Suzana Devulsky
29/07/2024 14:39
O ano era 1992 e um grupo de mulheres negras de 32 países da América Latina e do Caribe se reunia em Santo Domingo, na República Dominicana, para debater os muitos problemas que enfrentavam, principalmente a violência, e buscar alternativas de como resolvê-los. Era o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e caribenhas e dele nasceu a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, que, junto à Organização das Nações Unidas (ONU), conseguiu que o dia 25 de julho fosse reconhecido como o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha.
Os motivos que levaram aquelas mulheres a se reunirem trinta e dois anos atrás, no entanto, não apresentaram melhora significativa e, com os novos desafios impostos pela crise atual do capitalismo global, a situação das mulheres negras segue extremamente grave. O racismo somado ao sexismo moldam a estrutura social subjugando mulheres negras e mantendo-as na base da pirâmide social. Prova disso são dados do IBGE (2023) que mostram que essas mulheres representam 28,5% da população brasileira e são as que mais sofrem com a vulnerabilidade e dificuldade no acesso à cidadania digna.
Procurada para comentar o tema, Rosimere Nery, educadora da FASE Pernambuco, disse: “Vivemos em uma sociedade organizada e estruturada com base no racismo, onde as oportunidades para a população negra são escassas. Frequentemente, ouvimos políticos afirmarem que gostariam de ter pessoas negras em suas equipes, mas que não encontraram pessoas qualificadas. Esse tipo de afirmação expõe, mais uma vez, o racismo estrutural e institucional presente na nossa sociedade Os dados mostram a dificuldade que a população negra enfrenta para acessar políticas públicas. Há muitos exemplos de como o racismo funciona.”
Pesquisas recentes também chamam a atenção para a carga e o impacto do trabalho de cuidado na vida dessas mulheres. Embora a feminização do cuidado afete a vida de todas as mulheres, as negras sofrem ainda mais porque são elas que, frequentemente, assumem essas tarefas não apenas em suas próprias famílias como também nas casas de famílias abastadas nas quais as mulheres, majoritariamente brancas, terceirizam esse trabalho. Segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, mulheres negras representam 45% das pessoas no setor de “cuidado” e 67,3% das trabalhadoras domésticas.
Os afazeres domésticos e o cuidado com filhos/as e parentes também são um obstáculo para mulheres negras terem emprego fixo, considerando que são 90% das mães que criam seus filhos sozinhas (FGV, 2023), que 42,8% dos domicílios nas faixas mais baixas de renda estão sob responsabilidade desse grupo. De acordo com dados do Relatório Especial do PNDU 2023, 60% da população brasileira mais pobre é dependente das condições de trabalho e vida das mulheres negras. Essa realidade é frequentemente imposta desde cedo, com meninas abrindo mão da escola e dos estudos para cuidarem dos irmãos enquanto suas mães trabalham fora.
A violência é outro fator preocupante. Em sua fala, Rosimere Nery citou a pesquisa mais recente do Fórum de Segurança Pública, que revelou que, em 2023, 63,6% das vítimas de feminicídio foram mulheres negras. Elas também representam a parcela da população que mais sofre estupros, segundo o mesmo documento. O cenário é ainda mais devastador quando olhamos para as crianças: meninas negras são as maiores vítimas de abuso sexual infantil.
Na área da saúde, dados do IBGE (2020) mostram que as mulheres negras representam 60,9% das usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, esse grupo tem 50% mais chances de sofrer violência obstétrica (Fiocruz) e tem o dobro do índice de mortalidade materna quando comparado com o de mulheres brancas (Ministério da Saúde, 2023). Devido à condição de pobreza e insegurança alimentar, as mulheres negras estão mais propensas a desenvolver comorbidades como obesidade, diabetes e hipertensão.
Analisando essa realidade, Caroline Santana, educadora da FASE Rio, defendeu a importância de políticas públicas que considerem as demandas das mulheres negras:
“A criação de políticas públicas deve incluir a luta contra a violência de gênero, a promoção de condições que permitam às mulheres equilibrar a maternidade e a vida profissional, a ampliação da representatividade feminina em posições de decisão, a garantia de ambientes que proporcionem segurança emocional e a melhoria do acesso à renda. Essas medidas são cruciais para promover a igualdade de gênero, fortalecer a autonomia feminina e garantir que todas as mulheres tenham as mesmas oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional. Implementar tais políticas é um passo decisivo para criar uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todas possam viver com dignidade e respeito”.
Apesar das estatísticas dramáticas, as duas educadoras reforçaram que a data é também um momento de celebração da história e da luta dessas mulheres.
“É importante destacar que a Marcha das Mulheres Negras, em 2015, lançou uma Carta contra o Racismo e pelo Bem Viver, onde constam reivindicações fundamentais que o Brasil deveria adotar como ações e políticas”, lembrou Rosimere.
“Além de denúncias, é uma data para reafirmar as conquistas e a luta das mulheres por justiça e igualdade, exaltar os exemplos de luta e organização das diversas mulheres que lutam por vida digna, plena, feliz, sem exploração e opressão nas periferias do Brasil”, concluiu Caroline Santana.
No Brasil, país fora do continente africano com o maior percentual de população negra, a data tem um peso e simbolismo ainda maior: há dez anos, celebramos o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, instituído por meio da Lei 12.987/14, homenageando a líder quilombo de Quariterê. Localizado onde hoje é a fronteira do Mato Grosso com a Bolívia, o lugar abrigava mais de cem pessoas, entre negros e indígenas, e resistiu duas décadas sob a liderança de Tereza de Benguela.
*Comunicadora da FASE