01/09/2006 11:19

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva (Diretor da FASE)

Na sexta-feira, dia 25 de agosto de 2006, foi concedido ao sociólogo e Professor Titular da USP, Francisco de Oliveira, o título de doutor “honoris causa” na Universidade Federal do Rio de Janeiro, por iniciativa do Instituto de Economia da UFRJ. A solenidade homenageia um cientista social que situa na sua epistemologia o enfoque antropológico da vontade emancipatória das classes trabalhadoras, expressando na sua visão de mundo uma paixão por um objeto de análise complexo chamado Brasil. Na esteira dos grandes intelectuais públicos brasileiros, na esteira dos grandes intérpretes de nossa formação sócio-econômica, o nosso Chico de Oliveira é reconhecidamente aquele que estabeleceu o diálogo crítico sobre o desenvolvimento com uma marca inconfundível de resgate e superação no âmbito do pensamento social brasileiro. Na qualidade de cientista, ampliou os objetos e desenvolveu o método da crítica da economia política no âmbito das concepções estruturalista e marxista. Como mestre da dialética sabe como ninguém desdobrar o sistema de contradições nas relações estruturais em movimento que definem a nossa semiperiferia capitalista.

Na sua obra, que vem sendo relançada e ampliada, a lógica da nossa “dependência (im)perfeita” ganha nova luz quando avança na superação teórica dos dualismos da tradição cepalina e das limitações da visão antinômica do social desde as suas vertentes históricas e escolas, quer desde o Recife (de onde ele veio) quer desde São Paulo (onde está). Em Francisco de Oliveira o Brasil se desdobra no tempo, como unidade e diversidade que se articula nas formas desiguais e combinadas de seu processo constitutivo. O capitalismo brasileiro conforma uma lógica que vai articulando-se na divisão internacional do trabalho. Na base da diversidade de processos que se unem como contradição e motor das suas conexões o nosso capitalismo é desvendado desde as suas regionalidades, como forma de modernidade. Interpenetrações e complementaridades que revelam a brutalidade de nossos extremos, intensamente capitalistas ali mesmo onde se lê um suposto atraso. Moderno na sua perversidade, o país engendra seu corpo e seu espírito na materialidade de um monstro da periferia diferenciada ou semiperiferia do capitalismo global.

Nos últimos anos, Francisco de Oliveira busca compreender e empreender as metamorfoses das articulações de nosso modo de produçãocapitalista dependente-associado, que se atualiza em face de uma brutal reestruturação, engendrando novos atores sociais que exigem um esforço de imaginação, de criação de conceitos em estado prático, quase literários, tributários de uma zoologia classificatória da ordem dos escritos do século XVII. As opções políticas dominantes na virada financeirizadora e privatista que nos envolve com sua ideologia de mercado auto-regulado são capazes de combinar os elementos mais perversos das relações sociais resultantes de nossa desigualdade histórica com os aspectos mais intensivos da lógica mercantil-capitalista da era global. O capitalismo da espoliação extensiva e intensiva leva ao paroxismo, à funcionalização de nosso território no âmbito de uma sociedade atravessada por uma banalização violenta e privatizante.

Nesse momento, temos de aceitar e utilizar o pessimismo da inteligência, dada a exigência de retomarmos o exercício de uma certa dialética negativa, de modo a atualizarmos a denúncia da forma atual do processo de contra-reforma permanente que se acelerou na sociedade brasileira. O quadro de transformismo que acometeu uma parte do PT domina as opções macroeconômicas do governo Lula sem que se constitua uma alternativa com força histórica e perspectiva política. A opção estratégica do governo está sustentada nos novos deslocamentos e recomposições de classe que descaracterizaram o bloco histórico da mudança. É nesse quadro que Francisco de Oliveira lança, em esforço ensaístico que lhe é característico, a imagem do “Ornitorrinco”, tentando dar nome ao que se tornou o país: algo irreconhecível num primeiro momento, já que tem como expressão mais próxima no mundo animal essa figura esdrúxula, inclassificável. O esforço de dar um nome ao bicho em que o país foi transformado se dá quando o cientista social desloca as velhas metáforas e, num efeito metonímico, nos coloca diante de mais um desafio de decifração.

O mestre da análise de conjuntura, Chico de Oliveira, sempre nos brinda com sua capacidade de fazer um desenho plástico e literário aos vôos e às arribações que sacodem as nossas estruturas. O pessimismo da inteligência aponta a brutal falta de vontade política emancipatória, que nasce de cada recusa ao enfrentamento da lacuna de inversão do foco secular de nossa historicidade. Suas metamorfoses pelo alto mostram a capacidade de recriar os ciclos de reestruturação e contra-revolução com a sedução dos discursos da permanente modernização perversa. Essas revoluções passivas (Carlos Nélson Coutinho), essas “fugas para adiante” e destruições nada criativas (Maria da Conceição Tavares e José Luís Fiori), esses refluxos e reciclagem da contra-revolução (Florestan Fernandes), essas reestruturações nos padrões de acumulação e nas relações de trabalho (José Ricardo Tauile e João Sabóia), essa perda de autonomia no âmbito das políticas ativas de Estado para o desenvolvimento econômico (Reinaldo Gonçalves) e social distributivo (Lena Lavinas), colocam-nos como um caso particular de classificação social, mais do que um efeito metafórico de significado, passa por efeitos metonímicos que exigem um pensamento social crítico extremamente sofisticado.

O grande leitor de Marx que é Francisco de Oliveira nos brindou com as mais finas análises e estudos de processos estruturais e movimentos conjunturais. Mas, apesar da sua desesperança atual no quadro de crise de referências e ausência de vontade transformadora, sem vislumbre de uma alternativa imediata capaz de recolocar a questão da construção de um novo bloco histórico fundado na centralidade do trabalho, apoiado na perspectiva do social, do público e do comum, que acentua a lógica anticapitalista e o ponto de vista ontológico do ser social e histórico da transformação da totalidade, vemos nas entrelinhas de sua crítica social e de sua contribuição de intelectual público elementos para recolocar dentro das fileiras dos dissidentes de dentro e de fora do PT, para além da atual divisão e retórica eleitoral, um horizonte de redefinição do projeto de transformação social. Na Universidade Federal, cujo reitor é um estudioso da nova supremacia norte-americana e das utopias socialistas, sob o manto protetor dos que se foram como Florestan Fernandes, Celso Furtado, Milton Santos e Otavio Ianni, Francisco de Oliveira, esse gigante da vontade política e da imaginação sociológica conseguiu reunir um pedaço de nossa inteligência que sem uma linha de pesquisa oficial, sem um recorte disciplinar da ciência positivista, demonstra o caráter político e necessário da aproximação das diferentes vertentes que tratam da nossa formação econômico-social do ponto de vista das urgências, tentando que a coruja possa sobrevoar antes do crepúsculo nesse momento nacional e internacional de outono como diria Fernand Braudel.