28/09/2020 16:05
Fran Paula, Iris Pacheco e Naiara Bittencourt¹
Em meio a queimadas e inúmeras consequências da Covid-19, o Brasil segue na contramão das orientações de órgãos internacionais para lidar com as tragédias. Não foi por acaso que nesta segunda-feira (21) se colocou em posição de confronto às recomendações do relatório sobre resíduos tóxicos na 45ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, apresentado por Marcos Orellana. Em meio às falas da sociedade civil, em apoio ao documento internacional, quatro organizações se manifestaram sobre o Brasil, dentre as dez admitidas.
Invertendo e alterando os fatos, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), discursou na Assembleia Geral das Organização das Nações Unidas (ONU), nesta terça-feira (22), onde disse ter sido vítima de uma campanha de “desinformação” e culpou indígenas, imprensa e ONGs que “politizou o vírus” e “disseminou pânico” entre a população sob o lema “fique em casa”. Porém, não citou que, até esta terça, mais de 137 mil brasileiros tinham morrido em decorrência da Covid-19.
Aspectos como esse ressaltam dados apontados pelo relatório sobre resíduos tóxicos, no qual afirma que o Brasil está numa derrocada em proteção aos bens comuns e direitos humanos, com ampliação de flexibilização normativa e da desregulamentação, já verificada na visita do ex-relator Baskut Tuncak ao país em 2019, porém acirradas durante a pandemia de Covid-19, especialmente sobre agrotóxicos. Além disso, o relatório é enfático na crítica ao fechamento de espaços de diálogo com a sociedade civil e na perseguição de defensores de direitos humanos, ambientalistas e cientistas. Tanto que recomenda ao Conselho de Direitos Humanos da ONU que realize um inquérito no país sobre resíduos tóxicos e violações.
Dentre as recomendações específicas sobre agrotóxicos apontadas, o relatório traz a necessidade desenvolvimento de planos com prazos para reduzir urgentemente o uso e a exposição aos agrotóxicos, incluindo a proibição de pulverização aérea de agrotóxicos, especialmente em áreas habitadas; a eliminação gradual do uso de agrotóxicos altamente perigosos; a criação de zonas de proteção/amortecimento e a instalação de dispositivos de monitoramento obrigatórios em torno de escolas e residências e em veículos de pulverização; o alinhamento da estrutura regulatória com os padrões e melhores práticas da OCDE e a eliminação gradual da importação de substâncias perigosas proibidas de uso no país de exportação.
Recomenda-se, ademais, o fortalecimento de corpos técnicos de cientistas independentes; a garantia de que a tomada de decisões sobre substâncias perigosas seja baseada em evidências e em princípios como prevenção e precaução; que haja publicidade e informações sobre agrotóxicos e sua aplicação às comunidades (qual, quando e onde foram ou serão aplicados) e a proteção de povos indígenas, quilombolas, pobres e comunidades em situação de risco.
O documento cobra ainda o diálogo do governo com representantes da sociedade civil e indica a necessidade de proteção de defensores de direitos humanos, ambientalistas e de instrumentos de acesso à justiça, como a criação de salvaguardas contra captura corporativa, corrupção e conflitos de interesse dentro do governo, incluindo investigação de tais alegações e proteção aprimorada de denunciantes, além do aprimoramento da responsabilização de violadores e reparação às vítimas.
Contudo, diante da sessão do Conselho de Direitos Humanos, o governo brasileiro apresentou posição de contestação ou contraposição, taxando o relatório de “político”, ao revés de demonstrar o que tem feito para garantir a saúde e segurança da população contra a aprovação desenfreada de agrotóxicos. Desqualificar o documento, questionando o seu inegável caráter técnico, demonstra a falta de compromisso do governo com direitos humanos das populações afetadas.
Os dados do relator são embasados em documento robustos produzidos tanto no Brasil como por organizações internacionais que demonstram que o país tem se tornado uma lixeira tóxica de produtos banidos em outros países, classificados pela PAN (Rede de Ação contra Agrotóxicos) como altamente tóxicos. E ainda se acrescentarmos a quantidade de agrotóxicos liberados só no governo Bolsonaro esse número já chega a 787 novos registros, muitos destes proibidos na União Europeia.
Não é possível afirmar, como fez o governo brasileiro, que temos uma forte legislação de proteção ambiental. Vemos as legislações, ou mesmo dispositivos constitucionais, serem desmanteladas pela “boiada” do veneno. Só no caso de agrotóxicos, não são poucos os instrumentos de flexibilização que avançaram amplamente nos últimos anos, como é o caso das Resoluções Colegiadas da ANVISA de 2019 que alteram a classificação toxicológica dos agrotóxicos e da Portaria 43/2020 do MAPA, que visava ao registro “tácito de agrotóxicos”.
Ainda, o relatório concretamente impacta decisões que serão tomadas em breve pelos três poderes da república. Por exemplo, a tramitação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos, que tramita no Congresso Nacional (Projeto de Lei 6670/2016), pronto para votação em plenário, que se assemelha aos planos recomendados no relatório. Ao mesmo tempo o relatório recomenda o abandono do “Pacote do Veneno”, o Projeto de Lei 6299/2002, que também já pode ser votado no Congresso e objetiva reduzir diversos mecanismos precatórios da Lei 7.802/1989.
Já em relação ao Executivo, vemos a recomendação da eliminação gradual de agrotóxicos altamente perigosos ou proibidas de uso no país de exportação. Um exemplo foi o paraquat, que a ANVISA confirmou banimento. Mas o relatório alerta para os riscos do glifosato e atrazina, por exemplo. Ou mesmo cabe o alerta para a disponibilização de dados, cada vez menos acessíveis.
O Supremo Tribunal Federal (STF), no judiciário, também julgará nos próximos meses, matérias atinentes ao relatório, como a ADPF 221 e a ADI 5553. A primeira sobre legislação gaúcha (Lei Estadual nº 7.747/1982), que indica a proibição de uso de agrotóxicos banidos nos países exportadores. A segunda sobre isenções ou benefícios fiscais aos agrotóxicos (ICMS e IPI). Também está com o STF (ADI 6137) a avaliação sobre a constitucionalidade da Lei estadual do Ceará (Lei Estadual 16.820/2019) que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos, recomendação expressa no relatório da ONU.
Diante desse contexto, nos cabe questionar: o Brasil, a partir do posicionamento de seus três poderes, vai ignorar ou acatar as recomendações internacionais e da sociedade civil organizada na defesa de direitos humanos por violações causadas pelo uso de agrotóxicos?
[1] Fran Paula é engenheira agrônoma e educadora da FASE no Mato Grosso; Iris Pacheco é jornalista e comunicadora popular do MST-MG; e Naiara Bittencourt é advogada popular da Terra de Direitos. Todas integrantes da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Artigo publicado originalmente no site Sul 21