22/10/2020 11:06

Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares¹

Vivemos a tragédia humanitária da COVID-19 combinada com a escalada autoritária do atual governo. O país saiu do Mapa da Fome em 2014 embora tenham persistido as desigualdades sociais, étnico-raciais, de gênero e as condições precárias de vida a que estão submetidas parcelas imensas da população. Mas, neste momento da história aprofundam-se e tornam-se mais visíveis as desigualdades econômicas e sociais, revelando a desproteção social por parte do Estado, o que já vinha ocorrendo com as medidas de austeridade fiscal como a Emenda Constitucional 95/2016 de “teto de gastos”. A pandemia desnudou os impactos da realidade neoliberal.

Maria Emillia Pacheco, assessora da FASE. Foto: Arquivo pessoal.

O desmonte de programas e políticas públicas construídos com base no princípio do Direito Humano à Alimentação vão levando de volta o país para o Mapa da Fome. Estima-se que ao final de 2020 sejam 14,7 milhões de pessoas padecendo do flagelo da fome, ou seja, 7% da população. Cresce a fome, mas também o sobrepeso e a obesidade como expressão da má nutrição. Atualmente, 55,7% da população adulta do país está com excesso de peso e 19,8% está obesa.

São tempos de recorrente afronta à Constituição. Há uma crescente criminalização dos movimentos sociais com atos de despejo e de reintegração de posse. Um cenário que se agrava também com a fragilização das instituições, a flexibilização da legislação fundiária e ambiental acompanhada do esvaziamento da capacidade de fiscalização dos respectivos órgãos, aumentando a concentração de renda, terra e a devastação ambiental. Cresce a liberação de agrotóxicos, queimadas e desmatamento.

Em lugar de medidas protetivas, por parte do Executivo, vemos decisões de caráter neocolonialista e etnocida expressas no desrespeito ao direito de existência livre dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e comunidades tradicionais. São negadas propostas emergenciais para garantir a segurança alimentar e nutricional em plena pandemia. Foi o que ocorreu com os vetos do Presidente ao direito à água potável, e o fornecimento de cestas de alimentos, sementes e ferramentas agrícolas (Lei 14.021/2020). Estas propostas estavam incluídas no plano emergencial em favor dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais aprovado no Congresso Nacional. Em uma ação contra esta omissão do poder público, pela primeira vez na história, depois de 520 anos, assistimos à sustentação oral no Supremo Tribunal Federal de um advogado indígena representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), na ação de defesa dos territórios para proteger a vida indígena.

O executivo vetou também praticamente toda a proposta das “Medidas emergenciais de amparo aos agricultores familiares do Brasil para mitigar os impactos socioeconômicos da COVID-19” (Lei 14.048/2020) que havia sido aprovada no Congresso Nacional. Elas incluíam, dentre outras, a proposta de Fomento Emergencial para estruturação de unidades produtivas familiares e implementação de tecnologias sociais como as cisternas de acesso à água; concessão do benefício Garantia-Safra; criação de linhas de crédito especiais e medidas de prorrogação e repactuação de dívidas; proposta de um Programa de Atendimento Emergencial à Agricultura Familiar (PAE-AF), para promover o abastecimento emergencial de pessoas em situação de insegurança alimentar por meio de produtos adquiridos da agricultura familiar. A mobilização social para a sua construção estava expressa na “Plataforma Emergencial do Campo, das Florestas e das Águas em Defesa da Vida e para o Enfrentamento da Fome diante da Pandemia do Coronavírus”, fruto do diálogo com organizações, redes, articulações da sociedade civil e parlamentares comprometidos com a justiça social, direitos humanos e a soberania alimentar.

Diante desse cenário que nos move para ações de protesto contra as medidas que negam o sentido do Dia Mundial da Alimentação, perguntamos: mas então o que há para comemorar? 

Foto: Wellington Lenon

A resposta reside na pujança das organizações e dos movimentos sociais que dinamizam redes de resistência e solidariedade. Muitas toneladas de alimentos in natura da agricultura familiar e camponesa estão chegando aos bairros populares, e também sob a forma de preparações culinárias em marmitas e cafés matinais para populações em situação de rua. Os gestos de solidariedade e de cooperação financeira, no plano comunitário, se expressam nas “vakinhas virtuais”, em doações em redes de cestas básicas e produtos de higiene. Em breve teremos um dimensionamento sobre o que representam essas iniciativas. A “Ação Coletiva: comida de verdade- aprendizagem em tempos de pandemia”, que envolve várias redes e fóruns, está mapeando as experiências de abastecimento alimentar protagonizadas por organizações populares, coletivos, redes e movimentos sociais, do campo e da cidade que, mesmo durante a pandemia, tem garantido que a comida de verdade chegue à população.

O livro “Pandemia e Território”, recentemente lançado pela Nova Cartografia Social da Amazônia, com registros etnográficos e iconográficos sobre indígenas, cujas aldeias estão localizadas em perímetros urbanos e em seus próprios territórios identificados e demarcados; quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, comunidades de fundos e fechos de pasto, comunidades atingidas pela exploração mineral e grupos de pequenos agricultores e extrativistas mostra-nos que há uma economia não contabilizada da pandemia. Ela leva em conta o funcionamento de formas de solidariedade, de ajuda mútua e de autogestão na circulação de produtos agrícolas e extrativos, que asseguram uma maior autonomia das comunidades e contribuem para relativizar o peso das tutelas que submetem os povos e comunidades tradicionais aos mecanismos de controle ancorados em fundamentos colonialistas.

É importante também comemorar a forte reação da sociedade contra medidas autoritárias. Falamos aqui da ampla mobilização de repúdio, talvez a maior durante a pandemia, contra a Medida Provisória nº 910, sobre medidas de regularização fundiária em grandes áreas públicas, com estímulo à grilagem. Esta proposta autorizava a destinação de terras públicas federais de até 2.500 hectares sem licitação e com dispensa de assinatura de confrontantes e a preços abaixo do valor de mercado com graves ameaças aos direitos territoriais das populações. Esta MP foi retirada de pauta no Congresso Nacional por pressão social, mas há um PL nº 2.633/2020, que mantém basicamente seus conteúdos.

As campanhas em defesa de programas estruturantes da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional como o Programa Aquisição e Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) também devem ser destacadas. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) desencadeou a campanha pela retomada do PAA com adesão de centenas de organizações. Foram liberados 500 mil reais, uma conquista parcial e insuficiente. O Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional juntamente com a Articulação Nacional de Agroecologia vem desenvolvendo a campanha “Agricultura Familiar é Saúde na Alimentação Escolar” , com o objetivo de mobilizar forças sociais para incidência no plano estadual e municipal para que os governos cumpram o que determina a lei 11.947 do Programa Nacional de Alimentação Escolar, sobre a compra dos alimentos da agricultura familiar, em lugar de distribuir voucher às famílias para a compra em supermercados.

A imposição do silêncio à participação e controle social das políticas públicas com a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) afasta-nos da democracia e mostra que a agenda do DHAA não consta como prioridades do atual governo.

O CONSEA foi um dos pilares da concretização do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Contribuiu ativamente para a aprovação da Lei 11.346 de setembro de 2006 e estabeleceu definições, princípios, diretrizes e objetivos da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Expressão dos ecos da cidadania, das vozes do campo, da floresta e da cidade, o CONSEA com sua composição de 2/3 de representantes da sociedade civil mostrou o sentido de uma sociedade pluriétnica que requer um espaço de concertação intersetorial entre estruturas de governo e sociedade para a definição de investimentos públicos para corresponder à valorização do caráter multidimensional da questão alimentar como política de Estado.

Entre seus legados distinguem-se a proposta do PAA, as mudanças do PNAE, o apoio ao “Programa Um Milhão de Cisternas” (P1MC) e o “Programa Uma Terra e Duas Águas” (P1+2); a inclusão, na Constituição brasileira, da alimentação como direito humano, em 2010; a defesa da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), em 2012. As mesas de controvérsias sobre temas de interesse da sociedade como os impactos dos agrotóxicos, de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e a questão da Reforma Agrária, da demarcação dos territórios indígenas e quilombolas.

A elaboração de propostas de política de agricultura urbana e de abastecimento alimentar colocou na pauta o desafio de construir a interação entre o direito à cidade e a questão alimentar. O CONSEA também dedicou atenção sobre o papel de regulação do estado com relação à publicidade de alimentos para crianças, e rotulagem nutricional, que se relacionam com o controle da obesidade.

A prática do CONSEA, nos anos passados, mostrou que o país precisa de mais democracia para enfrentar a fome e a má alimentação. Neste momento da história, constituímos um coletivo de organizações da sociedade civil que está ativo, realizando um processo de mobilização da Conferência Popular por democracia, direitos e soberania e segurança alimentar e nutricional com incidência no Congresso Nacional, elaborando posicionamentos, aprofundando debates de vários temas em atividades virtuais e participando em campanhas O contexto pré-pandemia já alertava sobre riscos dos sistemas alimentares dominantes. A Comissão de cientistas da Revista médica The Lancet fala de Sindemia Global, ou seja, a uniformização global de padrões de produção e consumo alimentar em consequência da interação de três fenômenos que geram ou agravam doenças em todo mundo: obesidade, desnutrição e mudanças climáticas.

Em 2009, o relatório “A agricultura em uma encruzilhada” do importante Painel Internacional de Avaliação do Papel do Conhecimento, da Ciência e da Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento (IAASTD, na sigla em inglês), composto por mais de 400 cientistas de todos os continentes, falou sobre a necessidade da substituição dos métodos da agricultura industrial por métodos que promovam a biodiversidade e beneficiem as comunidades locais. Afirma ainda que mais alimentos e de melhor qualidade podem ser produzidos sem que sejam destruídos os meios de vida rurais e os recursos naturais. 

Na história recente, formaram-se os impérios alimentares de que nos fala Van der Ploeg que geram crises agrárias e alimentares permanentes, entrelaçando três processos: a progressiva industrialização da agricultura; a introdução do mercado global como princípio ordenador da produção e comercialização agrícola e a reestruturação da indústria de processamento, de grandes empresas de comercialização e de cadeias de supermercados².

A pandemia chama atenção para esta realidade e sobre os vínculos entre a saúde humana e a nossa relação com a natureza. Convida-nos a aprofundar a análise de uma agropecuária industrial baseada no uso intensivo de fatores artificiais, tais como agrotóxicos, hormônios e antibióticos, que degradam, desmatam, contaminam e desumanizam com a desterritorialização. A emergência de agentes patógenos como a COVID-19 se conecta com o altíssimo desenvolvimento da criação industrial, em grande escala, com o confinamento de animais domésticos como frangos e porcos.

Há grandes desafios a enfrentar no debate e embate de propostas de cultivar, nutrir e se alimentar, especialmente no contexto de crescente mercantilização e artificialização da produção ao consumo. O modelo econômico hegemônico é baseado na ilusão de crescimento ilimitado que sistematicamente viola a integridade dos ecossistemas, expresso na visão de dominar e de subjugar a natureza. Mais recentemente, ganham terreno as chamadas soluções baseadas na natureza da Nova Economia Verde, atribuindo à natureza um valor monetário. Quantificação, apropriação e compensação são os métodos apregoados para soluções que atendem aos interesses de acumulação capitalista. Estamos também constatando a ideia de se afastar da natureza para preservá-la, com a proposta dos alimentos pós-agro, dos alimentos plant-based meat, que começam a disputar o mercado.

Como contraposição, a Agroecologia, como ciência e movimento social, propõe o desenvolvimento de práticas de conexão com a natureza dos sujeitos de direito do campo, das florestas, das águas e das periferias urbanas. A territorialização dos sistemas agrícolas e alimentares biodiversos melhora a saúde, potencializa as economias locais, valoriza as culturas alimentares e a conservação e manejo de nossa biodiversidade para a defesa de nossa soberania alimentar. Mas falamos também das dimensões sociais e políticas da agroecologia, colocando no centro o caráter das relações sociais, questionando as desigualdades de classe, gênero e étnico-raciais. Em sociedades patriarcais e racistas,  cuidado é sistematicamente desvalorizado e sua contribuição para a manutenção do sistema capitalista é invisibilizada. Por isso, a importância do sentido político da agroecologia em diálogo com os princípios e práticas dos  movimentos feminista e antirracista.

Finalizando, é importante lembrar, que em julho de 2018, o CONSEA recomendou ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), manifestar-se favorável à adoção da “Declaração de Direitos para Camponeses e Camponesas e outras pessoas que trabalham em áreas rurais”, do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A Resolução foi adotada pela Assembleia Geral em 17 de dezembro de 2018, lamentavelmente com a abstenção do Brasil, que em anos anteriores vinha se manifestando favoravelmente. Esta conquista dos movimentos sociais liderados pela Via Campesina nos vários países e continentes é resultado das lutas pela soberania alimentar e podemos associar ao sentido da frase recentemente afirmada pela liderança indígena Ailton Krenak: o amanhã não está à venda”³.

[1] Entrevista publicada originalmente no Cadernos OBHA de outubro.

[2] Van der Ploeg – Sete teses sobre a agricultura camponesa, in Agricultura Familiar Camponesa na construção do futuro, Paulo Petersen. (org.), Rio de Janeiro, ASPTA, 2009.

[3] Krenak, Ailton – O amanhã não está à venda, Companhia das Letras, São Paulo, 2020.