08/01/2007 11:56

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
(Diretor da FASE)

O ano de 2006 esteve marcado pelos fenômenos mórbidos da crise de hegemonia inaugurada com o colapso da força inercial do bloco político, social e intelectual que, entre 1985 e 1989 havia colocado o Brasil numa situação de excepcionalidade face ao fracasso do socialismo real e da social-democracia, frente ao impulso da globalização neoliberal. A reestruturação capitalista e a agenda “globalitária”, iniciada na era Collor e aprofundada nos dois governos de FHC, se combinou com um forte transformismo adesista do campo majoritário do PT e o pragmatismo dos jogos de poder pelo alto.

Mas a direita golpista e a mídia a serviço do grande capital não consumaram a tentativa de golpe institucional desenvolvida ao longo de 2006. Lula saiu novamente majoritário por força de uma curiosa resistência molecular de forças sociais e intelectuais que se somou a uma tomada de posição defensiva com base na intuição das mulheres e homens precarizados, vulneráveis e marginalizados. O segundo turno rompeu com o silêncio dos movimentos sociais, reabriu o debate sobre o papel dos intelectuais e impediu a manipulação, gerando uma atitude do “bom-senso” comum de grande parte do eleitorado. A maioria do eleitorado se identificou com a perspectiva redistributiva débil expressa no maior acesso aos bens alimentares e no campo simbólico contra o preconceito étnico-social manifestado na vida diária e nos porta-vozes e especialistas que tinham acesso ao poder do príncipe eletrônico. A violência verbal de certas elites e da mídia, sem correspondência com seus ganhos reais através da lógica da acumulação do capital monopolista e financeiro no período do primeiro mandato de Lula, acabou gerando uma contra-resposta de identificação da maioria das classes subalternas com o Presidente candidato. Obrigando Lula a destacar no debate do segundo turno, a importância das brechas social-distributivas, de ação afirmativa, de empate ambiental e de diálogo formal que marcaram de maneira ambivalente a relação com as demandas populares no seu primeiro mandato.

O segundo turno forçou um aprendizado que foi claro: não se reconstrói um bloco político sem um novo ator, não se derrota um desejo coletivo sem um projeto orgânico. Lição para a esquerda, lição para a direita, uma certa lógica molecular derrotou a produção de simulacros e da espetacularização política, particularmente na CPI do fim do mundo que virou “pizza”. O fato social e o acontecimento remetem ao problema da estrutura sistêmica da corrupção e da crise da representação numa sociedade dilacerada pela degradação dos modos de vida e da esfera pública. O poder judiciário, o poder legislativo e o poder comunicativo são atravessados pela mesma crise da superestrutura que engolfou o poder executivo. Na volatilidade do processo institucional de produção de impasses artificiais ficou desnudada a falsa retórica do desejo de reforma da política. No âmbito da crise de sustentação parlamentar o domínio do pântano e do centrão deitaram por terra o que restava de vontade política, no âmbito dos partidos, para que se aprofundasse a democracia na linha direta com os anseios substantivos de superação das desigualdades. Ficou evidente a crise do ator político com a falta de vontade real de mudança estrutural, só restando, para além da retórica udenista, as opções pelas formas de voto útil.

Mas os resultados das urnas, além do efeito quase-politizador do segundo turno, indicaram tendências importantes. Nos governos estaduais e no Senado, vimos uma sinalização da necessidade de um resgate mais ativo da crítica da política de esquerda ao projeto neoliberal no sul e no sudeste, que paradoxalmente só ocorreu no Paraná; tivemos a reafirmação da força do bloco agro-industrial no centro-oeste; uma virada antioligárquica em parte do nordeste; e um desejo de mudança no norte.

O ano de 2007 começou com as chuvas e enchentes de verão. O cenário de crise fiscal no sistema federativo se soma ao engessamento do orçamento da união, e tivemos o acordo para um pequeno reajuste do salário. A compressão do modelo econômico se faz sentir na sua lógica invertida pela importação e os juros que fazem sair pelo ladrão o esforço exportador. O debate sobre a infraestrutura, sobre a renda salário, sobre a representação política, é encoberto pela continuidade da morbidez derivada da falta da grande política e pela dialética perversa da banalização da violência nas cidades.

O uso da força e da institucionalidade para a intervenção de exceção na área da segurança, as catástrofes ambientais e da saúde, os desmandos da ópera bufa dos vencimentos dos parlamentares e a fragilidade da competição por recursos nas organizações da sociedade civil (dependentes do governo, da cooperação internacional e das grandes corporações), demonstram a dificuldade de um processo de crítica radical ao contexto atual. A hora é de trabalhar a construção de uma frente única para romper com o caráter mistificador do discurso sobre o crescimento, que tem por base um processo de expansão da exploração sócio-ambiental e de aviltamento do trabalho pela sua precarização. A hora é de romper com o discurso criminalizador das grandes maiorias, que torna as vítimas culpadas pelos efeitos de precarização e da marginalização do trabalho e dos direitos de cidadania. A hora é de reabrir a possibilidade de uma esfera pública impulsionada por uma nova inteligência coletiva crítica. Tudo isso exige um reagrupamento de forças sociais e políticas que possa ocupar o vácuo deixado pela crise da solução transformista pelo alto.

A força que procurava silenciar a voz pública do debate intelectual e da crítica sócio-política está momentaneamente abalada por não ter conseguido impor o discurso favorável a uma política de gestão absoluta pró-mercado e contra o trabalho. Temos a possibilidade de um reagrupamento político e social de forças interessadas em construir um projeto alternativo de radicalização democrática, com a crise do poder da grande mídia e com a crise da onipotência dos aparelhistas e carreiristas. Hoje, temos um pequeno abalo nos muros de contenção e nas máquinas de produção da pseudopolítica e da pseudo-ética. Existe um movimento molecular e difuso de resistência popular ao retorno do neoliberalismo puro. Existe uma pequena brecha para uma aproximação franca das forças sociais e políticas que, dentro e fora do governo, dentro e fora do PT, talvez possam reabrir um debate sobre o projeto de luta contra as desigualdades no Brasil, em bases democráticas, republicanas e emancipatórias tendo em conta o movimento molecular de consciência que se articulou em rede nas ruas e na internet em muitos lugares do país.

Uma plataforma de lutas pode dar as bases para um reagrupamento de forças na perspectiva dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, da nova centralidade do trabalho associado e autogestionário, da renda básica universal, da mobilização democrática e produtiva das redes sociais nos territórios, da radicalização do uso dos mecanismos constitucionais de controle e participação direta, do acesso aos fundos públicos. Essa plataforma desenha parte dos eixos dessa possível nova aliança para um transformismo desde baixo, aquele que unifica a intelectualidade na sua função crítica político-social levando em conta a luta molecular e cotidiana das grandes maiorias para superar a nossa apartação e genocídio social permanente.