca de 44%, e 57% dos GEE totais são provenientes do sistema agroindustrial de produção de commodities. O último Relatório sobre Mudanças Climáticas e Terra do IPCC mensura que entre 21% e 37% das emissões globais viriam de toda a cadeia global agroalimentar.
Neste painel, Camila Moreno, do GCB, fez um resgate histórico acerca da agenda climática, destacando marcos importantes das COP e outros acontecimentos significativos para as narrativas e soluções apontadas para a crise climática, principalmente no que se refere às novas formas de financeirização desenvolvidas pelo capital, como as chamadas soluções baseadas na natureza (nature based solutions).
Em outra atividade, “Amazônia: direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais em defesa da vida e do bem viver”, Letícia Tura (Fase/GCB) apresentou dados alertando sobre a elevação do desmatamento na Amazônia e da violência contra os povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil. Tura também denunciou a ausência de governança socioambiental no Brasil e alertou sobre a reedição dos mecanismos de mercado para compensação das emissões de gases de efeito estufa (GEE) em disputa nas negociações da COP por meio do Artigo 6 do Acordo de Paris com a possível entrada das florestas no mercado de carbono, o que impacta diretamente os territórios.
No dia 08 de dezembro, foi realizado na Cúpula Social pelo Clima o debate “Ataque ao clima e os direitos humanos: o acordo comercial União Europeia – Mercosul”. De acordo com dados apresentados pela Word Green Building Council, o acordo intensificaria a crise climática provocada pelo setor da agricultura/agronegócio já que impulsiona o comércio de mercadorias que geram juntas 9 milhões de toneladas de emissões de gases.
Destacou-se também que esse acordo político ainda depende da aprovação entre os dois blocos, assim como pelos parlamentos dos países membros da UE e no Mercosul. Diante disso, fica a importância da articulação coletiva para resistir a mais um acordo comercial que, assim como a ALCA – Acordo de Livre Comércio entre as Américas, representa uma ameaça à soberania dos povos.
O acordo comercial demonstra um descompromisso dos blocos para a diminuição das emissões e, no caso brasileiro, representa uma grave ameaça com o desmatamento da Amazônia. A atividade contou com a participação do Grupo Carta de Belém, La Vía Campesina, Ecologistas en Acción, Amigos de la Tierra, Campaña contra los Tratados de Comercio e Inversión, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Entrepueblos e Word Green Building Council.
O artigo 6
Diante de um dos principais pontos das negociações da COP 25 ser em relação à regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris, no dia 09 de dezembro mais de 70 organizações assinaram a carta “COP 25 – Não aos offsets florestais no Artigo 6 do Acordo de Paris“, na qual defendem a posição histórica do Brasil contra as florestas no mercado de carbono. A carta foi assinada por movimentos sociais, ong’s ambientais, órgãos representativos, entidades indígenas e de comunidades de povos e comunidades tradicionais brasileiras e internacionais e traz argumentos do porquê os offsets florestais são uma falsa solução:
- A transformação de florestas em ativos do capital natural, monetizáveis, implica em perda de soberania sobre os territórios, tanto para as populações quanto para o Estado brasileiro. A venda destes ativos para outros países e empresas, terá implicações nos limites da governança e da autodeterminação daqui para frente.
- Os offsets florestais servem como incentivo para países segurarem a ambição de seus compromissos. Com offsets, quanto mais baixos fossem os compromissos nacionais, mais sobraria para vender, criando um estímulo para a baixa ambição.
- Não trazem benefício adicional para a redução de emissões, porque é um jogo de soma zero. Nunca são reduções efetivas, pois o que há é a compensação. O que se reduz por meio da não emissão florestal continua sendo emitido em outro setor.
- A venda de créditos de redução de emissões, onde são firmados compromissos de décadas, implicam também na hipoteca do futuro de milhares de pessoas.
- Tiram o foco do enfrentamento aos reais problemas florestais nacionais, e ainda alimentam o discurso de quem quer solapar a legislação ambiental brasileira.
Ao final das negociações, a decisão acerca dos mercados de carbono ficou para a COP 26, que será em Glasgow, na Escócia. “O modo de funcionamento dos mecanismos de mercado previstos no Artigo 6 pode implicar responsabilização dos países mais pobres no que tange ao aquecimento global. O desafio para frente é, portanto, evitar que isso aconteça sem que grandes países poluidores do Sul Global (como Brasil, China e Índia) passem impunes das suas próprias responsabilidades, sobretudo, no que se refere aos efeitos socioambientais destrutivos da indústria extrativista”, analisa Tatiana Oliveira (Inesc/Grupo Carta de Belém).
E o Chile?
O resultado da divisão entre duas cúpulas foi a invisibilidade do processo chileno, além do esvaziamento de ambos espaços de discussão, na comparação com anos anteriores. A intensidade do cenário político chileno tornou impossível resistir ao enfoque local. Realizada após a declaração do presidente Pinera sobre a instalação de uma assembleia constituinte no país, a Cúpula se voltou a esse tema.
Como produzir uma Constituição cidadã, capaz de contemplar os direitos dos povos e da natureza, é um resumo possível para as discussões ocorridas no âmbito do encontro. Mais do que um evento que aconteceu no Chile, a Cúpula dos Povos foi plenamente apropriada pelos chilenos e posta a serviço das preocupações políticas locais.
Assim, a Cúpula acabou se tornando um espaço riquíssimo para o compartilhamento das experiências regionais em relação a constituintes recentes, como nos casos da Bolívia, do Equador e da Venezuela.
[1] Publicada originalmente no site do Grupo Carta de Belém.