Comunicação FASE e Jambo Comunicação
11/09/2025 11:42
A FASE realizou, nos dias 3 e 4 de setembro, o Festival Saúva – Transição, Território e Clima, um espaço de debates sobre justiça climática, transição justa e participação popular no contexto pré-COP30 e Cúpula dos Povos, com uma programação diversa de mesas temáticas, mostra de cinema, jogos, exposição, shows e rodas de conversa. A iniciativa aconteceu no Memorial dos Povos, em Belém, e contou com a parceria e apoio de Fundo Dema, CUT, War on Want, Cúpula dos Povos Rumo à COP30, Armazém do Campo e Grupo Carta de Belém.
Justiça climática: as soluções vêm dos territórios
“A COP30 é uma usina de falsas soluções, e a Amazônia é uma usina de soluções reais”. Foi assim que a diretora executiva nacional da FASE, Letícia Tura, definiu a disputa de narrativas vigentes às vésperas da realização da COP30, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, durante a abertura do Festival Saúva. Uma das conferencistas do painel Justiça Climática na Amazônia: as soluções vêm dos territórios, Letícia disse que, ao longo de 29 anos, as COPs não têm enfrentado os problemas reais das mudanças climáticas. Para ela, o padrão de produção e consumo é assentado sobre combustíveis fósseis.
Ao destacar a “injustiça climática”, quando as consequências das mudanças climáticas não recaem sobre as pessoas da mesma forma, Letícia frisou que, se de um lado não se enfrentam os problemas reais, também não se discutem soluções reais. “O fato é que, em 30 anos, a COP tem gerado uma usina de falsas soluções. Por outro lado, se a gente for olhar os territórios amazônicos, as populações amazônicas são o oposto. É uma usina de soluções reais, que na verdade deveriam ganhar visibilidade nas ruas, nas discussões, num aprendizado para encontrar esses caminhos”, defendeu Letícia.
No mesmo painel, ao referir-se ao racismo estrutural e à injustiça climática, o coordenador de Articulação Política da Malungu, território quilombola do Marajó, Hilário Moraes, destacou que justiça climática é reconhecer que enfrentar a crise do clima passa por enfrentar também o racismo ambiental, a desigualdade social e a injustiça histórica. “A gente tá pagando um preço muito alto. A gente foi arrancado da África e tivemos que nos adaptar a esse país, a esse processo colonizador da escravidão. Foi muito duro, tá sendo muito duro para nós”, refletiu.
Valorizar o conhecimento das populações tradicionais, as estratégias que vêm dos territórios e que vão sendo passadas de geração em geração é o contraponto para soluções que vêm de fora, visando fortalecer o sistema capitalista de poder, na opinião do líder quilombola. “Só o conhecimento tradicional, através da oralidade, da narrativa, a gente consegue entender esses procedimentos de como o mundo climático está mudando ao nosso redor”, defendeu Hilário. “Tem que dizer para esses que vêm de fora que os recursos estão sendo investidos de forma errada. Que a gente é que tem que ter o recurso, porque os povos tradicionais é que sabem como investir”, resumiu.
A pedagoga Ayala Ferreira, dirigente nacional do setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, foi a terceira conferencista da mesa de abertura. Ela disparou que a sociedade “está sendo disputada e foi capturada pela lógica do desenvolvimento, pelo modelo defendido pelo sistema capitalista”. Ayala, que vive no assentamento 26 de Março, em Marabá, e é especialista em Educação do Campo, ressalta que o modelo em vigor tem aprofundado a fome, criado secas extremas e o impacto não é igual para todos. Para ela, “debater a questão ambiental é o centro da luta de classes” e é preciso ouvir as vozes que vêm dos territórios.
O mediador do debate foi o artista visual e quilombola de Manaus, Margem do Rio. Ele promoveu a abertura do Festival Saúva chamando para compor a mesa Sara Pereira, coordenadora da FASE Amazônia; deputado Carlos Bordalo (PT-PA), Maureen Santos, coordenadora do Núcleo de Políticas e Alternativas da FASE; e Aiuá Reis, superintendente da Secretaria Municipal de Cultura de Belém.
Os participantes foram unânimes em questionar qual o modelo de desenvolvimento que a Amazônia quer: um modelo que escuta a voz dos territórios e busca soluções a partir do conhecimento das populações tradicionais. Sara Pereira abriu o Festival ressaltando que “as mudanças do clima são resultado desse modelo excludente. As soluções apontadas são soluções que o próprio mercado que produz a crise tem colocado. Temos a chance de fazer o povo entender que a COP aqui não é oportunidade de negócios, mas de pautar um processo político de discussões que emanem a voz da Amazônia”.
Maureen Santos destacou que a COP vem levando para o mundo uma visão que não é de Belém que conhecemos, “e nós queremos trazer a nossa narrativa sobre Belém. Que a gente consiga, com esse festival, celebrar essa Belém que a gente conhece.” O deputado Carlos Bordalo disse que espera que o Festival Saúva contribua para a sistematização de pensamentos que sejam saídas não predadoras e para pensar a afirmação política das comunidades e dos povos. “Pensar a Amazônia hoje é pensar na democracia e soberania nacional”. O representante da Secretaria de Cultura, Aiuá Reis, que cedeu o espaço para a realização do evento, parabenizou a FASE pela realização do Festival e disse que os espaços públicos da Prefeitura de Belém estão abertos à população.
Combate às fake news e às “distrações climáticas”
Negacionismo, fake news e outras potocas foram temáticas que também foram abordadas no festival. Sob a mediação da atriz e apresentadora do podcast O Tempo Virou, Giovanna Nader, a jornalista Isabelle Maciel, editora geral do Tapajós de Fato; Rachel Gepp, diretora do Utopika Estúdio Criativo; e Thaís Bernardes, fundadora do Notícia Preta, provocaram a plateia com diversos questionamentos, desde a origem das fake news até os dias atuais, tendo como principal aliada a internet, por meio das redes sociais.
“Somente a educação é a ferramenta que consegue combater fake, a desinformação”, garante Thaís Bernardes, porque “é um desafio gigante que está no dia a dia de nossas vidas”. Ela apontou as estratégias da comunicação alternativa em transformar recursos empresariais ou governamentais em prol de grupos sociais, como a população negra, que não tem acesso a recursos para projetos sociais.
Para a editora do Tapajós de Fato, a educação popular tem sido uma ferramenta forte de luta, não só para combater o negacionismo dos diversos problemas sociais, mas também, em momento de COP, contribuir para fazer com que a população tenha voz e se sinta protagonista no debate sobre o clima, que ocorrerá em novembro, na capital paraense.
Ela lembrou das várias faces do comunicador, não apenas aquele que somente reproduz notícias, mas também o que acredita na busca de despertar para uma comunicação popular, independente, pautada em causas sociais e ambientais, no combate às fake news.
Rachel Gepp ressaltou a importância de ter a possibilidade de falar sobre fake news a partir do olhar da publicidade e não tratar somente a partir do olhar do jornalismo. “É importante falar da contribuição negativa que a publicidade também tem na manipulação da informação”.
Para a mediadora do painel, Giovanna Nader, o momento foi construtivo, “porque estou como moderadora, mas saio daqui como aprendiz, porque me fez conectar com pessoas inspiradoras e de muita luta”.
Além disso, um dos painéis realizados levantou a dualidade entre justiça climática e distrações climáticas, levando a plateia do Festival Saúva a refletir sobre o tema. A ação das petroleiras e do agronegócio foi apontada como as grandes distrações climáticas usadas para camuflar problemas causados ao clima por esses agentes.
“A maior das distrações climáticas é não priorizar a defesa de que o petróleo fique no subsolo, considerando petróleo, gás e as petroleiras como os grandes responsáveis pelo aquecimento global, pela crise climática, que só vem crescendo cada vez mais, provocando cada vez mais injustiças climáticas”, disse a coordenadora da FASE Espírito Santo, Daniela Meireles.
Para Daniela, é lamentável pensar que, nas COPs, as petroleiras ocupem espaço de representações maiores do que muitos países e criem blindagens para que o real problema que provocam seja debatido. “Enquanto não houver essa responsabilização das petroleiras como as verdadeiras causadoras do aquecimento global crescente, não haverá justiça climática e a COP será sempre um espaço de negociações do clima, de negociações de lógicas de mercado”, criticou.
O pesquisador Flávio Pacheco, da Escola de Agroecologia da Amazônia, que também participou do painel, defendeu que distrações climáticas são as falsas soluções que o capitalismo coloca como solução para os problemas do clima. “Existem fortes distrações que não vão resolver os problemas climáticos, porque, na verdade, elas são causadoras dos problemas climáticos”, apontou o pesquisador.
Para ele, a solução é a agroecologia e a forma de manejo que as comunidades tradicionais, especialmente da Amazônia, já praticam. “As suas formas de trabalhar, de desenvolver processos produtivos, processos de comercialização, de beneficiamento, contra monocultivos, contra circuitos fechados, contra grandes empresas, contra as coisas que nos trouxeram a esse cenário de mudanças climáticas”.
A mesa Mudanças climáticas x Distrações climáticas foi mediada pela influencer Manga Poética.
Participação dos movimentos sociais na COP30 é reforçada nos debates
A organização dos territórios e a participação popular do Brasil e do resto do mundo na COP30 são fundamentais para que a voz desses territórios possa chegar de alguma forma ao topo dos debates e influenciar as decisões que sairão da Conferência do Clima em Belém, em novembro deste ano. Essa foi a tônica dos debates da mesa Entrando no Clima da COP30, que discutiu a participação da população nos debates e nas decisões da conferência do clima. Mediada pelo jornalista Guilherme Guerreiro, a mesa teve a participação de Maureen Santos, coordenadora do Núcleo de Políticas e Alternativas da FASE (NUPA); Bruna Balbi, da ONG Terra de Direitos e Grupo Carta de Belém; e Suane Barreirinha, representante da COP das Baixadas.
“Essa mesa foi importante para darmos uma mapeada no processo negociador. Sabendo que a pressão política tem que vir das ruas e já faz três anos que não há COP em país democrático, então esta COP no Brasil precisa reforçar esse papel dos movimentos sociais, das organizações dos territórios daqui da Amazônia, do resto do Brasil e do mundo”, disse Maureen Santos. Ela destacou ainda a necessidade de que as pautas que se relacionam com a agenda do clima estejam também na agenda do dia dos representantes de governos que vão estar aqui em Belém.
A representante da COP das Baixadas, Suane Barreirinha, destacou que as organizações já vêm debatendo e se organizando desde 2023. “Nós já estamos realizando essa COP, temos que surfar nela, porque o jogo é nosso, dentro de casa, dentro de campo”, comparou. Para ela, foi importante participar de um debate com a presença de pessoas que estão dentro do governo federal e da Cúpula dos Povos, o que reforça a luta dos movimentos sociais.
Suane destacou a luta dos moradores da Vila da Barca, um conglomerado de palafitas próximo à Doca de Souza Franco, bairro de luxo da cidade de Belém, contra a construção de uma estação de esgotamento sanitário para escoar os dejetos dos moradores da Doca, que estavam recebendo uma obra COP.
“Se os moradores não se mobilizam, ninguém saberia o que, de fato, está acontecendo aqui”, disse. Em consequência dos protestos, o governo do Estado decidiu investir na troca da tubulação de água e na construção de uma tubulação de esgoto nas palafitas da Vila da Barca.
Bruna Balbi, da ONG Terra de Direitos, disse que os verdadeiros avanços que já vieram até aqui nas COPs foram com participação popular, como na COP15, realizada em Paris, que resultou no Acordo de Paris.
Mostra Saúva de Cinema
O festival também contou com o lançamento da Mostra Saúva de Cinema. Com curadoria de Yuri Rodrigues, Pedro Charbel e Izabela Matos, a mostra foi dividida em quatro sessões fazendo referência ao tema “Transição, território e clima”. A mostra tem parceria institucional do Coletivo Sem Teto e do Observatório das Baixadas.
Yuri Rodrigues, gestor de políticas públicas, pesquisador e educador popular da FASE Amazônia, conta que a Mostra Saúva de Cinema foi pensada com o objetivo de dialogar com as temáticas do Festival a partir das sessões: Mairi em Foco; O Clima Mudou; Transição é Luta; e Somos o Território.
“Essas produções vieram também no sentido de denunciar questões que envolvem as violências nos territórios, a partir da crise climática, dos impactos que incorrem nesse território, mas também dos anúncios, quais são as coisas boas que também emergem desses territórios e como é que isso pode ser visto como uma solução”, explica.
A mostra iniciou com a sessão Mairi em Foco, que buscou protagonizar e evidenciar os moradores de Belém, a partir das obras: “Afeto como ponto de lança”, de Nay Jinknss; “Guardiões dos rios”, realizado por Rede Jandyras e Lab da Cidade; “Ykûarasy – Território Ancestral”, de Tay Silva; e “Eu não quero mais sentir medo”, de André Santos.
A segunda sessão teve como foco as mudanças climáticas, apoiada em três produções nacionais: “Recife Frio”, de Kleber Mendonça Filho; “Equilíbrio”, de Olinda Tupinambá; e “Chuva de Cajú”, de Alan Schvarsberg. As sessões Transição é Luta e Somos o Território concluem a Mostra Saúva de Cinema na quinta-feira (04).
“O objetivo do cinema dentro dessa perspectiva do festival foi tentar entender o cinema não como instrumento, como uma ferramenta de comunicação, mas sim como um espaço de reflexão, de debate, de construir reflexões críticas a partir dos territórios e fazer uma inversão do que normalmente acontece”, destaca o educador da FASE Amazônia, Yuri Rodrigues.
O primeiro dia da Mostra Saúva de Cinema contou também com o debate Tela, corpo e território: mulheres negras no cinema amazônico. Com mediação de Izabela Matos, o debate recebeu a artista pesquisadora Nay Jinknss e a jornalista e produtora audiovisual Tamara Mesquita para compartilhar suas vivências no audiovisual.
Nay Jinknss, diretora do filme que abriu a Mostra, atua também como professora e falou sobre suas desconstruções e construções na produção audiovisual, a partir de sua experiência na docência.
“A gente tem a possibilidade de rever, aprender e de trazer agora para o debate coisas que antigamente a gente não ouvia tanto assim, por isso que a gente pode novamente recontar, remontar, preencher as lacunas, seja com audiovisual ou com as artes. Um festival como esse faz com que as pessoas possam transitar e compartilhar essas histórias, eu acho que é por esse caminho”, resume.
Cúpula dos Povos Rumo à COP30
O painel Da Amazônia para o mundo: a Cúpula dos Povos rumo à COP30, que encerrou o Festival Saúva, trouxe a educadora popular feminista e coordenadora da FASE Amazônia, Sara Pereira, que destacou que a Cúpula dos Povos representa a mobilização das resistências da sociedade civil global por justiça climática. Segundo ela, a Cúpula dos Povos está se organizando para denunciar o sistema capitalista predador e anunciar outras formas de vida, baseadas na escuta e no protagonismo das populações tradicionais e das mulheres. “A Cúpula vem da diversidade e da pluralidade dos territórios e é essencialmente feminista. A luta popular tem sido protagonizada pelas mulheres, e isso fica mais evidente na luta por justiça climática”, afirmou.
Articulação criada em 1992, a Cúpula dos Povos existe como espaço de luta e esperança para comunidades indígenas, tradicionais e periféricas — aquelas que menos contribuíram para a crise climática e que mais sofrem com seus impactos. A Cúpula dos Povos defende justiça climática global, proteção dos direitos humanos, transição energética que não penalize os mais vulneráveis e valorização da agroecologia como alternativa viável.
Segundo a dirigente sindical Lala Penaranda, coordenadora da Trade Unions for Energy Democracy (TUED), rede mundial de sindicatos e organizações que trabalham para promover o controle democrático e a propriedade social da energia, a Cúpula dos Povos propõe a ruptura com os programas convencionais de enfrentamento das mudanças climáticas. “A Cúpula é um processo histórico. Ela rompe com as caricaturas para discutir o futuro em bases concretas”, afirmou Lala no Festival Saúva.
O advogado e educador popular Pedro Martins, da FASE Amazônia, reforçou a preocupação da Cúpula dos Povos com o tema do financiamento climático. Segundo ele, os debates sobre essa questão, em COPs passadas, foram muito improdutivos. “Foi exigido um aporte de recursos internacionais para o cumprimento das metas climáticas pelos países em desenvolvimento. Mas ninguém quer pagar pela crise”, disse. Pedro condenou a “financialização”, em que os recursos para controle ambiental, em vez de chegarem à ponta, circulam no mercado financeiro como capital de giro.
No contexto da COP30, em Belém, o reconhecimento das identidades e das culturas tradicionais está entre os debates importantes por serem decisivos para a construção de um novo modelo de intervenção humana na floresta. Para Dilmara Araújo, liderança da comunidade Pirocaba, em Abaetetuba, a floresta não tem culpa pela ganância capitalista. Dilmara defendeu a diversificação da produção e a escuta dos povos originários para enfrentar as mudanças climáticas. “Se tem alguém preservando, são as comunidades tradicionais. Somos parte da natureza, e não os donos dela”, disse.