Maiana Maia
07/03/2024 18:26

A violência contra as mulheres, (ou pior!), as múltiplas e interconectadas violências contra as mulheres estão postas como um elemento inquestionável da nossa realidade, operando em todas as escalas e ambientes. A nível de país, de continente, de mundo, numa comunidade rural ou na megalópole, dentro de casa, no ônibus, na rua, no ambiente de trabalho, na escola, na universidade, na política, nos hospitais, nos tribunais, nos relacionamentos: não há um único lugar, a não ser nos nossos corações e na letra de algumas legislações, onde esteja assegurado que meninas e mulheres possam gozar de uma vida livre de violência.

Conforme apontam, ano após ano, os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de feminicídio mundial – o que significa dizer que uma mulher é morta a cada 3 horas no país e 8 morrem por dia em nosso país, apenas em razão de seu gênero.  E o feminicídio é, infelizmente, apenas uma das pontas desse iceberg em que velhas e novas manifestações de violência se sobrepõem.

Mas ao mesmo tempo em que essa realidade é flagrante e inquestionável, ela também é impossível e insuportável. Esse rio de sangue que continua a jorrar, alimentando as manchetes de jornais e os dados oficiais, é real: o vemos, sabemos porque sentimos  na nossa pele e de nossas irmãs o corte que não estanca… Mas, ao mesmo tempo, esse real não pode ser!

Que essa realidade tão imponente seja cada vez mais incompreensível é talvez uma ambiguidade própria ao nosso tempo histórico, em que essas violências já não logram serem naturalizadas e banalizadas como já foram no tempo de nossas mães e avós. A persistência das lutas feministas promoveu um salto de consciência que as estatísticas não acompanharam. 

Muitas análises buscam compreender como os índices de violência contra as mulheres se mantém crescentes, mesmo diante da existência de fortes e atuantes movimento de mulheres e feministas, que alcançaram conquistas normativas significativas e reconhecimento público sobre a gravidade desse problema. Em algumas dessas análises, registra-se a associação entre o avanço da luta das mulheres com o fortalecimento de posições brutalmente machistas, misóginas e conservadoras, ocorrido com especial ênfase nos últimos anos no Brasil, legitimadas pelas forças políticas que ocuparam o governo federal entre 2019 e 2022. Trataria-se do efeito que vem sendo identificado como “backlash”, retaliações às tentativas das mulheres em romper com os padrões de subordinação que lhes foram determinados histórica e culturalmente.

Fato é que, hoje, meninas e mulheres experimentam cotidianamente um duplo baque: a persistência das violências, em si, acompanhada da constante atualização e complexificação de suas formas de manifestação, mas também o choque ante a incongruência entre essa realidade e nosso referencial interno – onde nos vemos já hoje (e não num futuro que nunca chega), portadoras de todos os direitos que queremos que sejam assegurados, tantos os já reconhecidos quanto os do porvir que se fazem presentificados em nossas reivindicações… Entre os quais, o mais basilar de todos: o direito à vida.

Não à toa, o reconhecimento da violência contra as mulheres enquanto um fenômeno social, cultural e político, passa cada vez mais pelo exercício de enxergá-lo à luz daquelas que são ainda mais facilmente invisibilizadas em nossa sociedade, silenciadas e condenadas ao sacrifício individual e coletivo, em que nem mesmo a comoção pública opera com toda sua potência de denúncia, pois que ela também (e os ouvidos a que se destinariam) restam fragilizadas e abafadas pelo racismo estrutural e outros mecanismos de opressão que instituem e reproduzem as desigualdade através das quais continua-se a fazer valer a regra de que algumas vidas valem mais do que outras – e de que algumas outras sequer valem a vida.

Se nem mesmo atrizes e juízas brancas e ricas do alto de sua instrução e privilégio conseguem estar livres, precisamos aprofundar de quais violências e resistências se fazem as (sobre)vivências então das mulheres negras, mulheres mães, mulheres mães negras, mulheres indígenas, mulheres quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, mulheres agricultoras, mulheres periféricas e faveladas, mulheres em situação de rua etc.

Afinal, as relações de gênero, que fundam a violência, não existem no vazio, mas, sim, em contextos históricos e socioculturais específicos que conferem características diferenciadas à violência, com a distribuição desigual entre fatores de risco e fatores de proteção. 

Um exemplo cruel da interseção entre as várias desigualdades estruturais é a dimensão racial, um determinante fundamental no risco de violência. No Brasil, em 2022, 68,9% das mulheres vítimas de homicídios dolosos eram negras, nos casos de feminicídio o percentual de mulheres negras foi de 61,1%.

Outro cruzamento emblemático, por exemplo, diz respeito às mulheres que assumem posição na defesa de seus territórios contra o desmatamento e a degradação ambiental para extração ilegal de madeira, expansão do agronegócio, da mineração e das infraestruturas energéticas e logísticas associadas à sanha desenvolvimentista… Quais sãos as violências convergentes e singulares por quais passam essas mulheres justamente no país que também lidera outro ranking de violência: o de sermos o quarto país mais perigoso para defensores ambientais no mundo, conforme reiterados relatórios anuais publicados pela Global Witnes? 

Parece-nos estratégico que possamos manejar essa segunda ambiguidade no debate público, enquanto também uma inovação do nosso tempo histórico, qual seja, a de que, por um lado, segue sendo real que a violência contra as mulheres tenha uma expressão “democrática”, no sentido que nenhuma menina e mulher está protegida de se tornar vítima bem como nenhum homem está a salvo de se tornar um agressor. Tal perspectiva confere à questão da violência contra as mulheres “um estatuto de problema social e político que diria respeito à toda a sociedade e não apenas às mulheres”, conforme preconiza Ana Paula Portella. 

Mas, por outro lado, tem ficado cada vez mais evidente que o real mesmo é que essa generalização é insuficiente para compreensão e enfrentamento do problema à altura de sua complexidade e da urgência que ele merece. Pois, como vimos, as mulheres estão expostas a contextos mais ou menos vulneráveis à violência e com condições diferenciadas para conseguir – ou não – romper com ela, a depender da cor de sua pele, da sua faixa etária, da sua condição de maternidade, da sua saúde física e mental, da sua condição econômica, do seu local de moradia, da condição socioambiental do território onde vive, entre outras variáveis importantes de serem reconhecidas e articuladas. 

Partimos do reconhecimento de que os grupos, coletivos e organizações de mulheres que realizam incidência sociopolítica nos territórios de atuação da FASE conhecem profundamente essas dinâmicas excludentes e produtoras de violência, bem como dos impactos perversos destinados às suas vidas e aos seus corpos. Bem como cotidianamente resistem às diversas formas de manifestação da violência, combinando atividades de prevenção, incidência política, denúncia e principalmente cuidado e acolhimento das vítimas, onde todo o repertório vivido e aprendido é posto a serviço de suas comunidades na busca por alternativas para enfrentar tais problemas, bem como para reduzir os danos causados por essas situações de vulnerabilidade. 

E é nessa resistência que também vão sendo gestadas e paridas iniciativas que impulsionam verdadeiras transformações societárias capazes de romper com a lógica de exploração dos corpos-territórios e concretizar os paradigmas do cuidado, do bem viver e da proteção dos bens comuns. Na linha de frente em defesa do agroextrativismo, da agricultura familiar e agroecológica, de formas de produção, consumo e organização social em bases colaborativas e comunitárias no campo, na floresta e nas cidades, as mulheres têm protagonizado a luta coletiva em defesa dos territórios e do modo de vida em suas comunidades enquanto caminham no sentido da realização de sua autonomia política e econômica, e ainda oferecem pistas para a humanidade de que é possível uma economia plural que privilegie a soberania alimentar, a saúde e a justiça ambiental.

Compreender a realidade das violências que impõem obstáculos e rupturas prematuras a essa trajetória de experimentação e florescimento pessoal e coletiva das mulheres tem sido um dos desafios que a FASE vem se colocando ante a necessária atualização do trabalho com mulheres que desenvolvemos desde 1990. Mas, mais do que compreender essa realidade, é nosso desejo e missão questioná-la, no sentido de afrontá-la e profundamente transformá-la, entendendo que essa é a única saída possível para que nós mulheres possamos sobreviver e contra ela nos insurgir. 

De sujeitadas às violências de toda ordem, renascemos sujeitas da nossa própria história de vida e da história coletiva que essas (sobre)vivências costuram pelo fio do sonho e da luta que é nossa, das que vieram antes e que virão depois. Sonho e luta de que sigamos vivas (algumas em memória) e construindo, semente a semente, tijolo a tijolo, um mundo onde a vida, em suas múltiplas manifestações, seja possível.

*Assessora do Núcleo de Políticas e Alternativas da FASE