13/09/2007 18:24

Jean Pierre Leroy*

O perfil e o compromisso do Fboms nascem do seu engajamento no processo da Unctad – Rio 92. Consciente que a Conferência era de meio ambiente e desenvolvimento, o então “Fórum preparatório para a Conferência da Sociedade civil sobre meio ambiente e desenvolvimento” se afirmou como sócio-ambiental, dizendo que desenvolvimento e meio ambiente deviam ser tratados como as duas faces de uma mesma moeda. Por isso, juntou, para além do ambientalismo, entidades de várias origens e finalidades. Como seu nome indica, não queria ser meramente reativo à Conferência oficial, mas sim um ator. Hoje, o Fórum está a poucas semanas de realizar um novo encontro nacional, entre os dias 26 e 28 de outubro, em Curitiba.

Penso que o “Manifesto das ONGs brasileiras”, intitulado “Cidadania e democracia: nossas palavras de ordem”, aprovado no VIII Encontro nacional do Fórum em Belo Horizonte, em abril de 1992, mais do que nunca atual.

Dizia: “Jamais em toda a história da civilização, a humanidade se defrontou com desafios de igual magnitude como os que hoje se apresentam. O modelo econômico internacional, implantado ao longo de anos de dominação, levou à concentração da riqueza nas mãos de pequena parcela da população, condenando a absoluta maioria a uma situação de miséria crescente, e promoveu o comprometimento das condições necessárias à reprodução da vida. (…) Conquistar espaços, formular propostas e se tornar parte efetiva nas negociações internacionais que dizem respeito ao futuro da humanidade têm sido o principal desafio das organizações da sociedade civil. O compromisso de promover a eliminação das desigualdades sociais e da degradação ambiental, entretanto, não pode se dar apenas no plano internacional. É fundamental o enfrentamento dessas questões nos países em que tais relações se reproduzem, muitas vezes de maneira mais injusta e degradadora. No Brasil, a extrema pobreza confronta-se com a opulência de poucos. Aqui também se verifica a utilização da natureza como algo descartável, seguindo o modelo de produção e consumo em expansão permanente, promovido por agentes externos e reproduzido pelas elites dominantes nacionais. O desafio das ONGs e movimentos sociais face a todo esse quadro é o de forçar o debate e obter novos posicionamentos oficiais frente à dicotomia entre norte e sul, ao equilíbrio homem/mulher/natureza, à socialização dos recursos, à democratização da tomada de decisões, à revisão dos termos de comércio internacional e da dívida externa. Esse é o momento de romper com um modelo de desenvolvimento instituído desde a invasão portuguesa no Brasil, responsável pela exploração desenfreada da natureza e do ser humano. A participação e o exercício da cidadania, com discernimento e responsabilidade, neste processo social que apenas se inicia, são fundamentais na construção de uma nova sociedade, que queremos mais justa e em harmonia com o ambiente”

Se a palavra e mesmo a preocupação com o meio ambiente estão sempre presentes na opinião pública, quais são os ganhos reais que tivemos desde a Rio 92, do ponto de vista de um Fórum comprometido com as lutas sociais, com a mudança de padrão de desenvolvimento, com a radicalização da democracia? As grandes corporações arvoram-se de defensores do meio ambiente e tentam perpetuar a dinâmica do crescimento a qualquer custo, mascarando isso com pálidas iniciativas ambientais, quando não mentem de maneira descarada. Os governos se renderam ao capitalismo neoliberal e se deixam orientar pelos lobbys empresariais. A globalização do mercado, recomendada na Agenda 21, venceu. Mas onde estão os avanços que ela devia propiciar para um mundo mais justo e mais sustentável?

Somente a crise climática está sendo capaz de sacudir as opiniões públicas, mas ela está sendo vista de maneira muito setorial, sem relacioná-la, ou relacionando-a de maneira superficial, à perda acelerada da biodiversidade, à falta de água, ao esgotamento dos solos, à perda de ecossistemas inteiros. E ela está sendo ainda menos relacionada com os profundos impactos que esses processos vêm tendo sobre as populações pobres e miseráveis do mundo. Pior, os próprios cientistas sinalizam que o desenvolvimento não está em perigo. É só proceder a adaptações, que serão feitas graças aos países pobres, convidados se perpetuar nos seu eterno papel de provedores de recursos naturais, agora em nome do clima. É a última roupagem do colonialismo, agora, verde. No Brasil, vivemos essa profunda crise de maneira caricatural. Há um completo divórcio entre a aparência de preocupação com o meio ambiente e a crença no desenvolvimento/crescimento. Soma-se a essa contradição uma segunda: o divórcio entre o desenvolvimento que está sendo alardeado e implantado e as reais condições de vida de pessoas e famílias que perdem, por causa dele, suas condições de vida e de reprodução, ou não encontram os empregos e as melhorias prometidas para sua qualidade vida.

Em seu irrepreensível texto questionando a transposição do rio São Francisco, “Na Guerra da Transposição não há inocentes – O sertão pede a verdade”, Marina dos Santos, Roberto Malvezzi e Temístocles Marcelos mostram claramente que, em que pesem as pessoas bem intencionadas, interesses predominam nessa operação em que prevalecem a mentira, a manipulação e a superficialidade. A disputa a respeito das hidroelétricas do rio Madeira repete o mesmo cenário, como o mostra tão bem a correspondência que circula na lista do GT Energia do Fboms. Durante um bom tempo, órgãos públicos resistiram com bravura ao clamor do núcleo duro do governo e dos lobbys empresariais para que se passasse por cima da lei, num verdadeiro resgate da dignidade da função pública. O Ibama aprovou a licença ambiental. Se as represas se confirmarem, acompanharemos e exigiremos, céticos, o comprimento das condicionantes ambientais e sociais.

Ao mesmo tempo em que os grandes produtores de soja aceitam uma moratória sobre plantações de soja na Amazônia e afirmam, no Mato Grosso, que vão assegurar a sustentabilidade de suas plantações, seus eleitos nos executivos estaduais e nos legislativos tramam contra o meio ambiente. Houve um tempo em que pertencer à Amazônia lhes interessava, pois lhes permitia mamar nas tetas do Estado. Agora, procuram excluir da Amazônia o Mato Grosso, o Tocantins e o Maranhão, pois isso lhes permitiria aumentar a porcentagem de desmatamento nas suas propriedades de modo legal. Na questão dos biocombustíveis, ou, melhor dito, dos agrocombustíveis (para não amesquinhar a vida/bio), reina a hipocrisia. Faz-se um programa, louvável, com os pequenos produtores, mas se sabe que o mais importante é que ele abre o caminho para que as grandes empresas do rural dominem o negócio. Diz-se que eles não competem com a segurança alimentar, mas o óleo de mesa e o frango podem aumentar, como o aumento do milho no México já provoca estragos. Mas do modelo de transporte, ninguém fala. E o modelo de produção desses agrocombusíveis, que repete um padrão técnico de produção que é destruidor do território?

Claro que encontramos algumas coisas positivas na área ambiental e social, tais como o tratamento dado à BR 163 pelo Ministério do Meio Ambiente, crescimento das áreas de conservação, avanços na fiscalização, o fundo para habitação popular, PAC do saneamento, programas comuns entre o MMA e o MDA para a agricultura familiar, etc. Mas, convenhamos, isso é muito pouco frente à catástrofe que estão nos preparando. Escancaram a Amazônia à ocupação predatória do capital. Com as obras do rio Madeira, eles convidam à ocupação selvagem da Amazônia ocidental, tão bem iniciada pelos interesses política e economicamente dominantes em Rondônia. Sem falar do caos que se espera em Porto Velho. E enquanto se cuida da BR-163, deixa-se correr a devastação em dezenas de outras estradas amazônicas, legais ou ilegais.

Já estaria se resolvendo o licenciamento ambiental, com os Estados e municípios assumindo os licenciamentos de obras menores e locais! Pela pesquisa que fizemos no Estado do Rio de Janeiro (ver os resultados no Mapa de Conflitos Ambientais do Estado do Rio de Janeiro. Fase-IPPUR/UFRJ), podemos dizer que os Estados e os municípios freqüentemente são os primeiros causadores de impactos sócio-ambientais. E o amianto? O governo continua querendo ignorar os mortos e os que vão morrer e se recusa a bani-lo, o que já fizeram os países europeus. E o mercúrio, os rejeitos radiativos, o benzeno, os pneus? No campo da sociedade organizada, o quadro se complicou também. Os financiamentos e fundações empresariais cooptaram muitos pesquisadores, professores e ambientalistas para uma tarefa de educação ambiental acrítica e descontextualizada. Muitas entidades, e não das menores, se renderam ao “ambientalismo de resultados” e afirmam ou deixam a entender por suas práticas que, fora do mercado e deste desenvolvimento, não há futuro para o meio ambiente. A divisão que se tinha dado, na época da discussão do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), entre os que só queriam áreas de conservação integral e os que entendiam o sistema como diversificado, permitindo a incorporação no SNUC de Resex e outras formas de co-existência entre população e preservação, voltou com força (ver O Eco). Não faltam exemplos que mostram a dificuldade que têm extrativistas, povos indígenas, pequenos agricultores e assentados para viver sem ter que destruir a sua base de recursos naturais. Será que estão achando que os parcos recursos públicos dirigidos a essas populações fazem concorrência aos não menos indispensáveis mas também reduzidos recursos destinados às áreas de conservação integral? Ou será que estão achando que essas populações são os principais responsáveis pela destruição dos ecossistemas? Assim, objetivamente, esses ambientalistas dão a mão aos desenvolvimentistas que já passaram a borracha sobre essas populações. Para tentar manter as áreas de conservação, entregariam o resto do território à sanha do capital?

Temos muitos amigos, amigas e companheiros que foram para instâncias executivas, e que batalham por projetos e programas pelos quais também nós lutamos. A amizade e o respeito continuam, mas não há riscos de confundir as tarefas e as responsabilidades? Nunca houve tantos Conselhos, mas quando temos possibilidade de colocar as questões de fundo? Quando e onde se leva em conta nossas reclamações e sugestões? O nosso Fórum é da dita “sociedade civil” e deve manter seu espaço de autonomia e sua atuação independente. É um Fórum político, e não técnico. Por exemplo, o GT Energia, quando discute, constrói uma visão com clareza técnica, mas que é usada para tomar posição política. Se apontamos para a possibilidade e a necessidade de “eficiência energética”, é para denunciar o escândalo do Ministério de Minas e Energia, cujas últimas preocupações são realmente poupar energia e ter uma verdadeira visão de longo prazo. É para exigir que se posicione nesse sentido e o Ministério do Meio Ambiente com ele. Ou que o MMA nos diga o que está fazendo para pressionar o MME.

Discutir Mecanismos de Desenvolvimento Limpo é bom, mas temos que acusar este governo, ou parte dele, de considerar a Amazônia como a última fronteira a destruir. Onde está nosso protesto coletivo renovado contra a transposição do São Francisco? Onde nosso grito para que a questão climática seja debatida e enfrentada como questão nacional? CPDS, Agenda 21, e no fundo, os projetos e programas ambientais, viraram perfumarias marginais. E o pior é que continuamos, na falta de alternativas para a população, mergulhando no salve-se quem puder, na corrupção, no jeitinho, no roubo e na violência.

Nosso Fórum deve ser a voz que clama ao escândalo, que protesta, que denuncia e que diz que é possível fazer diferente. Pois, se devemos negar esse desenvolvimento, devemos mostrar que neste país há dezenas de milhares de pessoas que mostram que é possível fazer diferente. Para essa tarefa imprescindível, são necessárias todas as forças que se reconhecem na busca de “um outro mundo possível”. O Fórum deve procurar os coletivos e movimento sociais que não participem do Fórum e se aliar com eles para fazermos escutar juntos a nossa voz, cada um trazendo sua experiência.

* Jean Pierre Leroy é coordenador do Projeto Brasil Sustentável e Democrático (PBSD-FASE), integrante do Fboms e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.