03/05/2023 14:31

*Mário Manzi

Nesta terça-feira (02), primeiro dia do encontro “Nós: as águas corpos-território em lutas por justiça ambiental”, foram apresentadas as pessoas e organizações que representam a luta pela água no Brasil. O evento tem como objetivo criar um espaço plural e aberto para o diálogo em torno da questão da água e sua relação com as lutas por justiça ambiental e social.

Ao longo do evento, que ocorre até o dia 4 de maio, temas caros à questão hídrica serão debatidos. Neste primeiro momento, foram destacadas questões como o papel do Estado e das empresas na gestão dos recursos hídricos, especialmente em relação à captura e contaminação das águas, o racismo ambiental, a resistência ao ecocídio das águas e ao genocídio dos povos que dependem delas.

Dentre os temas debatidos, foi abordado o consumo da água pelo agronegócio. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a atividade agropecuária é a principal consumidora de água doce no mundo, responsável por cerca de 70% do uso total. No caso do Brasil, esse número chega a 72%. A informação é alarmante e chama atenção para a necessidade de se repensar o modelo de produção agrícola adotado no país, levando em consideração não apenas os aspectos econômicos, mas também ambientais e sociais. Nos debates, foi evidenciado que muitas vezes a situação de uso das águas pelo agronegócio não é colocada em pauta no debate público, especialmente quando é abordada a crise hídrica que afeta diversas regiões do país.

Racismo ambiental

A questão racial foi debatida à luz das lutas por justiça ambiental no Brasil e no mundo. Cris Faustino, do Instituto Terramar (CE), ressaltou que “não se pode mais ignorar o fato de que o racismo ambiental está presente em diversas situações em que há a degradação do meio ambiente e a violação dos direitos. E isso não é uma coincidência”. Em sua fala, Faustino fez um histórico sobre o processo de formação da nossa sociedade, sobre uma base econômica escravista, que promoveu e promove formas de perpetuar a desigualdade e a exclusão social, sobretudo da população negra.

Nesse contexto, a proteção ambiental deve perpassar a importância das comunidades negras, que historicamente foram desrespeitadas e sofreram as consequências da degradação ambiental de uma forma ainda mais grave. Para Cris é necessário, portanto, uma abordagem mais ampla que considere a questão racial em todas as dimensões da luta por justiça ambiental, uma vez que a destruição do meio ambiente e a violação dos direitos afetam de forma desproporcional as comunidades mais vulneráveis e marginalizadas, em especial as comunidades negras e indígenas.

Marco Hídrico

O Projeto de Lei 4546/2021 tem sido alvo de críticas por parte de especialistas em gestão de recursos hídricos, que apontam para um retrocesso na legislação ambiental brasileira. O projeto, tema da fala de Ruben Siqueira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Regional Bahia, pretende alterar a Lei de Recursos Hídricos, e traz em seu conteúdo mudanças na forma como se dá a outorga do uso hídrico, abrindo espaço para a privatização da água e, consequentemente, para o surgimento de mais conflitos pelo uso desse recurso essencial.

Além disso, Siqueira destacou que o projeto não leva em consideração a emergência climática que o país enfrenta, tampouco as questões raciais e de justiça ambiental, deixando de lado a necessidade de uma gestão eficiente e sustentável dos recursos hídricos. O mercado de outorga do uso hídrico, já presente em alguns estados, é um exemplo claro de como a privatização da água pode trazer prejuízos à sociedade e ao meio ambiente, afirmou.

Diante disso, para ele, é fundamental que o debate em torno da gestão dos recursos hídricos seja ampliado, considerando as implicações socioambientais e econômicas envolvidas, bem como a participação efetiva da sociedade civil e das comunidades tradicionais, consideradas “protetoras-guardiãs, na construção de soluções sustentáveis para a questão da água no Brasil.

Sistema de outorgas

Um dos principais problemas na gestão dos recursos hídricos no Brasil, conforme provocação puxada por Pedro D’Andrea, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), é o uso indevido das águas provenientes de aquíferos. A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) estabelece que a utilização dessas águas deveria garantir a preservação e disponibilidade para as presentes e futuras gerações destes recursos.

No entanto, na prática, o que se vê é o mercado de outorga do uso hídrico movido pelo lucro e pela busca desenfreada por água. Empresas de diversos setores, como do agronegócio, da mineração e da indústria, têm pressionado cada vez mais pelo acesso a esses recursos, muitas vezes sem respeitar as regras estabelecidas pela PNRH ou aproveitando brechas na política em questão.

A falta de fiscalização adequada e a impunidade em relação às infrações cometidas são identificadas como promotoras do uso indevido das águas dos aquíferos, assim como a falta de dados robustos sobre o uso dos recursos hídricos, o que pode levar à sua exaustão, comprometendo a disponibilidade de água para as gerações futuras.

Na discussão foi apontado que haja uma mudança de paradigma na gestão dos recursos hídricos, priorizando a preservação e a sustentabilidade, em detrimento do lucro e da exploração desenfreada dos recursos naturais.

Encontro

A escuta das comunidades foi sistematicamente considerada no primeiro dia do encontro, uma importante oportunidade para lideranças e organizações envolvidas na questão se conectarem, trocarem experiências e discutirem estratégias em busca de soluções para os desafios enfrentados. “Nós: as águas – corpos-território em lutas por justiça ambiental” ocorre entre os dias 02 e 04 de maio de 2023, no Instituto São Boaventura, em Brasília (DF), e apresenta-se como um marco para o debate sobre a gestão dos recursos hídricos no Brasil, e é promovido pela FASE, junto com a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) e a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

 

*Especial para a FASE