16/06/2006 15:12

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Diretor da FASE

A nacionalização das reservas e a ocupação das empresas que exploram os hidrocarbonetos na Bolívia geraram reações que beiram o ridículo no Brasil. As presunções de poder empresariais e de previsibilidade estratégica que se pede ao país não medem a densidade do problema geopolítico que atravessa a questão energética. Mesmo as grandes corporações européias e norte-americanas, assim como os governos dos países capitalistas avançados, não possuem poder de controlar e racionalizar via “previsões” os conflitos estratégicos que nascem no centro, na semiperiferia e na periferia, no que tange ao processo de exploração dos recursos energéticos. O que não impede um trabalho de entendimento e análise numa nova visão de planejamento baseada pelos interesses do ator.

A definição de um quadro de previsibilidade depende de um conjunto de apostas e da capacidade de impô-las aos outros, por parte do ator político. Mas devemos lembrar que a crise da norma e a explosão de sujeitos fazem parte da cena histórica. As experiências colonial, imperialista e neocolonial na América Latina demonstram que existe um movimento permanente de retorno dos sujeitos, como rebeldia e resistência. Apesar disso, a revolta dos dominados muitas vezes foi paradoxalmente apropriada através de reversões de alianças no quadro internacional (como no caso do Oriente Médio, por exemplo) e das apropriações de ganhos gerados pelas crises (exemplo da elevação do preço do petróleo). São processos de recuperação de poder que fazem parte da estrutura capitalista, pois as perdas dos poderosos nos curtos prazos são socializadas, isto é, são pagas pelas sociedades. Desta forma sustentam-se os ganhos de médio e longo prazo das empresas e de seus acionistas.

A questão imediata dos consumidores como eleitores faz parte de um manejo material e simbólico do contexto imediato, como é o caso da questão do gás boliviano. Na sociedade internacional, os usos dos instrumentos da guerra, da diplomacia e da pressão econômica definem um terreno de mudança permanente. No caso brasileiro, mais do que falta de esforços para atuar levando em conta o interesse nacional-corporativo, os problemas de combinar um novo mix energético e da auto-suficiência se articulam com os problemas da privatização e do enfraquecimento do Estado e das oligarquias sucro-alcooleiras.

Ao contrário de outros países, poderíamos melhorar nosso desempenho público político.Mas as estratégias não devem subestimar as conquistas realizadas e a inteligência adquirida ao longo da história. Cabe resgatar o potencial das experiências de cooperação, solidariedade e luta dos sujeitos, de modo a desenhar uma nova diplomacia dos povos que opere no terreno da construção de uma nova hegemonia. Deve-se levar em conta o desgaste dos modelos e fórmulas que apostam em alguma combinação entre sub-imperialismo e diplomacia do tipo segundo Império brasileiro ou do início da República.

O nacionalismo que se manifesta no quadro mundial é parte da globalização, a sua aparente irracionalidade deriva da norma imposta e de sua aplicação. Nenhum ator estratégico desconheceu as ambivalências inscritas na relação entre fraqueza para ceder ao investimento externo e instabilidade política-institucional permanente na Bolívia ou no Oriente Médio. O Paraguai está levantando a crítica aos preços que Brasil e Argentina pagam pela energia gerada por Itaipu; a Argentina reclama da vitória do Uruguai da Frente Ampla, que aproveita uma brecha de rearticulação industrial-poluente, como já fazem o Chile, o Brasil e a Argentina no âmbito setorial do papel e da celulose. O Chile nunca deixou de usar o poder do seu cobre para sustentar o seu Estado, mesmo com as práticas mais neoliberais da ditadura pinochetista.

Através da lógica do capital, o regional se torna pura dinâmica competitiva acelerando a fragmentação política e bloqueando os esforços de construção de estruturas regionais de mediação e articulação de interesses e de cooperação material e cultural.

O que os atuais críticos desconhecem é o aspecto mais estável da história, o seu movimento ou a sua necessária instabilidade que estrutura processos darwinistas e hobbesianos de dominação através das racionalidades imperialistas e da lógica da acumulação ilimitada do capital. O processo de dominação pela via européia ou pela via norte-americana ou pela sua articulação como lógica do capital global sempre gera processos de resistência e iniciativas emancipatórias de luta pela autonomia dos sujeitos históricos vítimas da dominação ou da exclusão. A explosão social do novo conflito boliviano se inscreve nas crises cíclicas de nossa história continental. A questão se situa em definir qual política de construção regional pode fazer frente a essas relações de desigualdade e incerteza. A lógica dos contratos é recusada, os parâmetros de força e a legalidade da ordem jurídica adequada aos poderes corporativos do foro de Nova Iorque são recusados pelas periferias em revolta, em nome de novos estatutos que se escrevem por outras linhas de entendimento do direito internacional, pela via da autodeterminação.

Esse quadro clássico leva a uma convocação do historiador e exige linhas de investigação que podem se articular na construção de novos possíveis, que não dependem de uma reconstrução de modelos de planejamento ou do nosso mix energético, nem tampouco de uma velha inteligência que combine diplomacia e força. Temos de abrir uma linha de interpretação que interrogue os problemas e busque a solução no âmbito das relações entre conflitos complexos e desigualdades de estruturas. O conceito do processo deve ser inscrito na objetividade do contexto, onde a interrogação sobre o direito ao desenvolvimento se relaciona com a demanda por uma radicalização democrática inclusiva nos diferentes territórios das Américas.

O processo político latino-americano passa por uma dinâmica de desconstrução simbólica na parte sul do subcontinente que reivindica uma mudança na elaboração conceitual para dar conta dos conflitos com a lógica da globalização. O reaparecimento de questões nacionais é o preço necessário para visibilizarmos a gramática e a estrutura de uma efetiva e necessária regionalização, através de uma democratização que aceite as contradições geradas na desigualdade histórica sustentada na complexidade constituinte da América do Sul enquanto periferia do sistema mundo moderno. Todos os esforços para articular a identidade do subcontinente sob a lógica da “pátria grande”, da “integração de mercados” ou do panamericanismo encobrem o caráter das tensões e ciclos específicos de conflitos, entre a dinâmica dos processos históricos de nossa inserção no sistema mundo moderno do capitalismo, como desenvolvimento desigual e combinado. As tensões locais face aos projetos globais, as resistências das populações tradicionais, os problemas de unificação nacional, e a contradição entre hegemonia e contra-hegemonia, se lidos na chave da longa duração, revelam a impossibilidade real da integração na forma jurídica abstrata, nas formas políticas forçadas de uma pseudo-unidade, ou na chave homogeinizadora da civilização ocidental via mercado.

A chave da totalização dos processos está na articulação e entendimento dos processos particulares e fragmentados. As diferentes lógicas de retorno do nacional, para redefinir os elos entre o local e o global, farão parte dos desafios de adequação dos impulsos e tensões próprios gerados pelo espetáculo visível de entrelaçamento entre novas forças sociais, novos conflitos geopolíticos. Vivemos uma recomposição da estrutura de classes pressionada pelos condicionamentos da reestruturação capitalista, numa extraordinária mobilidade de forças sociais e complexos imaginários, cujos nexos podem ser observados através da reconceituação sem preconceitos, que deriva de um novo contexto prático.

O novo protagonismo nacional indígena e “campesino” na Bolívia, no Peru e no Equador, a nova versão de pragmatismo social liberal chilena, a nova mobilidade mundo uruguaia, o atravessamento das fronteiras e das intervenções na lógica da militarização dos conflitos na Colômbia, o protagonismo territorialista brasileiro, o bonapartismo nacional-popular da Venezuela, a porosidade e a fragmentação na fronteira norte mexicana, a reafirmação do bloco histórico nacional argentino, são elementos que traduzem certas tensões e permanências estruturais que se abrem como fragmentação, mas que se articulam quando encontramos elementos e tendências semelhantes nos outros.Nessas diferenças de fronteiras se revelam as dobras da necessária e quase-impossível integração.

Na dinâmica finaceirizadora e na pressão geopolítica que se propagam desde o norte, temos a rebelião legítima das forças multiculturais e mestiças que pressionam por novos direitos desde o sul. Também no norte o gigante americano se vê atravessado pela necessidade de responder a sujeitos que mostram os elos entre as suas múltiplas identidades e o seu lugar na nacionalidade americana do norte. Nos EUA a luta por direitos entre o nacionalismo e o cosmopolitismo se liga a um desejo de dominação que se reafirma na estratégia unilateral de unificação de comando e homogeneização sobre o contexto mundial.

A velocidade do contexto, a fabricação de discursos e a reconstrução de narrativas se aceleram afetando os conceitos simplificados do preconceito dos analistas que desejam eficientizar as ações pela via do mercado ou pela força de interesses das velhas e novas oligarquias, desvelando o complexo histórico latino-americano. O movimento do real se recusa a uma programação e formatação ao gosto dos epígonos da via única e dos defensores do “fim da história”, o mesmo efeito de ruptura ocorre no plano dos projetos e interpretação quer face aos adeptos da construção apressada de mitos neobolivarianos, quer face aos que adotam a via da subordinação intelectual e moral através da retórica corporativa das taxas de riscos, no afã de criar uma racionalidade adaptativa permanente aos ditames da via única, do tipo neoliberal.

O quadro de fragmentação reabre a exigência de retomarmos os debates clássicos sobre o lugar da América Latina e da sua dinâmica de construção de formas políticas e culturais que se inscrevem no quadro dos processos liminares, aqueles que, como Walter Mignolo sugere, se articulam como discursos e práticas locais ou “histórias locais” frente à “projetos globais”. Nessa dupla inscrição, que se escreve pela contradição entre hegemonia e contra-hegemonia, a questão política da construção da integração latino-americana pode ser retomada pelas forças interessadas em suprimir a colonialidade, de modo a radicalizar o traço americanista da democracia ao lado do seu traço emancipatório. A questão de uma nova perspectiva de articulação de forças políticas se coloca no centro da luta pelos direitos na região. No centro da questão regional está o processo de luta permanente pelas tarefas nacionais e democráticas jamais realizadas, de construção de patamares de igualdades materiais e culturais exigidas pelos reclamos de autonomia, autodeterminação e direitos que emergem das grandes lutas sociais de resistência.

Os que temem o processo não são capazes de entender as razões dos novos sujeitos sociais em luta, posto que sua norma só se inscreve na via única da intolerância e da força. Uma nova diplomacia das diferenças pode ser mais realista do que uma opção por uso da força das assimetrias de poder, sem que devamos cair na retórica que oscila entre o Hobbes vestido de Kant e o espectro do libertador reencarnado. Em que pese a importância de mitos mobilizadores para a nossa “Grande Pátria Comum” é preciso observar as cores e a diversidade dos processos para acompanhar as tendências, as ações e as vozes que desenham os elementos particulares que se articulam na perspectiva comum de longo prazo, buscando bases sólidas de construção de uma regionalidade que já escuta a presença poderosa dos que nunca foram ouvidos, seus rostos e cores ganharam a cena pública na nossa América.