18/01/2023 15:58
*Paula Schitine
Paraense raiz, filha de uma mãe agricultora de descendência indígena e de um pai pescador líder comunitário, vinda de uma família de 13 irmãos, a nova coordenadora da FASE Amazônia, Sara Pereira, é fruto de muita resistência e luta por justiça social. Formada em Letras e Direito pela Universidade Federal do Pará, a trajetória de Sara é admirável mas, infelizmente, comum para uma pessoa nascida na zona rural ribeirinha das águas da Amazônia. Aos 11 anos, deixou a zona rural e foi estudar na cidade de Santarém, onde teve que trabalhar como babá para se sustentar longe de sua família.” Essa realidade é a de muitas meninas que têm que sair do aconchego da família, na zona rural e estudar na cidade porque não é atendida por uma política que garanta a educação no campo”, analisa.
Mas, a bravura e a doçura podem andar acompanhadas, e esse é o retrato de Sara Pereira. A menina que se espelhava no pai, enquanto estudante, entrou para movimentos sociais, pastoral da juventude e associação de moradores. Até conseguir seu primeiro mandato eletivo na FAMCOS (Federação das Associações de Moradores e Organizações Comunitárias de Santarém), que tinha forte atuação com as lutas urbanas, Lá chegou à presidência, permanecendo no cargo por dois mandatos e foi nesta experiência que Sara teve o seu primeiro contato com a FASE.
Começo na FASE
Ela conta que a atração pelos trabalhos da organização foi natural. A FAMCOS foi procurada pela FASE para uma parceria e foi aí que Sara começou a sua jornada, como público da FASE, participando dos programas de capacitação para lideranças comunitárias. “Tinha um programa de políticas públicas com módulos e Inter módulos de formação e intercâmbio onde eu pude conhecer outros territórios com as mesmas temáticas e depois integrei o Programa Gênero, Políticas Públicas e Feminismo. Depois destes eu fiz várias outras formações e foi então que eu me encantei por esse trabalho de educação popular”, lembra. “O que a gente estudava, debatia nos programas de formação da FASE não tinha na escola e nem na universidade, e eu pensava que era exatamente isso que queria uma educação que fosse transformadora, autônoma, proativa, não uma educação que engesse, que enquadre, que limite, então eu disse ‘esse caminho da educação popular que eu quero’. Então, eu tinha esse sonho de trabalhar na FASE”, admite.
Olhar de uma amazônida
A FASE é uma organização que atual há mais de 50 anos na Amazônia e essa região é continental, assim como o estado do Pará. Mas, segundo Sara, trabalhar numa perspectiva amazônica, e com um papel de articulação panamazônica, que é o papel da FASE, é fundamental. Por isso, ela analisa a sua nova colocação como estratégica para a organização. “Trazer a experiência de uma educadora que não estava na capital e sim numa região que hoje em dia é onde está o centro da disputa territorial pelo grande capital, desses projetos desenvolvimentistas de mineração, soja, mercado de carbono, é trazer essa minha experiência de luta na região, e na articulação de processos políticos com diversos outros sujeitos que estão na linha de frente da resistência em campo e que tem essa efervescência da luta política no dia a dia”, analisa.
Novas perspectivas
A FASE entra em 2023 tendo uma nova conjuntura política numa retomada do processo democrático, e enfrenta todos os desafios principalmente de ataques recentes à democracia. “Como a gente também está nesse processo, a perspectiva de trabalho da FASE também é de retomada, de luta por direitos, políticas públicas básicas que foram destruídas nesses quatro anos de desgoverno e retrocesso, na questão social, ambiental, territorial. Então temos desafios enormes, ainda mais para nós que estamos aqui na Amazônia, porque foi um período muito cruel pro Brasil todo, mas mais evidente para os povos tradicionais, originários, amazônicos, que colocaram, literalmente, seus corpos na linha de frente e tiveram seus territórios arrasados, violados, usurpados o tempo inteiro”, lamenta.
Outro desafio é o de olhar a região com um olhar mais amplo e complexo porque a Amazônia não é apenas a floresta. “Quando se ouve falar da Amazônia, a gente percebe que tem uma visão romanceada: a Amazônia como floresta, como água, abundante. Mas a Amazônia também é uma região de muitos conflitos urbanos, somos uma região que tem cidades enormes como Belém, Manaus, grandes capitais do norte. E também as cidades médias que estão em expansão, como Santarém, Altamira, que são regiões muito impactadas por grandes projetos e tem consequências não só na vida dos povos indígenas e quilombolas mas também daqueles que moram nas cidades, em que as demandas por políticas públicas urbanas, de moradia, transporte, mobilidade, saneamento estão num verdadeiro gargalo, porque aumenta a população mas os municípios não dão conta de suprir essas demandas”, avalia.
Ministério dos Povos Indígenas
A posse recente da líder indígena, Sônia Guajajara ao Ministério dos Povos Indígenas foi celebrada e as perspectivas de um futuro com mais justiça ambiental aumentam “A gente vê com muita esperança, acho que essa é a palavra: esperança. Eu e a Sônia temos uma relação pessoal, de amizade, de luta, e a gente sabe o quanto é significativo ter pela primeira vez na história do Brasil um Ministério dos Povos Indígenas comandado por uma mulher indígena. E isso é de um significado enorme não só para os povos originários, mas para as mulheres brasileiras, porque historicamente os povos indígenas foram apagados, subalternizados, e eu acho que essas conquistas do ministério é um reconhecimento do governo Lula que esse segmento dos povos tradicionais foi um sinônimo da resistência”, considera. “A gente sabe que não é apenas uma formalidade, mas um compromisso de atendimento de demandas reprimidas por séculos, desde que o Brasil foi colonizado temos uma gama de demandas territoriais. Sônia é uma guerreira na força, na capacidade de articulação política, e a gente se vê nela. É uma de nós que está lá”, conclui.
Candidatura de Belém para COP30
Sara considera o anúncio do presidente Lula de que Belém será a candidata oficial à sede da COP 30 (Conferência das Partes, a conferência da ONU sobre clima), como uma grande conquista. “A gente fica muito feliz, mas por outro lado temos consciência do desafio que é e do que isso significa para nós, porque a Amazônia virou preocupação mundial há muito tempo por causa da crise climática, mas a gente precisa que quem esteja preocupado com a Amazônia conheça a Amazônia, e conheça pela voz dos amazônidas, pela pluralidade desses povos que são indígenas, agricultores, extrativistas, pescadores. Enxergar a Amazônia real para além da Amazônia utópica, sonhada. A gente tem uma Amazônia que a realidade se impõe para além dos nossos desejos utópicos. Então é muito importante que a COP seja realizada aqui para que as autoridades que decidem sobre políticas climáticas no mínimo escutem o que os povos amazônidas têm a falar sobre isso”, espera.
Liderança feminina e feminista
Como feminista, Sara Pereira sabe muito bem as lutas dos movimentos e das mulheres individualmente por direitos e espaços de poder, mas reconhece que é muito desafiador assumir um cargo desta amplitude e importância. “Embora nós mulheres sejamos a maioria do povo brasileiro, ainda somos minoria nos postos de poder, sejam cargos políticos ou organizações da sociedade civil. Então ter uma mulher no comando de uma importante unidade de uma organização como a FASE, e uma mulher amazônida, ribeirinha, feminista, mãe solo, é representativo porque se ainda somos minoria nos postos, somos maioria na base dos movimentos”, lembra. “São as mulheres maioria nos sindicatos, colônias de pescadores, associações. No entanto quando vamos para cargos de chefia eles são dedicados aos homens, e isso não é à toa, é resultado de uma sociedade patriarcal que ensina aos homens desde que eles são crianças que os espaços de poder são dedicados a eles. E romper com esse processo, ocupando cada vez mais os espaços de discussão e decisão política é um grande desafio para as mulheres, mas que nós aceitamos, ousamos e podemos”, reconhece. “Então nesse mesmo clima do esperançar, das mulheres no comando de organizações que possam ter esse olhar que rompe com as opressões patriarcais, machistas, racistas, lgbtfóbicas. Nós mulheres conseguimos ter esse olhar que amplia, que agrega, que soma e um olhar que rompe com essas opressões. Estar nesses espaços é reafirmar o compromisso da FASE com um novo ciclo da história brasileira, com mais mulheres em posições de poder para ampliar o exercício político na busca efetiva da equidade de gênero”, conclui.
*Paula Schitine é jornalista da comunicação da FASE