18/09/2020 15:30

Eduardo Sá¹

O direito à alimentação saudável, a sustentabilidade ambiental, as questões de gênero e das populações tradicionais são algumas causas ameaçadas pelo atual governo. Com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, as políticas para a agricultura familiar continuam sendo desestruturadas, as leis ambientais flexibilizadas, as mulheres perdendo voz no governo e os povos indígenas e quilombolas, dentre outros, tiveram seus direitos ainda mais violados.

Para tratar destes temas, conversamos com a antropóloga Maria Emília Pacheco, assessora da FASE, que está há muitos anos nas mais diversas trincheiras de luta e resistência junto aos movimentos sociais. Foi a última presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que foi extinto no primeiro ato do atual governo. Além disso, é uma das fundadoras da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e integra o Núcleo Executivo do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).

Maria Emília. Foto: Gilka Resende

Na entrevista, ela alerta para a necessidade de se criar uma Política Nacional de Abastecimento Alimentar no Brasil devido aos sinais de retorno do país ao mapa da fome. Aponta a agroecologia como uma proposta estrutural alternativa ao agronegócio, de modo a harmonizar a produção agrícola com a diversidade, os povos dos territórios e o meio ambiente. Defende ainda os saberes dos indígenas, políticas públicas para a agricultura familiar e a defesa da nossa constituição para a garantia da democracia.

Quais as principais pautas da segurança alimentar e nutricional hoje no Brasil? Corremos o risco de voltar ao mapa da fome

Já em 2018 no final do governo Temer tínhamos 6,5% da população abaixo da linha da pobreza, isso significava 13,5 milhões de pessoas. Tem estimativas de que em 2019 chegamos a 13,8 milhões, e a projeção é de 7% da população nessa situação ao final de 2020. O governo está sonegando informações da Escala Brasileira da Insegurança Alimentar (Ebia), colhidos desde 2018 e tudo indica que já voltamos ao mapa da fome. Sabemos que tem aumentado de forma assustadora a pobreza e a extrema pobreza. Mesmo com o auxílio emergencial a situação é grave. É preciso lembrar que o direito humano à alimentação adequada significa ficar livre da fome e ter também a garantia de uma alimentação saudável. Não podemos dissociar essa dupla dimensão.

Estamos organizando a I Conferência Nacional Popular Autônoma por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. O coletivo elaborou um documento com aspectos fundamentais nessa agenda e se torna mais importante por ter sido feito durante esse momento tão grave e dramático da pandemia. Garantia do direito à alimentação e combater a fome em tempos de coronavírus – a vida e a dignidade humana em primeiro lugar. São prioridades em defesa da alimentação saudável, das políticas públicas agricultura familiar, da proteção aos povos indígenas e comunidades tradicionais, do abastecimento alimentar, dentre outras. Os estoques públicos de alimentos estão quase a zero. Em 2005 o Consea elaborou a proposta de uma Política Nacional de Abastecimento Alimentar. Retomar este debate público é importante.

Uma das primeiras medidas do presidente Jair Bolsonaro foi extinguir o Consea, no qual você foi presidenta. Quais implicações tem isso e qual a sua avaliação sobre o atual governo?

A extinção do Consea com a MP 870 foi o primeiro ato do governo, a chamada reestruturação administrativa, e foi uma medida extremamente autoritária. Uma imposição do silêncio à participação e controle social das políticas públicas. A cidadania foi golpeada, porque o Consea era um dos pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Era uma expressão dos ecos da cidadania e de movimentos e organizações sociais da cidade, do campo e da floresta. Expressava a sociedade pluriétnica com as suas demandas e propósitos, onde importantes conquistas ocorreram: A Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o aprimoramento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), os programas de convivência com o semiárido ( P1MC e P1+2). No Consea também debatemos a proposta da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), e a proposta de um Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos.

Você se refere muito ao valor cultural dos alimentos, poderia nos explicar sua importância?

Comida não é mercadoria. É muito recente na história o significado de patrimônio cultural, porque até a década de 90 era composto dos grandes monumentos. O critério que regia a excepcionalidade e monumentalidade era bastante elitista. Só em 2003, foi aprovada na Conferência da UNESCO a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio da Cultura Imaterial. Passaram a integrar os rituais, as produções artísticas e artesanais, a culinária, os fazeres das populações. Os sujeitos de direitos que eram discriminados passam a ser reconhecidos como portadores de cultura. É importante destacar que a Constituição Brasileira de 1988 se antecipou, porque nela os bens materiais e imateriais são portadores de referências às identidades e memória dos grupos formadores da nossa sociedade.

A agricultura industrial intensiva dos monocultivos tem produzido uma simplificação nas nossas opções alimentares, além de provocar a erosão genética e das culturas alimentares. Essa homogeneização da dieta alimentar, que é acompanhada pelo aumento do consumo dos produtos alimentícios ultraprocessados, vai gerando uma mudança do sistema da produção ao consumo. Então, falar da importância cultural dos alimentos é ao mesmo tempo insistir que não podemos perder essa memória. É urgente valorizar as diferentes tradições culinárias e ter em conta o seu valor cultural. Assegurar o direito humano à alimentação adequada implica assegurar o direito ao gosto nas diferentes nas regiões e ecossistemas do país. É preciso defender práticas alimentares que promovem a saúde e respeitam a diversidade cultural, que se articula com a conservação da biodiversidade e o direito à terra e ao território.

Os povos e comunidades tradicionais também são sempre falados por você, qual o cenário?

Temos muito a aprender com esses povos. Há uma contradição profunda, que é parte das formas de exploração e apropriação do sistema capitalista. Ao mesmo tempo que há uma negação do saber prático acumulado por esses povos sobre a complexidade dos ecossistemas e formas de trabalho, muitas vezes chamadas de improdutivas, além do preconceito e uma visão etnocêntrica sobre eles, por outro lado há uma apropriação deste saber pelo mercado. Há o interesse das empresas no patrimônio genético e nos conhecimentos tradicionais. Durante o debate no Congresso Nacional sobre o Marco Legal da Biodiversidade (Lei 13.123) formou-se uma coalizão das empresas do ramo da farmácia, da química e dos cosméticos. Com essa lei a repartição de benefícios passou a ser quase que exceção para as comunidades tradicionais, e por isso chamada de Lei da Biopirataria. Uma quebradeira de coco exemplificou: dependendo da quantidade de matéria prima no produto elas ganham 0,05% de toda a venda. E pergunta: quem sabe a quantidade de venda dessas grandes empresas? Qual a prestação de contas para a negociação? É uma apropriação privada e injusta.

E a questão das mulheres, que você também tanto aborda nas suas falas. O que destacar?

Foi também a Constituição que em 1988 consolidou a igualdade jurídica entre homens e mulheres. Garantiu às mulheres rurais o direito à titularidade de terras, serviu de base para outras regulamentações dos nossos direitos, da tipificação dos crimes contra nós, etc. E as mulheres têm um papel histórico na defesa dos bens comuns. Nos primeiros cercamentos no início do capitalismo, elas procuraram resistir e eram as principais interessadas nos bens comuns que passaram a ser cercados. No tempo da colonização há vários exemplos sobre a maneira como elas reagiam, defensoras de culturas mais comunitárias. No dia 25 de julho foi lembrado o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, que no Brasil desde 2015 homenageia a Teresa de Benguela, que se organizou uma espécie de parlamento no Quilombo do Quariterê, no Mato Grosso.

Se olharmos hoje a defesa do babaçu livre, o protocolo biocultural das raizeiras do cerrado, as guardiãs de sementes das redes e casas de semente, são lutas e ferramentas que estão intimamente relacionadas à defesa dos bens comuns. São práticas e formas de relação social e convivência que exprimem a economia da reciprocidade.

As mulheres chamam a atenção para o seu trabalho no artesanato, que é uma forma de conservação da natureza e de renda integrada às dinâmicas de produção nos diferentes ecossistemas. É preciso analisar o papel econômico, social, político das mulheres, para enfrentar o sistema patriarcal. As mulheres estão ressignificando a agroecologia. Exercitam o direito à autonomia e à auto-organização, trazem à tona os sentidos da reprodução da vida e do cuidado baseados nos princípios da economia feminista. Por isso o lema “Sem feminismo não há agroecologia”.

Em relação à pandemia, cujo contágio tem se interiorizado, como pode afetar os agricultores e principalmente os povos tradicionais como os indígenas?

Foi aprovada a Lei nº 14.021 no Congresso com plano emergencial aos povos indígenas e comunidades tradicionais, mas sofreu 16 vetos. Isso é uma desumanidade. Nega-se o direito à vida, pois entre os vetos incluía-se um capítulo sobre segurança alimentar e nutricional com oferta de alimentos e implementos agrícolas, assim como o acesso a água potável. Nosso papel como sociedade é aprender com a história, porque são povos que estão resistindo desde os efeitos nefastos da colonização. São eles que conservam a nossa biodiversidade e a diversidade dos nossos alimentos.

Estamos vivendo uma tragédia de civilização. São vidas interrompidas pelo estado violador de direitos. Um verdadeiro etnocídio. Nas primeiras medidas anunciadas pelo governo já estava implicado um desmanche da Funai, a retirada de responsabilidade na identificação e demarcação de terras, uma pressão muito grande para autorizar a mineração em terras indígenas, o enfraquecimento do Ibama e do ICMBio. O PL 2633, que ganhou o título de PL da Grilagem, é um ataque ao patrimônio de terras públicas para a transferência ao setor privado.

Quais as contribuições da agroecologia para o país? Há a possibilidade dela ter escalada como alternativa ao agronegócio?

A agroecologia é uma proposta extremamente atual, urgente e necessária. Possui uma perspectiva de mudança dos sistemas alimentares que é uma exigência. Na última década vários documentos internacionais chamaram a atenção para a encruzilhada da agricultura. Em plena pandemia em que aumenta a fome ou a falta do alimento de qualidade, o agronegócio cresce junto com a destruição. As notícias mais recentes falam dos seus resultados econômicos. Mas o agronegócio produz commodities para exportação e não a nossa alimentação. E suas externalidades como a destruição ambiental, a poluição, expulsão da terra, não são levados em conta. Por isso a agroecologia combinada com a perspectiva da soberania alimentar se apresenta como alternativa hoje e no futuro. Não é uma questão de escala e sim de perspectivas distintas que encarnam modos de vida, defesa da qualidade de alimentos, práticas produtivas que se relacionam com a natureza. No sistema dominante da agricultura, a natureza é vista para ser subjugada e dominada, enquanto na agroecologia é a busca da adaptação e harmonia com a natureza, considerando os fluxos de energia e de sucessão natural. Os princípios ecológicos regem a produção.

O relator da ONU sobre o direito à alimentação, Olivier De Schutter, apresentou há alguns anos um estudo sobre o aumento da produtividade com a diversidade. A agroecologia contribui para nutrição, reduz a pobreza rural, tem formas de adaptação à mudança climática, e traz à tona algo extremamente importante que é o diálogo de saberes.

E as políticas públicas à agricultura familiar, você pode falar sobre os últimos anos e hoje?

Um estudo da Catia Grisa (UFRGS) chama atenção para a década de 2000 quando tivemos o início de uma terceira geração de políticas públicas pautadas na construção social de mercados para a segurança alimentar e nutricional e sustentabilidade ambiental. Alguns são os que me referi, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPMBio), Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), além de várias iniciativas para as mulheres, que expressam princípios e diretrizes e dialogam com o respeito à diversidade de culturas, tradições e hábitos alimentares. Mas esses programas ou foram interrompidos ou tiveram uma redução drástica de orçamento.

E durante a pandemia, a proposta do Projeto de Lei 735 com “Medidas emergenciais de amparo aos agricultores familiares do Brasil para mitigar os impactos socioeconômicos da Covid–19” teve 14 artigos vetados pelo presidente, de um total de 16 na Lei 14.048, sancionada em 24 de agosto passado. Uma rejeição praticamente integral, mostrando a coesão do executivo na violação de direitos e na contramão das urgências e emergências que vivemos. As propostas foram fruto da articulação dos movimentos sociais que construíram uma plataforma em diálogo com organizações, redes, articulações da sociedade civil e parlamentares comprometidos com a justiça social, direitos humanos e a soberania alimentar.

Mas é preciso destacar o vigor dos movimentos agroecológicos e sociais durante a pandemia. A mobilização das organizações e movimentos sociais com redes de solidariedade e resistência têm tido um papel extremamente importante para chegar o alimento saudável em muitos lugares deste país. Um mapeamento do projeto Ação Coletiva que reúne várias organizações e articulações trará à tona seu significado e abrangência.

Há também as campanhas. Na mobilização pela retomada do PAA, proposta pela ANA, tivemos uma conquista, embora insuficiente. Foram liberados R$ 500 milhões enquanto quando em 2012 foi executado mais de 1 bilhão nas várias modalidades. Uma outra campanha também da ANA juntamente com o FBSSAN para que os governos comprem alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar tem um sentido estratégico dada a capilaridade do PNAE no país.

E no contexto das eleições municipais, A ANA está realizando um levantamento para identificar as propostas no âmbito do poder local. Conhecer programas que revitalizem a economia local, mas também compreender quais são as formas de regulação no âmbito municipal que ao ser implementadas apoiam a agricultura família e camponesa é extremamente importante.

[1] Jornalista. Entrevista publicada originalmente no site Mídia Ninja.