23/09/2008 16:14
Incorreções históricas são comuns e afetam a memória dos povos em relação a nomes ou acontecimentos passados. Em geral, são fruto de desinformação, não de má fé. Entretanto, o ataque dirigido à memória do educador Paulo Freire pela revista Veja faz por merecer uma contestação: ali, trata-se de má fé. Em uma reportagem recente sobre educação no Brasil, a revista ofendeu abertamente um dos maiores educadores de toda a história brasileira, também mundialmente reconhecido como uma das maiores contribuições ao pensamento sobre processos educacionais.
A revista publicou, sem tirar nem pôr, que escolas brasileiras “idolatram personagens arcanos sem contribuição efetiva à civilização ocidental, como o educador Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização”. Há mais coisas ditas na mesma linha, mas é desnecessário reproduzi-las. Basta tomar o absurdo desta sentença e concluir o óbvio: a) o que Veja faz não é jornalismo; b) encará-la como um veículo jornalístico é um erro. Em carta pública que fez circular pela internet, a viúva do educador e também professora Nita Freire expressou sua mais profunda indignação com esta referência. Como instituição que valoriza o legado de Paulo Freire, a Fase compartilha deste sentimento.
Autor de pedagogias que tratam o conhecimento como algo muito maior do que ferramenta de reprodução do capitalismo, Paulo Freire ao mesmo tempo fez a educação avançar rumo ao futuro e manteve-se fiel à visão integral do ser humano que aprende e ensina, visão esta que a modernidade tenta há muito exterminar. Numa síntese que certamente não dá conta da vastidão de seu trabalho, arriscaríamos dizer que o legado de Paulo Freire propõe o ser humano acima da máquina, do dinheiro e das ordens pré-estabelecidas. Isto porque valoriza a autonomia do sujeito, seja ele como indivíduo pensante, seja como parte dos coletivos aos quais todos nós, cedo ou tarde, somos forçados a nos unir.
A questão é que a proposição de uma visão de mundo como esta no terreno da educação de crianças, jovens e adultos, foi efetivamente revolucionária. No sentido mais nobre do termo, ou seja, suas pedagogias abriram perspectivas para elevar a atividade educacional. Aplicar Paulo Freire é afirmar que o aluno é mais do que um repositório de informações destinado a reproduzi-las como máquina num futuro de servidão às relações de trabalho. Aplicar os métodos de Paulo Freire é possibilitar tanto a alunos como a professores a experiência da mutualidade da educação: todos aprendem com todos, e o conhecimento não pode ser hierarquizado entre aqueles mais ou menos essenciais (muito menos de acordo com o valor que lhe atribui o “mercado de trabalho”).
Como homem que assumia seu ser político, Paulo Freire escolheu sua posição de acordo com a maneira como enxergava o mundo. E certamente não era esta que hoje tentam nos convencer que é a única, um mundo onde empresas são sempre boas porque atendem nossas eternas necessidades de consumo, como se nós e nossas sociedades tivéssemos obrigação de apoiá-las incondicionalmente por isso. Fiel a seu pensamento crítico, Freire foi, entre muitas outras coisas, secretário de educação da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina. Sua trajetória exige um respeito que a Veja não é capaz de mostrar, talvez por não ter respeito sequer por si própria.
Ano passado, a morte de Paulo Freire completou dez anos e, para celebrar sua memória, a Fase editou um número da revista Proposta sobre ele e seu trabalho. A resposta da maioria dos leitores da edição, quase sempre emocionada, desqualifica absolutamente os absurdos publicados no semanário em questão.