23/09/2021 23:47

Carol Ferraz e Raquel Casiraghi

Na última segunda-feira (20), a Frente Brasileira contra os Acordos Mercosul-UE e Mercosul-EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre ou European Free Trade Association/EFTA, em inglês) realizaram o “Aulão Mercosul-UE: o acordo da desigualdade”. A Frente é composta por 106 entidades da sociedade civil brasileira, entre elas a FASE, que assinam um manifesto contra o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia e convoca o Congresso brasileiro a promover um amplo debate com a sociedade sobre os impactos do acordo.

Pela manhã, o grupo composto, principalmente, por militantes de movimentos sociais e representantes de organizações civis, se aprofundou sobre os aspectos gerais do tratado e os reais impactos para a economia brasileira. Adhemar Mineiro, da Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (REBRIP), lembrou o histórico desse processo, que iniciou com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), sendo o Acordo-Quadro de Cooperação Mercosul-União Europeia assinado em 1995 como pontapé do processo, e avançou com o Acordo Marco em 1999, definindo os caminhos das negociações.

Adhemar ponderou que a discussão do Acordo Mercosul-UE vai muito além do comércio. Também envolve diálogo político e cooperação entre as partes, pontos que deveriam ter sido debatidos com mais rigor no fechamento da negociação em 2019 por trazerem cláusulas que reafirmam a democracia, sendo que “o Brasil, principal país do Mercosul do ponto de vista de importância geopolítica, tem um governo que não está de acordo com esses princípios democráticos”. Ele ainda destacou a “perspectiva colonial” trazida pelo tratado, em que os produtos primários enviados do Mercosul são trocados por produtos de alto valor agregado produzidos na Europa – mesma premissa que consta em outro acordo negociado entre Mercosul-EFTA.

O Acordo Mercosul-UE foi negociado, agora precisa ser ratificado, mas para isso seus defensores enfrentam dificuldades de aprovação por alguns governos e parlamentos tanto europeus quanto os da América Latina. Marta Castillo, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez uma análise histórica para compreender os impactos que o tratado pode trazer para a indústria brasileira, setor que está entre os mais ameaçados por essa tentativa de abrir mercados. Entre 2005 e 2020, a participação dos produtos manufaturados na exportação reduziu de 80% para 55%, ao mesmo tempo em que se ampliou a participação de produtos agrícolas e minerais, ou seja, houve uma queda nas exportações de produtos com alto conteúdo tecnológico. Isso também se deve à diminuição da participação dos EUA e da América Latina como destino das exportações brasileiras e da ampliação da China – apenas três produtos responderam por 24,8% das exportações totais brasileiras. Embora a Europa tenha perdido espaço, ainda é destino de 15% da nossa produção.

Nesta relação desigual, as commodities agrícolas e agropecuárias representam 46% das exportações, enquanto 58,8% das importações brasileiras são de produtos mais sofisticados produzidos pelo bloco europeu. Para Castillo, essa estrutura demonstra porque o Mercosul resistiu tanto tempo em firmar acordo e abrir o mercado industrial, reforçando a consideração anterior de Adhemar sobre a “perspectiva colonial”. “Esse acordo, por um lado, abre parcialmente o mercado para nossos produtos agrícolas e, por outro, dá acesso a um competidor muito mais poderoso do que as empresas do Mercosul no mercado industrial, além de limitar muito a capacidade dos governos do bloco fazerem políticas industrial e tecnológica”.

Acordo que favorece o agronegócio e as multinacionais

À tarde, a coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da FASE, Maureen Santos, destacou que o Acordo Mercosul-UE inova em relação a Acordos de Livre Comércio anteriores ao trazer a agenda do clima, determinando que os países dos blocos se comprometam a implementar o Acordo de Paris (de 2015). No entanto, ela pondera que não é descrito como será feito e nem quais serão as implicações para os países que não cumprirem suas metas, tornando essa medida pouco efetiva. “Só colocar um capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável sem dizer como será feito, baseando-se em outro acordo [de Paris] que ainda está bastante frágil do ponto de vista de sua implementação, é uma coisa muito vaga”, critica.

Maureen salienta a ausência de compromisso com os princípios da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e os benefícios que o agronegócio terá neste tratado comercial com a eliminação de tarifas alfandegárias e com o aumento da quota de produtos que poderão ser exportados à Europa. Cadeias produtivas das principais commodities brasileiras, entre elas a de soja, café torrado, arroz, milho, cana de açúcar (via comércio de açúcar e etanol combustível e para uso industrial) e carnes bovina e de aves, serão beneficiadas. A tendência é de que a expansão do agronegócio aumente o desmatamento florestal e a degradação de outros biomas, emitindo ainda mais gases de efeito estufa. A segurança e soberania alimentar dos brasileiros também pode estar em risco, caso os produtores prefiram exportar produtos da alimentação básica, como o arroz, porque terão mais lucro no mercado externo do que abastecendo o mercado interno.

O interesse dos europeus é utilizar o acordo Mercosul-UE para expandir seus mercados e aumentar a competitividade das empresas multinacionais. Para isso, querem avançar sobre os setores de serviços públicos dos países da América do Sul, especialmente o postal, de telecomunicações e do sistema bancário. “Pensemos na discussão da privatização dos Correios e da Eletrobrás hoje no Brasil e como a agenda interna do nosso país também pode vir a ser respaldada pela assinatura desse tratado. Não dá para pensar, separadamente, a política nacional, governo, Congresso e interesses colocados, e o tratado Mercosul-UE. As agendas são semelhantes”, analisa Gabriel Casnati, assessor da Internacional de Serviços Públicos (ISP).

Outro ponto chave é que o Acordo quer garantir o fim das políticas de compras públicas empregadas pela União, estados e municípios. No Brasil, essas ferramentas são importantes para desenvolver cidades distantes e estimular a agricultura familiar (como o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos) e pequenas e médias empresas, principais geradoras de emprego e renda no país. As multinacionais e empresas europeias querem o fim dessas políticas para, assim, eliminar as concorrências nacionais. Casnati também apresentou estudos e dados de acordos de livre comércio semelhantes ao Mercosul-UE, como o NAFTA (entre EUA e México) e o UE-Colômbia, em que as promessas de gerar milhares de empregos não foram cumpridas e os salários médios prosseguem baixos ou tiveram reajustes ínfimos.

“Direitos humanos não podem ser subordinados aos acordos de livre comércio”

A presidenta da Amigos da Terra Brasil e integrante da Comissão do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) sobre violação de direitos dos povos por grandes empreendimentos, Lucia Ortiz, expôs como o Acordo Mercosul-UE irá impactar ainda mais os territórios das comunidades e povos tradicionais. Ela apontou a incoerência do tratado, que pretende promover melhorias na sustentabilidade produtiva de commodities agrícolas direcionada para o Mercosul, enquanto as empresas produtoras de agrotóxicos, muitas provenientes da Europa, como a Basf, Bayer e Syngenta, pressionam localmente para a liberação e venda desses químicos. Outra incoerência é que o Acordo se coloca como um “Acordo Verde” visando a sustentabilidade, porém prevê o aumento da exportação do etanol pelo Brasil, cuja produção é baseada na monocultura da cana-de-açúcar, cadeia marcada pela violação dos direitos humanos, recordes de trabalho escravo e de concentração de terras. Também abordou que o risco atual do fim das políticas de compras públicas, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional da alimentação Escolar) já ameaçadas neste governo, atingem diretamente as mulheres.

“Se os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, não podem ser subordinados aos interesses empresariais transnacionais, ou mesmo ser objeto de barganha ou interpretação na negociação de acordos comerciais”, defendeu Ortiz.

A Frente Brasileira contra os Acordos Mercosul-UE e Mercosul-EFTA está organizando atividades e articulando a resistência contra a ratificação deste tratado de livre comércio, que será prejudicial à população dos países latinoamericanos e ao meio ambiente. As entidades aguardam a realização da audiência pública sobre o tema, já pedida pela frente e aprovada no Congresso Nacional. A Frente Brasileira também está em contato com as organizações da sociedade civil europeia que estão reunidos na Campanha Transatlântica “Stop UE-MERCOSUL” e com a coalização suíça para discutir o Acordo Mercosul-EFTA.

No dia 21 de outubro, às 14h, está prevista uma plenária da Frente Brasileira contra os acordos para seguir planejando e organizando a luta.