22/09/2014 11:02

Cláudia Freitas, do Jornal do Brasil*

Jovens de entre 14 e 29 anos participaram do mapeamento. (Foto: FASE/Arquivo)

Jovens de entre 14 e 29 anos participaram do mapeamento. (Foto: FASE/Arquivo)

“Quando o policial vê um jovem na Maré vem logo esculachando, é preconceito puro só porque moramos na favela”. Relatos fortes e impregnados por um sentimento de violação social, na verdade quase um desabafo, são os elementos de composição da “Cartografia Social” do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, que se encontra em construção na comunidade. O estudo participativo teve início há alguns meses pela Ong FASE, que pretende transformar jovens em protagonistas na formatação de um mapa atualizado da região, a partir dos seus olhares, vivências e percepções. O ponto de apoio são as violações à juventude na comunidade, tendo como “agressor” o poder governamental através de políticas “exclusivas e ditas de pacificação”.

O projeto tem a consultoria do historiador Fransérgio Goulart de Oliveira Silva, de 42 anos, que acumula experiência nas áreas de Juventude, Desenvolvimento Comunitário e Direitos Humanos. Fransérgio define a cartografia social como uma metodologia que não impõe peças para a construção do mapeamento, tendo como resultado final o aglomerado das percepções dos jovens participantes com relação a diversos setores sociais considerados por eles relevantes para a melhoria da vida na comunidade. “Tanto que vários aspectos não apareceram, pois quem demarcava e dizia o que apareceria eram os jovens a partir da sua vivência”, completou.

Os participantes, jovens entre 14 e 29 anos, receberam instruções técnicas de como montar o mapa através de oficinas monitoradas por Fransérgio, que também organizou visitações às 16 favelas que formam o complexo. A conclusão de Fransérgio reforça o conceito “Cartografia da Ação Social”, metodologia criada pela socióloga Ana Clara Torres Ribeiro, que desenvolveu a prática ao longo de 16 anos com base no Banco de dados Processos Sociais, que permitiu a autora fundir as áreas da Sociologia com a Geografia.

“Ana Clara entrou o século XXI imprimindo a importância dessa metodologia, que coloca no centro dos estudos os moradores em áreas de risco social, visando ainda à manutenção da memória técnica e afetiva desses lugares. Os atores sociais, a partir desse instrumento de pesquisa, podem construir a identidade do local através dos seus olhares e percepções, juntamente com os seus pares”, esclareceu Humberto Kzure-Cerqueira, arquiteto e urbanista do Instituto de Tecnologia da UFRRJ, mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ e Bauhaus Universität Weimar da Alemanha.

Foram realizadas visitas às 16 favelas da Maré (Foto: FASE/Arquivo)

Foram realizadas visitas às 16 favelas da Maré (Foto: FASE/Arquivo)

A Cartografia Social da Maré ainda não tem uma data para ser lançada, mas para quem está à frente do projeto o resultado mais significante já foi alcançado. “O mais importante de uma Cartografia Social é quando ela se transforma em ferramenta de luta por quem a criou. E temos certeza que os jovens se empoderaram desse processo”, destacou Fransérgio.

A expectativa de Fransérgio quanto ao efeito do estudo na sociedade carioca é que as pessoas que entrarem em contato com a cartografia possam perceber as juventudes não como um problema – “mas como sujeitos construtores de direitos e que exigem e sabem do que a favela precisa”. “A gestão pública precisa entender, de uma vez por todas, que política pública se faz com essa participação direta, e não apenas pela forma representativa, através do voto, via institucional esta que, inclusive, está muito desacreditada pelas juventudes”, destacou.

Aspectos sociais importantes para a juventude

O setor de Segurança foi um dos mais criticados pelos participantes, que denunciaram um “processo de militarização na comunidade” com a chegada das tropas federais já por conta da pacificação da região anunciada com a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). “Imagina você ter sua vida vigiada pelo exército durante todo o tempo, com proibições de chegar tarde na favela onde mora e sofrer com abordagens racistas dos soldados das tropas federais”, disparou um dos jovens. Os relatos das meninas são ainda mais contundentes e revelam uma violência ao público feminino. “Só porque andamos de shortinhos curtos e saias eles [policiais] nos chamam de vagabunda”, afirma uma participante.

O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do ano de 2010 serviu como parâmetro para a pesquisa participativa na Maré. Segundo o instituto, o complexo de favelas possui uma população de 131.204 moradores, sendo desse total 37.542 jovens de 15 a 29 anos. Ainda com base no Censo, dos 43.038 domicílios, 2,14% não possuem rede de esgoto. A cartografia acrescentou que “há poucos funcionários da CEDAE [Companhia Estadual de Águas e Esgotos] para realizar qualquer tipo de reparo”.

Foram relatadas violações com a militarização da Maré (Foto: Fernando Frazão/ABr)

Foram relatadas violações com a militarização da Maré (Foto: Fernando Frazão/ABr)

Com relação à limpeza urbana, o Censo do IBGE informa que 0,28% dos domicílios não possuem coleta de lixo. Esse dado, na avaliação dos jovens, não se caracteriza em um bom serviço público de coleta. “No processo de cartografia ficou claro, ao andarmos pelas ruas da Maré, que a questão da coleta de lixo é dramática, com entulhos e mais entulhos e sacos espalhados por toda a favela”, destacou Fransérgio.

Os dados do IBGE apresentam um quadro religioso na região. Em 2010, 64,6% da população da Maré se diziam católica, contra 22,2% de evangélicos, isso nos ano de 1980 era de 90 % católicos para menos de 5 % de evangélicos. “Há gente do candomblé e da umbanda aqui na Maré, mas os centros que existiam deixaram de existir por causa do aparecimento dessas igrejas pentecostais e da intolerância e desrespeito com a religião do outro”, relata um dos jovens durante a oficina.

As violações no mapa

A linguagem popular foi a adotada para a apresentação do mapeamento. Um vídeo do processo de construção da Cartografia, com falas e diálogos dos jovens, também faz parte do projeto, além do relatório da assistente social Mônica de Souza Ponte, que integra a Ong FASE. Ela contou como foi a chegada do projeto à comunidade e os próximos passos para a sua divulgação no Rio. Segundo a profissional, a cartografia irá compor uma cartilha que vai apresentar os resultados de diversos projetos que estão em andamento em comunidades cariocas e em outros estados.

Desde o ano passado, a Maré estava recebendo trabalhos coordenados pela FASE, em parceria com outra organização, a Conexão G, formada por militantes gays moradores do complexo. Quatorze jovens moradores, de perfis sociais diferentes, foram selecionados para compor a equipe de produção do mapa, após uma chamada geral feita pela ONG nas favelas da região no início do ano. “Escolhemos jovens engajados e aqueles que nunca participaram de projeto social, justamente para chegar a resultados diversificados”, contou Mônica.

Especialista: ‘morador deve ter liberdade e academia pode apenas ajudar na organização dos dados expostos por eles

Em uma análise da realização da Cartografia Social da Maré para jovens, o sociólogo Humberto Kzure-Cerqueira considerou o projeto positivo, pois tem como protagonistas os atores sociais impactados, dando os seus olhares para criar o projeto de vida na comunidade que vivem, priorizando o acesso aos bens e serviços, como a universidade e unidades de saúde. “São os cidadãos proativos nas demandas do país”, classificou.

Seguindo a linha de raciocínio do sociólogo, o processo democrático deve conduzir os trabalhos para que os moradores possam naturalmente detectar por eles mesmos as deficiências na sua comunidade e apontar as soluções, sem interferência de qualquer organismo governamental ou não governamental. A atuação das organizações e da academia deve ser limitada à orientação técnica para o desenvolvimento do mapa.

Kzure-Cerqueira ressalta a importância dos jovens trabalharem a “noção de pertencimento”, que oferece a eles o entendimento para cobrar do poder público as ações de melhoria na qualidade de vida. “Ele [o jovem] desenvolve a noção de pertencer ao lugar, ampliando os horizontes e em contato com a memória afetiva dessa região, aponta melhorias, isento de qualquer preconceito e manobra, que vão proporcionar de fato qualidade ao ambiente pesquisado”, esclareceu.

* Versão reduzida da matéria publicada pelo Jornal do Brasil. Aqui o texto na íntegra.