05/03/2021 19:04

Alcindo Batista e Rosilene Miliotti¹

Bruna de Oliveira

A gaúcha Bruna de Oliveira, nutricionista e sócia fundadora da “Crioula curadoria alimentar”², escolheu a profissão ainda no ensino médio porque queria combater a fome. “Quando eu entrei na graduação, tive contato com as pancs [plantas alimentícias não convencionais], e esse foi o segundo divisor de águas na minha história, relacionando as pancs com a segurança alimentar e nutricional, reconhecendo esse conceito como uma estratégia de emancipação alimentar e também de ofertar para as pessoas, ricas ou pobres, campesinas e urbanas, possibilidades alimentares que estão fora do sistema agroalimentar”, conta.

FASE: O que te faz continuar?

Bruna de Oliveira: Acredito que a alimentação é um padrão ecológico universal, que todo mundo come ao mesmo tempo em que também é alimento. Acredito que o meu trabalho é uma forma de expressão do alimento que faz bem para a terra. Nesse sentido, me inspiro também em diferentes mulheres pesquisadoras que atuam na área de antropologia da alimentação, da sociologia da alimentação e de etnonutrição, que são conceitos que reconhecem a alimentação como um fenômeno social político, econômico e cultural, não somente biológico.

Agora, na pandemia, é preciso ser atento e forte para conseguir alimentar a população. É preciso ser criativo para colher as diferenças e poder garantir o direito humano à alimentação adequada para o maior número de pessoas, isso é o que me inspira.

FASE: A mulher é sempre vista e colocada no lugar do cuidado, de cuidar do outro e, às vezes, ela nem se cuida. Você se vê nesse lugar?

Bruna de Oliveira: Eu percebo, pelo menos na minha história, que a minha mãe foi uma mulher extremamente feminista dentro do conceito tempo-espaço que ela viveu e ainda vive. Para mim, ela é o exemplo do apreço do cuidado, do espaço que ela ocupou e ocupa. Eu entrei para a nutrição porque minha mãe me ‘obrigou’, mas foi uma das coisas que quando a mãe faz, a gente não entende na hora, e depois percebemos que foi uma decisão que precisava ser tomada. Hoje eu vejo, na história da minha mãe e na minha história junto a ela, um lugar de mulher que cuida, que zela pela sua prole, pela sua família, mas ao mesmo tempo faz o que quer. Está no lugar do cuidado porque quer.

Minha mãe teve filhos porque quis e segue cuidando dos filhos porque é um desejo dela. Cresci em um ambiente em que eu sei que eu escolho o lugar que eu quero estar e eu me vejo nesse lugar de cuidado, mas de um cuidado coletivo, não necessariamente com filhos. Gostaria que todas as mulheres pudessem ter essa possibilidade de escolher quem cuidar e por quem ser cuidada. Entretanto, é delicado esse lugar do ‘não vou cuidar’, refutar o cuidado para não endossar o lugar do cuidado como lugar da mulher, é complexo, mas precisamos criar esses espaços de cuidado e de ser cuidada.

A mulher, por vezes, trabalha uma, duas, três, quatro jornadas e tem que ser forte para cuidar, acho que é isso que a gente precisa, em certa medida, lutar por condições de ser o que é, cuidar se quiser e ser cuidada. Essa dimensão do cuidado numa perspectiva mais abrangente que não restrita a uma família totalmente aceita, socialmente mais estabelecida.

FASE: Continuando nesse tema, quero saber o que você acha da expressão “sem feminismo não há agroecologia” e como você percebe a atuação das mulheres na luta pela segurança alimentar?

Bruna de Oliveira: Sem feminismo não há agroecologia justamente pelo fato de as mulheres ocuparem um espaço fundamental na produção, no beneficiamento e na comercialização dos produtos e alimentos. O direito humano à alimentação adequada é dever do Estado e direito das pessoas, e a mulher tem esse lugar de também produzir, de estar à frente nesses processos, de beneficiar alimento, e na luta por reforma agrária. A Marcha das Margaridas, por exemplo, é um evento que reforça e fortalece a luta e a presença das mulheres na agroecologia e no campo. A mulher é aquela que garante o direito humano à alimentação adequada da sua comunidade. Existem estudos que falam sobre a agrobiodiversidade e o uso de plantas negligenciadas ou subutilizadas como estratégias de segurança alimentar e nutricional, reconhecendo a mulher nesse papel de sanar essa demanda, seja pela agricultura, seja pela culinária ou pela comercialização. Não é um essencialismo, não são todas as mulheres ou só por ser mulher que necessariamente isso vai acontecer, mas há estudos que mostram a importância da mulher na garantia do direito humano à alimentação das crianças e das pessoas que fazem parte do seu contexto familiar.

Assim como nos mostra o documentário ‘Sementes’, a participação das mulheres como guardiãs de sementes crioulas  também é uma forma de endossar e fortalecer a presença delas no campo. A presença da mulher na agroecologia, para mim, é um pouco disso. (Há também) outras mulheres de outros segmentos como pesquisadoras, ativistas que desenvolvem as suas práticas em favor da segurança alimentar e nutricional, e eu cito a professora  Elisabetta Recine, que foi a última presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), extinto em 2019; e a também ex-presidenta do Consea, Maria Emília Pacheco, assessora da FASE. Todas mulheres que representaram esse conselho, instância importante para as questões de segurança alimentar e nutricional do país. Mulheres presentes e atuantes também nos processos de políticas públicas. Boa parte das nutricionistas que trabalham com o Programa de Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são mulheres. Então, há uma presença importante dentro do sistema de segurança alimentar e nutricional, na militância, na produção de conteúdo e na produção de conhecimento.

FASE: Pensando mais um pouco na sua profissão, você já encontrou barreiras para atuar como machismo ou racismo?

Bruna de Oliveira: O racismo é estrutural, então é inevitável que eu não viva situações de racismo e, por vezes, são coisas sutis que causam efeitos profundos. Eu já tive diferentes situações em que o racismo estava explícito no meu local de trabalho, ou por uma deslegitimação dos outros em relação a mim, pelo fato de eu ser uma mulher negra, ou pelo fato de existirem alguns espaços de instituições de ensino e pesquisa em que também há um preconceito, uma deslegitimação pelo fato de você não ter pós-graduação e isso ser razão para que seu trabalho seja questionado. Já o machismo se expressa toda vez que alguém quer te corrigir ou não considerar que você saiba algo só por ser mulher, essas situações acontecem de diferentes formas.

Por que negros tem os maiores índices de hipertensão ou diabetes? O fato de não termos muitos estudos associado a raça/cor também é uma expressão do racismo e, enquanto nutricionista, é importante que tenhamos o conhecimento para também cuidar e tratar dessas famílias. Nesse sentido, isso também é o racismo estrutural que recai sobre mim enquanto profissional. É uma coisa que se retroalimenta, tanto pessoas que não fazem parte dessa categoria profissional quanto a mim que estou nessa categoria. O modo como vou trabalhar, como vou contribuir com a saúde do povo negro, são responsabilidades que se colocam e que, em certa medida, também contribuem para um adoecimento mental, por exemplo. Eu falei de mim, fui para atuação e voltei para mim porque eu acho que esse é o fluxo do processo de profissionais de saúde, está tudo atrelado às suas condições de trabalho.

FASE: A pandemia escrachou as desigualdades e que agora se aprofundam ainda mais. Os números de fome e desemprego não param de subir. Como você avalia a questão da segurança alimentar durante a pandemia e o impacto na vida das mulheres?

Bruna de Oliveira: É desesperador (riso de nervosa). A fome está no alimento que tem o preço aumentado, no desemprego dessas mulheres, e pelo não acesso a políticas públicas que as crianças recebem, como o PNAE. Concordo muito que as mulheres são esses corpos que estão na linha de frente e estão sentindo o baque, porque existem pesquisas de insegurança alimentar e nutricional que afirmam que, normalmente, a mãe ou o responsável deixam de comer para que suas crianças se alimentem. A gente vê que os níveis insegurança alimentar e nutricional, com certeza, vão aumentar, já estão aumentados por essa conjuntura nada popular. Na verdade um genocídio, que inviabiliza às crianças e às mulheres o acesso à alimentação mínima. A pandemia acirrou muitas carências da população.

O auxílio emergencial acabou há dois meses. Ao que parece, vai voltar mas com valor reduzido, e as famílias vão ter que escolher o que fazer com o parco recurso. A gente está chegando num momento de morte, de desespero e, felizmente, mas reconhecendo que ainda não é eficiente, existe uma movimentação da sociedade civil de distribuição de cestas básicas e marmitas solidárias. É importante que a sociedade civil esteja articulada, mas reconhecendo que nada substitui a política pública. Precisamos unir forças, porque esse governo não vai fazer nada. A população e a sociedade civil organizada vão ter que estar cada vez mais unidas para minimizar esses efeitos, para que as pessoas não morram de fome, além da Covid-19.

FASE: O que você deseja para todas as mulheres nesse 8 de março?

Bruna de Oliveira: Desejo descanso, porque na atual conjuntura política, social e econômica que estamos vivendo, é muito difícil que a gente tenha a mente ou o corpo minimamente descansados para conseguir se levantar e agir. Eu desejo descanso e esperança, porque em meio ao caos que estamos vivendo, a gente precisa ter muita esperança para continuar e buscar forças, refúgio nas redes de apoio.

Que no 8 de março, e em todos os dias possíveis, sejamos rede de apoio para outras mulheres. Que sejamos um refúgio de acolhimento, de conversa, porque nós estamos precisando de alguma coisa. São tantas necessidades que precisam ser supridas, que é preciso que a mente e o corpo estejam sadios para conseguir continuar lutando. E existir, neste contexto, é resistir. Esperança e descanso! 

[1] Estagiário, sob a supervisão de Claudio Nogueira, e jornalista da FASE.

[2] Empresa social que trabalha com alimentação ecológica, segurança alimentar e nutricional e também com plantas alimentícias não convencionais (pancs).