09/11/2020 13:17

Franciléia Paula de Castro¹

Poderia ter escolhido um título diferente para esse texto, mas não há possibilidade de pensar a saúde do corpo separadamente de tudo que nos rodeia. 

Para quem cresceu vivenciando o poder de cura através das matas, das árvores, das folhas, plantas e da lua, vejo os saberes deixados pelos meus ancestrais resistirem ao tempo. Entre a alimentação, chás, ervas, cascas, garrafadas e banhos, tudo vai fazendo sentindo nas práticas preservadas pela minha mãe e aprendidas com minha avó. Conexão que é preciso ser mantida e uma responsabilidade que já assumi para a vida.

O conhecimento sobre os remédios do mato, como aprendi a chamá-los desde criança, são vastos e riquíssimos, utilizados na maioria das vezes de forma preventiva. A seiva ou vinho do jatobá, tem período certo do ano para ser extraído. É por esse calendário da natureza que planejamos os preparos de xaropes feitos em casa, que ainda recebe o majestoso coração da bananeira, que aliás não pode ser retirado de qualquer maneira.
 
Já ouvi dos mais velhos que se a pessoa carrega maldade no coração e tenta extrair a seiva do jatobá, não encontrará nada, o Jatobá não aceita injustiça! Os xaropes dependem da florada das árvores nativas e das chuvas, as garrafadas que fortalecem o sistema imunológico dependem do mel produzido pelas abelhas e da preservação da Sucupira e suas favas. Tudo está conectado para que obtenhamos a condição de saúde. Nesta relação, vou vivenciando saberes e práticas de cuidado a todo tempo.
 
Ao anoitecer, meus pais já anunciam que é preciso parar, olhar e pedir saúde à lua nova que desponta no céu: Lua Nova, lua de São Clemente vista para os meus olhos e saúde para os meus dentes! 
 
Consigo descrever a cura nos banhos de ervas que mamãe prepara, o cheiro da alfavaca no cabelo, a hortelã do mato exalando pelos poros. É regeneração automática. “Cultura e Saúde” se encontram diariamente nas nossas rodas do Tereré, uma bebida de origem indígena (Guarani) e basicamente composta da erva mate e água gelada. Uma guampa recebe a erva e uma bomba leva o liquido curtido em cascas e ervas digestivas conhecidas pelo poder de cura pelo nossos mais velhos.
 
Nas lembranças de minha mãe sempre surge a vovó preparando para os filhos a casca do Paratudo, fervida ao leite e rapadura para o combate de vermes. Nas minhas, sempre surge minha mãe aos primeiros sinais de gripe e tosse, com chás diversos e as milagrosas gotinhas de óleo de copaíba, um potente expectorante natural.
 
Queimadas e memórias

Esse ano, o fogo destruiu milhares de hectares das nossas florestas que viraram cinzas. Não foi possível pedir saúde para lua quando a fumaça, por dias, encobriu o céu. Não sabemos se encontraremos hortelãs do mato, jatobás e abelhas no próximos anos. Adoecemos com o Pantanal e tememos pelo futuro.

Quem foi que disse que somos seres independentes do nosso meio? Insistimos em separar o ser humano da natureza e estamos pagando um preço alto por isso, nós e o planeta.

Tal como os órgãos do corpo humano que em mal funcionamento emitem alertas, cada ser vivo desse planeta é um termômetro de saúde. “Lá se foi o vagalume desaparecendo, a chuva que não veio, a mamangava que não polinizou, a onça que fugiu, a cigarra que não eclodiu e silenciou”E se a nossa saúde depende desse equilibro, no caos o adoecimento também será coletivo.

É importante que a gente assuma um pacto de proteção aos recursos naturais e o meio ambiente para que possamos manter a saúde do nosso corpo e do corpo da Terra.

Vídeo – Relato: A saúde do Corpo da Terra
[1] Quilombola, pantaneira, engenheira agrônoma, mestra em saúde pública, integrante da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e educadora da FASE em Mato Grosso. Esse texto foi publicado originalmente no site Ancestralidades.