22/07/2008 17:44
Jean Pierre Leroy
Assessor da Fase
Uma reflexão aprofundada sobre os fatores que contribuem para o agravamento da atual crise ambiental nos levaria a dois fatores que são, na verdade, questões de fundo, nossos paradigmas religiosos e filosóficos. A religião ocidental e o racionalismo clássico formador da filosofia moderna são, ambos, discursos que nos afastam de uma relação com a natureza. Antes, justificam sua dominação.
Na passagem bíblica onde se lê “frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai (…) sobre os peixes, as aves, os animais e as plantas”, o livro de Gênesis indicava o caminho que Descartes revisitaria mais de mil e setecentos anos depois. Para o filósofo, somos “mestres e possuidores da natureza”. Hoje, tanto a cultura como a ciência, e o próprio modo de viver urbano, nos afastam profundamente da natureza. Não nos vemos como parte do meio ambiente, mas como seres exteriores a ele. Durante milênios, esse profundo divórcio não trouxe conseqüências drásticas sobre o meio ambiente e sobre a humanidade. Os prejuízos percebidos afetavam apenas o ambiente local e as correspondentes populações.
O segundo fator, propiciado pela afirmação filosófica da nossa superioridade, é representado pelo florescimento do capitalismo mercantil e industrial e suas sucessivas invenções, a começar pela máquina a vapor. Saúdam-se seguidas “revoluções” tecnológicas. A mais recente teria sido a revolução do conhecimento, base de um capitalismo cujo valor agregado se apóia sobre o imaterial.
Se é verdade que o conhecimento por trás do produto é o segredo do valor, o fato é que o processo de produção de objetos continua usando petróleo e minerais em demasia. A produção também é caracterizada por um permanente e excessivo consumo de água e energia. Além disso, a obsolescência rápida é hoje uma estratégia do capitalismo, obviamente para acelerar os ciclos de uso e troca por novos aparelhos. Novos carros, novos computadores e celulares chegam ao mercado num tempo cada vez mais curto. E lá se vão mais recursos naturais, mais lixo e contaminação.
Será que o infortúnio do mundo fará a fortuna do Brasil? O nosso crescimento hoje não fará nossa desgraça amanhã? O mundo (em particular os países industrializados) necessita dos nossos minerais, a começar pela bauxita e pelo ferro. Para ele, produzimos aço, alumínio, celulose, carvão vegetal. Mas, sobretudo, com esses produtos lhe entregamos a energia, a água e o solo que lhe faltam.
A empresa Alcoa começa a extrair bauxita em Juruti, no Baixo Amazonas. Ela quer abrir uma nova fábrica de alumínio, mas isso requer energia. Sem problema: o ministro de Minas e Energia já disse que a hidrelétrica de Belo Monte é um projeto irreversível. O lago que seria formado pela barragem diminuiu de tamanho, mas a vazão durante o verão será muito pouca. Isso sem mencionar que não se levou em conta o aumento do desmatamento das margens dos rios tributários e das nascentes do Xingu, além das mudanças climáticas. Quem vai bancar o custo da incerteza sobre a viabilidade econômica do projeto? Quem acredita que não haverá outras barragens construídas ao longo da bacia no futuro?
Há países que proíbem a instalação de indústrias contaminantes em suas baías. As baías da Guanabara, Sepetiba, de São Marcos em São Luis do Maranhão e outras acolhem sem reserva pólos petroquímicos, fábricas de aço e de alumínio e, amanhã, usinas termoelétricas. É mais barato e mais perto dos portos. Quanto pesam a população e a qualidade de vida diante disso?
Voltemo-nos para os agrocombustíveis e a agropecuária. A permanência do latifúndio, mesmo que reciclado como grande empresa rural, e a arrogância de seus representantes políticos, não deixam esquecer que não é o produtor quem define os rumos da agricultura e quem lucra mais com a produção. A atividade produtiva perdeu há tempo sua centralidade, em proveito das grandes corporações industriais e comerciais que participam do complexo agro-industrial nas áreas de insumos químicos, máquinas, sementes, beneficiamento e comercialização da produção. Elas também se beneficiam da destruição do cerrado e da floresta amazônica. Nem se pode dizer, como o governador do Mato Grosso, que a produção de alimentos justifica a destruição de árvores, pois a especulação financeira sobre os alimentos e sobre o milho norte-americano para etanol comanda boa parte da suposta escassez de alimentos, contribuindo para o encarecimento da comida.
Na verdade, os agrocombustíveis representam um paradoxo. Ditos renováveis, eles permitem satisfazer a boa consciência. Reduziriam as emissões de CO², mas contribuem para manter a mesma matriz de transporte individual e de mercadorias. Satisfazem a boa consciência, mas permitem que o sistema de produção industrial aludido acima continue intato. Dificilmente essa produção escapará da lógica destrutiva. Vale assinalar que a preservação da floresta amazônica seria, segundo cientistas, uma contribuição muito mais importante para o clima do que trocar gasolina e fuel por biocombustível.
Se o problema está na nossa relação com a natureza e no modelo de produção e de consumo capitalista, a solução é mudar os paradigmas filosóficos e econômicos. Mas uma revolução das mentalidades e das sociedades não se decreta. O acompanhamento realista da destruição do território brasileiro e da diminuição gradativa da qualidade de vida (para não falar de populações rurais e tradicionais que desaparecem do mapa por obra do progresso) levaria ao pessimismo, se não fosse a efervescência atual. Todos nós hoje, fora os cínicos, somos ambientalistas, queiramos ou não. Se cada um começa a sentir na sua vida os impactos da crise ambiental, é também na sua vida, localmente, que se pode iniciar novas maneiras de viver e se relacionar com o meio ambiente. Precisamos, enfim, de uma nova maneira de cuidar da própria economia, cujo sentido original, do grego oiko-nomia, significa o cuidado da nossa casa, o planeta em que vivemos.
- Este artigo foi publicado originalmente sob o título O planeta começa em nossa casa, na revista Caros Amigos, edição especial sobre meio ambiente, em junho de 2008.