14/04/2020 18:02

Ricardo de Sousa Moretti  e Edson Aparecido Silva ¹

A COVID 19 está trazendo problemas de toda natureza, em especial para a população mais pobre. Mas traz também uma lição importante: a saúde tem que ser para todos, senão todos estarão ameaçados. Os sistemas públicos de água potável e de destinação adequada dos esgotos são fundamentais para a saúde. É muito importante que todos tenham acesso à água com qualidade e quantidade adequada. Recentemente, descobriram que a COVID-19 permanece nas fezes de quem está contaminado. Ainda não se sabe quão fácil é a transmissão, mas isto aumenta a preocupação de doenças nos lugares onde os esgotos são lançados a céu aberto.

Agora, uma mudança na lei que trata do saneamento está sendo discutida por deputados(as) e senadores(as), alterando bastante a lei que havia sido aprovada em 2007 e que vinha ajudando a melhorar o acesso a água e a coleta e tratamento de esgoto. Quais são as mudanças na legislação de saneamento e em que medida isto afeta a nossa vida?  Quem pode ser beneficiado pela mudança? O que se pretende com a mudança da lei atual é que o município seja praticamente obrigado a repassar os serviços de água e esgoto para as empresas privadas e que elas tomem conta do saneamento como já fazem com a energia. Atualmente os prefeitos(as), junto aos vereadores(as), com a participação da comunidade, pode escolher se é o próprio município que vai cuidar do sistema de água e esgotos, se vai repassar o serviço para uma empresa pública estadual ou se vai repassar para uma empresa privada. Aí cabe uma pergunta: Se já pode passar para uma empresa privada, porque mudar a lei?  

Atualmente, empresas públicas estaduais como a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA), Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte (CAERN) e outras, fazem o que se chama subsídio cruzado em que o dinheiro arrecado nos municípios maiores ajuda a garantir água e esgotamento sanitário para os municípios menores, ajudando a atender as populações mais pobres.

Se ocorrer a privatização como propõe a nova lei, os municípios maiores vão passar seus serviços de água e esgoto para a empresa privada, que terá como objetivo principal o lucro com a prestação de serviço. Isso vai ser muito ruim para as populações mais pobre porque será difícil fazer com que o serviço chegue onde não é lucrativo. Haverá ainda uma tendência de aumento geral da tarifa, mas em especial nos municípios pequenos.

O principal argumento utilizado por aqueles que defendem a nova proposta para ampliar a privatização é que o Brasil apresenta muitos problemas e atrasos na expansão dos serviços de saneamento, o que mostraria a ineficiência do poder público. De fato, o poder público precisa melhorar. Mas, para os defensores da nova lei, esses problemas seriam resolvidos com mais investimentos e com a eficiência e agilidade do setor privado. O que está por trás desse argumento é o interesse do setor privado de abocanhar os municípios lucrativos e rentáveis.

No Brasil, o serviço está indo bem onde já foi privatizado? E mundo afora, qual a tendência?

Os serviços das empresas privadas deixam muito a desejar seja pela sua qualidade ou pelas altas tarifas. E quem, por qualquer motivo, não pode pagar fica logo sem o serviço. Em Manaus, após 20 anos de gestão de uma empresa privada, segundo os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), publicado em 2020, quase 200 mil pessoas não têm acesso à água e a cidade tem uma cobertura de coleta de esgoto de apenas 31%, ou seja,  69% dos esgotos produzidos são lançados nos rios. Em Tocantins, a companhia estadual foi privatizada em 1998, mas opera apenas em 47 municípios maiores, pois a empresa devolveu ao Estado 78 municípios que não davam o lucro esperado. E mundo, desde os anos 2000, temos conhecimento de pelo 235 casos, em 37 países,  em que a concessão voltou para o município. São cidades que haviam privatizado o serviço e agora estão no caminho inverso. O município não conseguia controlar a qualidade do serviço e muitas famílias não podiam pagar as contas que eram muito altas.  São cidades como Paris, Berlim, Buenos Aires, Kuala Lumpur e Jacarta. Experiências de privatização da água levaram a restrições do acesso e quase provocaram uma guerra, como foi o caso de Cochabamba, na Bolívia.

E o que é necessário fazer para que avance mais rapidamente a melhora dos serviços de saneamento no Brasil?  O que fazer para assegurar que todos sejam atendidos? 

Primeiro cabe lembrar que os serviços de água e esgoto cresceram bastante no Brasil nos últimos anos. Renata Furigo, na sua tese de doutorado, a partir dos dados do SNIS, mostra que a Região Sudeste ampliou o nível de tratamento de esgotos de 46% do total coletado em 2010, para 69% em 2016. A Região Sul ampliou de 59% em 2010 para 92,9% em 2016. Mas ainda há muito o que fazer quando temos no Brasil 40% da sua população sem acesso adequado à água e 60% sem acesso a esgotamento sanitário adequado, e quando se pensa que o serviço precisa chegar efetivamente nas favelas, nas pequenas comunidades rurais e no atendimento daqueles que estão em situação de rua. Ainda há muito a ser deito e é fundamental que as empresas públicas tratem o saneamento como direito humano e não como negócio. Porém, o remédio que querem dar para o saneamento é para matar o doente.

Por que é bom ter as empresas públicas?

Para que o serviço chegue aos lugares onde é pouco lucrativo, como por exemplo, nas favelas, nos loteamentos irregulares, nas pequenas comunidades rurais. Nestes locais é caro colocar as redes e, muitas vezes, há necessidade de tarifas mais baixas. Para as empresas privadas isso significa um péssimo negócio. Nesse tempo de coronavírus, a gente viu que várias empresas públicas de saneamento suspenderam o corte de água e pararam a cobrança para a população mais vulnerável. Será que uma empresa privada que visa o lucro faria a mesma coisa? Afinal, o que interessa para ela é garantir a entrada do dinheiro.

Por que privatizar não é uma boa solução? Quem pode ser prejudicado com isto?

A princípio só as empresas privadas se beneficiarão. Todos podem ser prejudicados e para os pequenos municípios a situação é dramática. Nos serviços de água e esgoto não há concorrência- uma única empresa presta o serviço, diferente do que acontece com os serviços de celulares, em que as operadoras concorrem entre si. O morador terá que aceitar aquela empresa de saneamento e assim é forte a tendência de se elevarem os preços e acabar ou restringir a tarifa social. Como fala a Organização das Nações Unidas (ONU), a cobrança da tarifa de água e esgoto não pode impedir o atendimento a outras necessidades humanas, como a alimentação e a moradia. Porém, se a lógica é apenas do lucro, o embate é muito difícil.

A oferta desses serviços para todos a um preço acessível, é uma meta muito importante para que tenhamos saúde, inclusive para o serviço de saneamento prestado pelas empresas públicas. Isto demanda várias mudanças, principalmente na entrada de dinheiro público no setor. Mas não há dúvida que a indução à privatização da operação dos serviços não contribui para a mudança necessária. Pelo contrário, ampliará a exclusão das pessoas de baixa renda que não terão disponibilidade ou condições de pagar pelos serviços. E nesse contexto, todos estarão em risco.

Por isso dizemos não à privatização do saneamento e conclamamos os senadores a rejeitarem o projeto de Lei 4162/2019. 

[1] Ricardo de Sousa Moretti é professor do Programa de Planejamento e Gestão do Território da UFABC, integrante do BrCidades, do Fórum Direito à Cidade e do Laboratório de Justiça Territorial. Edson Aparecido Silva é secretário geral do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), integrante do BrCidades e do Laboratório de Justiça Territorial. Texto publicado originalmente no site do ONDAS, articulação da qual a FASE é parte.