Leticia Rangel Tura
04/08/2023 15:12
Num tempo em que a emergência climática nos salta à vista, os olhos, ouvidos e atenções do mundo estão voltados para a Amazônia. Presidentes de países da região, representados na OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) e amplos setores da sociedade civil organizada se reúnem nos próximos dias com foco na floresta, como se ela em si fosse a salvaguarda para garantir o equilíbrio do clima no planeta. Porém, é preciso ajustar as lentes para enxergar quem de fato mantém viva a preservação e as visões de futuro do bioma: os povos e comunidades tradicionais amazônicas.
Segundo o próprio presidente Lula, em discurso durante a COP 27, no Egito, há algum tempo já se mostrava necessária a realização de uma reunião de cúpula na Amazônia. Nesse mesmo contexto, os presidentes de Bolívia e Colômbia também reafirmaram isso. O tratado de cooperação da Amazônia, construído em 1978, já indicava a necessidade de união de esforços dos países da PanAmazônia que fazem fronteira entre si, por diversos motivos: preservação da floresta e contenção do desmatamento, navegação e recursos hídricos, cooperação para ciência e tecnologia, questões de saúde, infraestrutura, transporte e comunicação, turismo, comércio, entre outros. Porém, nunca teve relevância política mais forte, apesar dos encontros de rotina das chancelarias e das recentes declarações sobre formação de um Parlamento Amazônico. Cresce o nível de importância desta integração a partir do contexto da explosão da emergência climática, com debates acalorados sobre o ponto de não retorno da Amazônia, do combate ao desmatamento, do papel da floresta nas mudanças do clima — que estão cada vez mais visíveis – entre outros. Mundialmente, há uma redução drástica de florestas tropicais no mundo: a Amazônia guarda grande percentual dessa vegetação, e ganha ainda mais relevância por toda a importância que o bioma carrega para o equilíbrio climático.
Ainda que essas questões sejam fundamentais, a Amazônia não pode ser reduzida a esses temas, mas tem uma importância ainda maior. Por ser um território muito preservado, apesar de todos os ataques já sofridos, as populações que habitam a região têm muito a nos ensinar. São lugares de inovação e criatividade, com um tecido associativo muito forte, cooperativas , associações , grupos, coletivos, muito politizados, que criam alternativas concretas nos territórios, que garantem a sobrevivência, diretamente vinculada ao território. São sujeitos que vivem na floresta e da floresta. A relação com a biodiversidade, com os rios, está intrinsecamente ligada a essa preservação e às soluções construídas por essas populações ao longo dos anos. O que existe de fundos comunitários, de caminhos para a agroecologia, de alimentações alternativas, de formas de comercialização, de moradias, de autofinanciamento, de plantar, de colher… a Amazônia é um laboratório de alternativas e de outras possibilidades de sociedade, de organização social. Um lugar de rica diversidade de ecossistemas, de biomas, mas também de povos, de trajetórias de ocupação, de solos, de vegetação. Distintas etnias indígenas, como também variadas populações tradicionais, camponesas, urbanas, cidades hegemonicamente indígenas, ribeirinhas em palafitas, cercadas pela soja, cercadas pela mineração: a Amazônia também precisa ser pensada a partir das populações que a ocupam, originárias ou migrantes. Esse caldeirão de culturas conforma também ter esse tecido associativo rico que a Amazônia tem, nada disso pode ser deixado de fora quando estamos pensando em alternativas.
A Cúpula Amazônica quer pensar novas estratégias para a região, mas estas devem ser pensadas a partir das populações da Amazônia, que construíram toda essa rica experiência alternativa e têm sobrevivido apesar de toda forma de expropriação e de exclusão. Deve ser construída a partir de uma inteligência amazônica, com base nas dezenas de centros de pesquisa, universidades e institutos da região: Inpa, Naea/UFPA , Museu Paraense Emílio Goeldi, Mamirauá, entre outros tantos. A Amazônia não precisa ser pensada a partir de São Paulo ou Rio de Janeiro, tem que ser pensada a partir das experiências próprias da região. Proposições baseadas em modelos de bioeconomia, biotecnologia, que surgem como novidades nos discursos de governos e corporações, tudo que se pensa até agora parte de uma visão exógena da Amazônia, privada, da mercantilização e financeirização da natureza, mas também observada a partir de sujeitos privados. Cabe o questionamento: quem é o sujeito político e econômico dessa nova economia? Qual é a escala? Estamos falando de grandes corporações e empresas, sojeiros, mineradores? Ou de cooperativas, associações, populações de áreas de floresta, do campo e urbanas? Estamos falando de grandes economias, ou de redes que se articulam nos territórios? É preciso potencializar produtos de biodiversidade, pensar e fortalecer os mercados locais, a soberania e a segurança alimentar, a medicina natural e tradicional, e não os grandes laboratórios ou empresas exportadoras. Os processos devem ser diversificados, articulados em redes nos territórios e não concentrados.
Há conceitos trabalhados há décadas pelas comunidades amazônicas que não ganharam visibilidade no debate das alternativas, como a agroecologia, o agroextrativismo, a economia solidária, a sociobiodiversidade A Articulação Nacional de Agroecologia, por exemplo, existe há mais de 20 anos, com dezenas de iniciativas, redes, plataformas, mas que ainda precisam ter destaque no diálogo à mesa. Há políticas de governo que poderiam ser potencializadas, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) , o PGPM-Bio (Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade), programas que estão dentro do próprio governo que poderiam ser mais valorizados, tanto quanto a bioeconomia. Não queremos inventar a roda de novos instrumentos: há ferramentas e tecnologias sociais potentes, incisivas, que permitem a visão em outra escala, com circuitos curtos, mais próximos das comunidades e territórios. Com redes de financiamento fora do mercado de carbono, que de fato consiga chegar mais perto das populações que precisam ser apoiadas.
Não queremos conceitos impostos de cima para baixo. Defendemos a transparência e a visibilidade de mecanismos que já existem na região e que não obtêm o devido apoio. Ainda é tempo de abrir os olhos e enxergar a imensidão dos rios, das florestas e da sabedoria dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia.
*Diretora Executiva da FASE