Tatiana Ferreira Reis
08/11/2023 11:29
Propostas para projetos de crédito de carbono estão chegando aos territórios de populações tradicionais do Baixo Tocantins e no Nordeste do Pará, como em outras áreas da Amazônia, mesmo sem a existência de regulamentação do Estado, nas esferas federal, estadual ou municipal. Essas propostas, realizadas por meio de grandes empresas que atuam no mercado internacional de créditos de carbono, têm provocado muitas dúvidas, desinformação e desavenças entre os membros das comunidades tradicionais.
“Este é um debate completamente novo nas comunidades e as propostas chegam aos nossos territórios com muitas palavras difíceis. Sabemos que nossos direitos estão em um campo de disputas sobre o mercado de carbono e neste momento precisamos do apoio do poder público e dos nossos parceiros, como a FASE, que ao longo dos anos nos ajudou muito com as formações que envolvem esse tipo de situação”, explica Marciane Pastana, liderança da Associação da Comunidade Remanescentes de Quilombo do Ramal do Bacuri (Arquiba), de Abaetetuba.
Diante do problema, denunciado ao Ministério Público do Estado do Pará pela Coordenação da Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo (Malungu), a Promotoria de Justiça Agrária da 1ª Região realizou, no dia 26 de outubro, na Câmara Municipal de Abaetetuba, audiência pública sobre o tema com objetivo de identificar as possíveis violações de direitos humanos, fundiários e socioambientais dos projetos de mercado voluntário de carbono em terras públicas e coletivas, em especial, nos territórios quilombolas localizados na área de abrangência da 1ª Região Agrária, com sede em Castanhal.
A mercantilização de créditos de carbono se propõe a promover a conservação de áreas de florestas, de várzea e de outros espaços em territórios de povos e comunidades tradicionais por meio de pagamentos voltados à preservação, no entanto, essas propostas podem envolver a perda da autonomia dessas populações sobre seus territórios e os recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução social, cultural, física e econômica.
“Estamos atentos porque o mercado de carbono não tem nenhuma regulação no Brasil e alguns contratos estão estabelecendo duração de 30, 40 anos, o que é muito tempo. Precisamos ouvir todos os lados e, principalmente, os anseios, as dúvidas e as denúncias das populações envolvidas, neste caso os quilombolas”, explicou Ione Nakamura, promotora de Justiça da 1ª Região Agrária.
A defensora pública Andreia Barreto, coordenadora da Defensoria Agrária de Castanhal, observou durante a audiência que os direitos de povos tradicionais são regidos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Esse tipo de contrato precisa da consulta prévia, livre e informada, sendo que o Estado é o responsável por realizá-la, pois existem muitos interesses divergentes em jogo. Além disso, o Brasil ainda está construindo uma legislação sobre mercado de carbono, pois é preciso proteger também os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade”, esclareceu a defensora, ao se referir ao PL 412/2022, que pretende regular o mercado de carbono no Brasil e encontra-se em tramitação na Câmara Federal.
Vanilson Cavalheiro, morador do quilombo Bom Remédio, em Abaetetuba, integrante da Frente de Defesa dos Territórios do Baixo Tocantins, lembrou que diversas comunidades da região passaram por longos processos de construção do seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada. “Exigimos que este documento seja respeitado e nossos direitos sejam resguardados diante de mais uma ameaça aos nossos territórios”, advertiu Vanilson, mostrando aos participantes da audiência o Protocolo Comunitário de Consulta Prévia, Livre, Informada, de Consentimento e Veto do Bom Remédio.
Sara Pereira, coordenadora da FASEAmazônia, alertou que o mercado de carbono promete uma redução de emissões questionável, pois mesmo após aderirem a esse mecanismo as grandes empresas permanecem gerando emissões de gases do efeito estufa. No final, a redução não seria tão significativa quanto é propagado pelas empresas que compõem o setor.
“Não podemos comprar falsas verdades, como o discurso de que os pequenos produtores da Amazônia são os principais responsáveis pelas emissões ao fazerem a queima controlada para prepararem suas roças. Isso não é verdade porque essas técnicas são historicamente utilizadas para o desenvolvimento das suas atividades econômicas e de subsistência. A prova disso é que, na situação atual, a Amazônia permanece prestando serviços ambientais pro mundo todo e os territórios tradicionais são os menos desmatados”, observou a coordenadora da Fase Amazônia.
Ivanilde Silva, coordenadora da Cáritas Brasileira Regional Norte II, enfatizou a importância do diálogo nos territórios seguindo as orientações previstas nos protocolos de consulta. Reforçou que as associações não podem assinar contratos sem que as comunidades sejam escutadas. “É de extrema importância respeitar os processos que garantem autonomia e esse diálogo não é só entre homens, mas precisa envolver as mulheres, as crianças, a juventude e os idosos”, pontuou Ivanilde.
Entre as polêmicas suscitadas na audiência, destacou-se a apresentação de representantes da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Gurupá, município do Pará, que desenvolve projeto de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD+) com a empresa Carbonext, que também enviou representantes à audiência. A apresentação foi questionada por enfatizar apenas pontos positivos do projeto. Ficou prevista uma visita ao território quilombola de Gurupá com a presença da Promotoria Agrária de Altamira e Núcleo de Questões Agrárias e Fundiárias do MPPA, bem como Malungu e a DPE para conhecerem de forma mais detalhada a experiência apresentada na audiência pública.
O pesquisador Carlos Ramos, doutorando do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares, da Universidade Federal do Pará (INEAF/UFPA) apresentou informações sobre os projetos que acompanha como pesquisador e lembrou do caso mais recente ocorrido em Portel, no Marajó, amplamente divulgado na imprensa local e nacional em que empresas brasileiras e três estrangeiras (uma americana, uma canadense e uma britânica) usaram terras públicas na Amazônia para lucrar, de forma irregular, com a venda de créditos de carbono para gigantes multinacionais. Os créditos foram usados por dezenas de multinacionais para compensar emissões de gases do efeito estufa. A situação foi levada à Justiça pela Defensoria Pública do Estado.
Wilma Ferreira, liderança do quilombo Ramal do Piratuba, destacou as mazelas que os territórios quilombolas estão enfrentando na Amazônia com ausência de políticas públicas capazes de cumprir direitos como saneamento básico e assistência à saúde, entre outros problemas. “Esses projetos chegam sempre prometendo avanço, desenvolvimento, mas não é o que ocorre. Dois linhões atravessam nosso território, sem contar com a previsão do projeto da ferrovia e nunca fomos ressarcidos. É uma luta conseguirmos ser ouvidos pelo poder público municipal e nunca somos atendidos nas nossas necessidades”, denunciou.
A Prefeitura Municipal de Abaetetuba enviou seu procurador jurídico à audiência, mas não houve a participação da prefeita nem de representação da Secretária de Meio Ambiente, ausências que foram referidas pela promotora Ione Nakamura. Participaram da audiência representantes de associações quilombolas de Abaetetuba, Gurupá e Cametá, Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STTR) de Abaetetuba, entidades da sociedade civil como Cáritas, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON), Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), além da FASE e da Malungu.
Também compareceram Procuradoria-Geral do Estado do Pará (PGE), Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos (SEIRDH) e Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (IDEFLOR-Bio), assim como vereadores de Abaetetuba. Estiveram presentes ainda Defensoria Pública Agrária, Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual em Abaetetuba e professores e pesquisadores do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (Ineaf) e do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), ambos da UFPA.
*Colaboradora da FASE Amazônia