24/05/2009 18:17
Mais uma vez, grandes veículos de comunicação dão condições desproporcionalmente maiores àqueles que argumentam contra as políticas pró negros, a exemplo do artigo “De Nixon a Vicentinho”, assinado por Demétrio Magnolli e Yvonne Maggie em O Globo de 17 de setembro.
Sua questão de fundo permanece a mesma: insistir no argumento cabal de que o conceito de raça não se aplica a seres humanos, e que portanto uma política pública baseada neste conceito validaria o conceito e instituiria uma divisão racial da sociedade. Ao longo dos últimos anos, e a propósito do debate deste mesmo Estatuto que a Câmara acaba de aprovar, os dois intelectuais que assinam o artigo repetiram este argumento publicamente em muitas ocasiões. Mas não deram atenção ao fato de que muitos defensores das políticas afirmativas para as populações discriminadas também não crêem no conceito de raça. E, mais do que isso, se fizeram surdos à mais realista e principal justificativa destas políticas, que não reside no debate sobre a validade ou não do conceito de raça, mas na prática inegável do racismo pela sociedade brasileira.
Enquanto os autores vêem com preocupação a possibilidade de o Estatuto da Igualdade Racial promover um apartheid oficial no Brasil, sequer mencionam que nas ruas das cidades, nas salas de aulas de universidades públicas, nos territórios rurais pressionados pelo agronegócio, nos postos de trabalho de todos os setores da economia, a apartação de negros existe e é bem real.
O caso das cotas para ingresso nas universidades públicas tornou-se o mais emblemático desta discussão. Em artigo recente no site da ONG Geledés, o professor da Universidade de Brasília José Jorge de Carvalho apresenta dados que ele pesquisou sobre a existência de professores negros nas seguintes universidades públicas: USP, Unicamp, UFRJ, UFRGS, UFMG e UnB. Nelas, os docentes negros somam não mais que 0,6% do total. Segundo ele, a África do Sul do tempo do Apartheid tinha mais professores universitários negros do que o Brasil tem hoje, proporcionalmente. Seu argumento leva a crer que, se não forem adotados mecanismos que forcem a correção deste rumo, a sociedade poderá naturalizar de forma irreversível a situação, e assim aceitar passivamente o estabelecimento de uma suporta verdade que, esta sim, validaria o conceito de raça: a de que a docência universitária seria profissão reservada a pessoas brancas.
Em artigo de agosto deste ano também reproduzido pela Geledés, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos defende a criação de cotas para negros e indígenas nas universidades públicas por três motivos: a) o sistema de educação superior não pode se entregar à reprodução de desigualdades que lhe são externas; b) as cotas não trazem prejuízos à qualidade acadêmica, o que é óbvio, mas deve ser afirmado e estimulado por trazer diversidade cultural à produção do saber; e c) a comunidade acadêmica legitimou a política afirmativa, inclusive fazendo da inserção do estudante cotista uma causa política.
Por isso, o risco de apartação social não é teórico, como querem fazer crer os que torcem o debate para afirmar que está em curso uma “racialização” da sociedade brasileira. A segregação dos negros é histórica e se verifica no dia a dia desta população, nas discriminações racistas que sofre, sejam elas econômicas, educacionais, policiais, midiáticas ou de qualquer outra ordem. Políticas públicas que carreguem consigo a coragem de reverter injustiças históricas são bem-vindas. Antes de causar hipotéticas segregações de Estado, serão apropriadas pela sociedade e promoverão a inserção digna e igualitária dos negros, hoje e no futuro. O benefício maior, contudo, é de interesse de todos: negros, brancos, indígenas ou imigrantes de qualquer outra origem cultural, nenhum de nós aceitará viver num país racista como, infelizmente, o Brasil ainda é.