20/02/2020 17:24

Élida Galvão¹

Com um histórico de militância iniciado na juventude, Graça Costa, a educadora do programa da FASE na Amazônia foi legitimada a nova presidenta do Comitê Gestor do Fundo Dema. Tendo atuado na educação formal e popular ainda na juventude, Graça projetou seu trabalho para além da sala de aula, lutando contra o patriarcado, o machismo, a misoginia, em favor do empoderamento das mulheres, assim como o direito à cidade e em defesa da justiça socioambiental.

Suas vivências ao longo de um percurso que resistiu à ditadura, potencializam a construção de uma cultura política baseada na noção de comunidade e solidariedade. Em entrevista, a militante feminista fala sobre as ameaças diante de um cenário político direcionado à destruição da maior floresta tropical do mundo e a perda de direitos de povos e comunidades tradicionais da Amazônia. Em contraposição, Graça aponta as perspectivas de atuação coletiva pela garantia do Bem Viver. 

A origem do Fundo Dema se firma na luta em defesa da justiça socioambiental. O que isso significa e qual o diferencial das ações deste Fundo se compararmos a uma perspectiva de ativismo ambiental?

GRAÇA: A diferença está na relação muito direta do Fundo Dema com uma concepção que pensa os bens comuns como elementos da sociobiodiversidade, pensa a floresta, os rios, os animais, mas também reconhece as populações da floresta, que no caso, não são consideradas apenas como beneficiários dos recursos de um fundo repassador de recursos, mas ao contrário, o Fundo Dema se consolidou ao longo da sua existência como instrumento de um conjunto de ações coletivas, que constituem uma verdadeira rede socioambiental. Aos poucos, as organizações comunitárias começaram a se ver também assim, e os projetos, que na verdade, não são grandes no sentido dos recursos aplicados, se transformaram em importantes células de experimentos de muitos conhecimentos, da diversidade de produtos que a agricultura familiar pode produzir, de diferentes formas de pensar a organização popular. Então, o Fundo Dema é considerado como uma grande ferramenta na mão das populações tradicionais e dos povos indígenas, dos jovens, das mulheres, dos agroextrativistas para resultados que vão da produção agrícola, incorporando a dimensão da agroecologia, da soberania e segurança alimentar e do reconhecimento das lutas identitárias, da defesa dos territórios dos povos, e não do capital, para um cenário de construção emancipatória da luta e da existência dessas populações. Não se trata, portanto, de um ativismo ambiental apenas, mas de um compromisso com os povos, com os comuns, com o conhecimento tradicional e com uma permanente perspectiva de mudança, quando é isso que se deseja alcançar.

Qual o papel dos povos da floresta enquanto garantidores de uma sociedade do Bem Viver?

Essa é uma pergunta muito difícil por se tratar de um processo de construção não linear, com muitas complexidades. O Bem Viver é uma proposta de vida baseada na mudança de diferentes relações humanas e com o planeta, e que não se limita ao desenvolvimento como pensado no capitalismo. Para o Bem Viver que vem sendo construído pelos povos originários, o desenvolvimento não pode ser pensado como absoluto, condicionado pelas dinâmicas impostas pelo modelo hegemônico. Os modos de vida dos povos originários assinalam relações com a natureza e com os outros povos, muito diferente das relações que os ‘brancos civilizados’ estabeleceram. Em outro aspecto, a noção de Bem Viver nos ajuda a problematizar a noção de ‘pobreza’, tal como o governo nacional tem divulgado internacionalmente. Embora quase tudo que uma família indígena possua possa ser carregado nas costas, isso não deve ser confundido com pobreza. Pobreza é, antes de tudo, uma relação social. Alguém é pobre em relação a determinado padrão ou a outras pessoas. Portanto, nesse sentido, faz-se necessário superar a visão do desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico perpétuo. Ao longo dos 16 anos de existência, o Fundo Dema tem tratado da questão indígena com muito respeito, contribuiu para a construção de um fundo de apoio às iniciativas das comunidades indígenas, reconheceu a importância dos ensinamentos… Isso significa dizer que é preciso combater as injustiças, os privilégios e todos os mecanismos que geram a desigualdade. Para o Fundo Dema, a questão indígena se relaciona com a causa dos pobres e excluídos do tal desenvolvimento e, desse modo, não deve ser pensado como uma questão à parte, desvinculada dos grandes desafios dos demais povos da floresta e suas particularidades. 

Estamos vivendo uma conjuntura política de ataques e ameaças à biodiversidade e aos modos de vida dos povos da Amazônia. Como Fundo Dema se insere nesse contexto de garantia de direitos?

O Fundo Dema é um fundo de origem popular, vem da mobilização e da luta dos movimentos sociais justamente na luta contra os crimes ambientais e a favor dos direitos dos povos. Portanto, desde a sua origem é marcado pela proposta de inclusão e de luta dos grupos sociais desfavorecidos social, ambiental e economicamente. Num contexto de permanentes ameaças a estes povos, o Fundo executa uma política de apoio às comunidades e organizações sociais com editais temáticos onde favorece iniciativas coletivas voltadas para a agroecologia e a segurança alimentar, de produção de alimentos, iniciativas de proteção e defesa dos territórios coletivos em todas as suas formas, de enfrentamento ao racismo e ao sexismo, enfim… Além dos projetos coletivos comunitários que funcionam como células vivas de mudança, o Fundo utiliza metodologias que valorizam o conhecimento tradicional, a produção e a troca de conhecimentos entre os projetos, os intercâmbios de práticas e conhecimentos inovadores, mas também utiliza esta gama de experiências e iniciativas para a constituição e fortalecimento de redes e articulações, de frentes de luta como resistência ao modelo e o discurso hegemônico e a afirmação do protagonismos desses sujeitos coletivos.

O seu trabalho no Fundo Dema está vinculado a militância feminista a partir do acompanhamento da luta das mulheres e, principalmente, com a contribuição ao fortalecimento do Fundo Luzia Dorothy do Espírito Santo. Como se dá essa dinâmica da atuação com as mulheres?

Nos anos 70 e a primeira metade dos anos 80, tive minha primeira aproximação com o movimento feminista brasileiro, fiz parte de grupo de mulheres que militavam neste movimento, algumas inclusive na clandestinidade. Participei dos processos preparatórios e da produção de documentários de cunho político, que davam destaque às condições do trabalho feminino, driblando a censura com roteiros realistas sobre a opressão às mulheres, como foi o caso do filme Maria das Castanhas. Esse movimento tinha reflexos muito intensos no Pará, onde existiam feministas que tinham participado ativamente das ações de partidos clandestinos, contra a ditadura instalada. Portanto, minha militância no feminismo tem suas bases construídas nesse contexto e refenciando esse tipo de prática. É lógico que isso influenciou efetivamente a prática educativa da FASE junto com os movimentos com os quais trabalhávamos. Quero dizer que do ponto de vista da intervenção, tanto da FASE quanto do Fundo Dema, a dinâmica do trabalho com as mulheres passa a ser informada também por esses pressupostos da luta contra a opressão e o patriarcado, contra a cultura machista como pilares da exploração e opressão do capitalismo. A construção do Fundo Luzia Dorothy do Espírito Santo foi um exercício das mulheres nessa perspectiva e um grande aprendizado. A experiência do Fundo Dema também iluminou essas mulheres, que buscaram as outras, como as indígenas, para fazerem parte do processo. É fantástico como elas acolheram a agroecologia e a segurança alimentar como uma proposta mais ampla do que apenas o modo de plantar.

 Qual é o seu desafio e quais as perspectivas à frente do Fundo Dema?

O Fundo Dema acaba de elaborar o seu planejamento para os próximos três anos, com os desafios de fortalecer a notoriedade alcançada nestes anos devido a execução de uma diversidade de atividades produtivas sustentáveis, valorizar os SAFs [Sistemas Agroflorestais] baseados na agroecologia, ações de defesa dos territórios, a valorização e o protagonismo do trabalho com as mulheres, entre outras ações. As atividades só são possíveis graças aos princípios e a forma democrática praticada na sua gestão e tomada de decisão pelo Comitê Gestor, instância máxima de deliberação do Fundo. A segurança alimentar e nutricional traz para as comunidades as mudanças em torno da qualidade da alimentação que melhora também a saúde, em especial, das crianças. Formas utilizadas de solidariedade, auto cuidado e valorização dos princípios de vizinhança contribuem também para alterar as condições de vida em cada comunidade, resultando em benefícios ambientais e sociais aos comunitários. É desafio do Fundo Dema não se afastar desse caminho, avançando para fortalecer os processos e o reconhecimento do papel estratégico dos povos originários e as populações tradicionais para a manutenção da floresta em pé.

[1] Jornalista do Fundo Dema.