22/07/2020 16:33
Caroline Rodrigues da Silva¹
Inspirada pelo debate “Resistências e estratégias dos movimentos sociais em tempos de pandemias”, realizado em junho pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais (NEMOS) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviços Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PPGSS/PUC-SP), escrevo este artigo afim de registar os apontamentos feitos pelo NEMOS e pela FASE, bem como dialogar com os elementos trazidos pela União dos Movimentos da Moradia (UMM). Destaco que neste encontro virtual, um dos participantes que estava representando o movimento indígena de São Paulo – Emerson de Souza – teve sua participação prejudicada pela falta de conexão com a internet no momento do debate o que, em si, já expõe a desigualdade no acesso digital que desafia resistência social na pandemia.
A escala planetária da Covid-19
Precisamos levar em consideração que estamos diante de um problema de saúde planetário, que até a primeira quinzena de junho tinha matado aproximadamente 430 mil pessoas no mundo e, um mês depois, já contabiliza 617 mil segundo a Universidade Americana Johns Hopkins. No Brasil, salvo o número de subnotificações e as recentes alterações na metodologia do governo federal para contabilizar dados relativos a Covid-19, tínhamos até a primeira quinzena de junho 44 mil mortos e, passado um mês, já ultrapassamos os 80 mil mortos. Ou seja, esse número pode ser muito maior. Essa alteração metodológica ocorreu ao mesmo tempo que alguns governos estaduais como de São Paulo e do Rio de Janeiro flexibilizaram as medidas de isolamento social e deram mais um passo no sentido de “salvar a economia e os CNPJs”, fechando os olhos para o fato de que somos “o único país do mundo que tomou medidas deste tipo no momento em que a curva de contágio ainda está subindo”. Também é importante lembrarmos que num país tão desigual como o Brasil, a taxa de letalidade da Covid-19 não é nada democrática.
Dentro desta escala planetária, Estados Unidos e Brasil já são os dois países com pior desempenho na pandemia, tidos como epicentro da doença. Não por acaso, no fim de maio e no início de junho, as medidas sociais impostas pela pandemia se somaram ao racismo estrutural que marca a sociedade americana. Resultado, vimos explodir protestos sociais de Mileapollis (EUA) ao mundo, protestos que denunciam mais uma vez os limites da democracia liberal. Uma democracia que prega a igualdade de direitos, mas permite que “vidas negras valham menos”, que se estrutura a partir de um sistema de justiça racistas, que no discurso respeita os direitos civis, mas na prática criminaliza os movimentos sociais.
De lá pra cá, qualquer ação de resistência popular de enfrentamento à pandemia não pode desconsiderar o racismo estrutural da sociedade brasileira. O caso do Rio de Janeiro é um exemplo emblemático do porquê o racismo precisa ser posto no centro do debate democrático, aqui vivemos um duplo genocídio da população pobre, negra, moradora das periferias. Duplo porque essa população é tanto a que mais morre em decorrência da Covid-19 como a que mais morre em decorrência da política de segurança pública racista que temos. Os números não nos deixam dúvida. No Rio, o vírus já contaminou mais de 116 mil pessoas e levou a óbito outras 10 mil, até o fim de junho. Ao mesmo tempo, as mortes em decorrência de ação policial aumentaram 43% no mês de abril – foram mortos no período 177 pessoas. E para que a vida não se reduza a números, é preciso dizer que se tratam de Maria Eduardas, Ágatas, João Pedros, João Vitors e tantas outras vidas perdidas. Esses números têm nomes, famílias, histórias.
Alternativa e resistência
É preciso chamar atenção ainda para as transformações nas formas de ação dos movimentos sociais que os pesquisadores do NEMOS têm estudando nos últimos dois anos. Pelo menos, desde o ciclo de protestos de 2013 no Brasil, do Occupy Wall Street nos EUA, e do Movimento dos Indignados da Espanha, sabemos que as estratégias de resistência popular têm sido marcadas por uma gramática política bastante heterogênea, puxada por sujeitos políticos plurais. Na luta pelo direito à cidade, por exemplo, emergem na cena pública tanto movimentos sociais organizados como a UMM, como grupos autonomistas, coletivos juvenis, ativistas sociais, coletivos identitários, entre outros. O que nos parece importante destacar, e que irá ajuda a compreender as diferentes escalas de resistência popular em tempos de pandemia, é que parte dos sujeitos políticos que emergem nesse ciclo de protestos passam a fazer política fora da institucionalidade democrática, buscando a horizontalidade como forma de ação política e negando a forma de representação partidária e sindical.
Em relação à mobilização, o uso das redes sociais online e da internet foram fundamentais em 2013 e agora na pandemia voltaram a ter um papel central para construção das estratégias de resistência. Esse conjunto de transformações complexificaram a sociedade civil e passam a ressignificar o sentido da política e da própria democracia. Entender essas recentes transformações nas formas de ação dos movimentos é, em si, uma das estratégias de resistência que ajudam a não nos surpreendermos quando, em plena pandemia, movimentos de favela, antirracistas, torcidas de futebol antifascistas e entregadores/trabalhadores de aplicativo foram os que primeiro tomaram as ruas em forma de protesto.
Com o objetivo de mostrar as diferentes escalas da resistência popular em tempos de pandemia, relato aqui duas iniciativas de incidência política que a FASE tem desenvolvido e que, para além da questão das escalas, apontam que a resistência popular, apostando na articulação campo-cidade, seja pela questão primária da fome, seja porque os territórios não urbanos são mais invisibilizados historicamente.
A primeira iniciativa é a campanha para retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que é uma política pública de Estado que existe desde 2003. Trata-se de um tipo de incidência política sobre o Estado, ou seja, que cobra o Estado para que este enfrente a pandemia por meio de políticas sociais que, neste caso específico, representa tanto a garantia da saúde com geração de renda em escala nacional. A Campanha não é articulada apenas pela FASE, mas por diversos movimentos, redes e organizações que compõem a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e atuam com as causas da soberania e segurança alimentar, da agricultura familiar, da economia popular, da justiça sócio ambiental. Defendendo “Comida Saudável para o povo já” a Campanha visibiliza a situação dos agricultores familiares – que estão com inúmeras dificuldades para escoar a produção e conecta essa situação com a miséria e fome vivida nas periferias urbanas.
Em relação às estratégias de resistência destaca-se a incidência política que a Campanha está fazendo sobre o Estado, seja reivindicando o pagamento da renda emergencial a todas/os trabalhadoras/es desempregadas/os ou informais; seja reivindicando o aumento do número de benefícios do Programa Bolsa Família e a liberação imediata de todos os benefícios bloqueados nos últimos três anos; seja ainda cobrando o Ministério da Cidadania que reduziu as verbas do PAA em 84,6% entre 2016 e 2020. Ou seja, em 2016, o orçamento do PAA era de R$ 12 bilhões e agora, em 2020, é de apenas R$ 1,9 bilhão. A Campanha ainda faz apelo para que estados e municípios também utilizem recursos próprios para compra e distribuição de alimentos saudáveis oriundos da agricultura familiar.
Em abaixo assinado e carta dirigida ao governo e à sociedade com adesão de cerca de 800 organizações e movimentos sociais, a Campanha reivindica o aporte de R$ 1 bilhão em 2020 e mais R$ 2 bilhões até 2021 no PAA; assim como reivindica ajustes administrativos necessários para facilitar o acesso pelos agricultores e agricultoras familiares. Como resultado desta campanha, o governo federal liberou um montante de R$ 500 milhões, mas a mobilização continua para que esse valor chegue a R$ 1 bilhão e, mais do que isso, que seja reajustado a realidade de 2020.
Ainda sobre as estratégias de resistência adotadas pela Campanha, nesse momento de pandemia destaco a comunicação ativa. Uma comunicação que tanto politiza a alimentação como problematiza o tipo de consumo que, em geral, realizamos nas cidades – não sabemos de onde vem nossa comida, não sabemos quantos litros de agrotóxico tem nessa comida, compramos de grandes redes de supermercados ao invés de fortalecermos os pequenos produtores e a economia local. Enfim, em termos das escalas de resistência, a Campanha tem uma abrangência nacional e, ao mesmo tempo, mantém vínculo direto com os territórios de agricultura.
A segunda iniciativa é a Campanha “Água Boa para Todos e Todas” que é uma iniciativa do programa da FASE no Rio de Janeiro com movimentos, sindicatos, redes, organizações e mandatos parlamentares em defesa da água e do saneamento como Direito e como Bem Comum. Trata-se de um tipo de incidência política sobre o parlamento (estadual e federal), que ganhou maior sentido político por causa da própria pandemia – que acentuou as desigualdades sociais relativas ao acesso a água nas grandes cidades e expôs os riscos de privatizar a Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro (CEDAE) em meio à pandemia.
A Campanha faz um tipo de incidência que denuncia a captura do Estado pelos grupos econômicos financeiros e pela lógica neoliberal, expressa no processo de privataria² generalizada que marca o governo de Jair Bolsonaro, comandada pelo ministro-banqueiro Paulo Guedes que, dada a crise sanitária, vão na contramão do mundo. No calor do momento, volta-se a discutir no mundo todo a importância de reconhecermos a função dos Estados no provimento de serviços essenciais à população como os da área de saúde, educação, ciência e tecnologia; de enfrentarmos os problemas decorrentes da supervalorização da globalização em detrimento do enfraquecimento dos estados nacionais.
Ou seja, a Campanha adotou como estratégia de resistência pressionar a institucionalidade democrática – aquela que dissemos que está em crise, mas que ainda está aí para ser disputada. Essa estratégia inclui o diálogo com os parlamentares do campo progressista para defesa da CEDAE, a publicação da Carta Manifesto da campanha no Diário Oficial, a participação no processo de Consulta Pública ao Edital do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) para concessão da CEDAE, a pressão política para realização de audiência pública, a realização de debates online sobre o tema etc.
De baixo para cima
Se a escala da Covid-19 é planetária, as ações de resistência popular têm um pé fincado nos territórios e, a depender da conjuntura política, conseguem ganhar escala mais ampla. Ou seja, há resistências sendo gestadas na pandemia que, em geral, estão diretamente vinculadas às demandas do seu território, mas que estão globalmente conectadas pela internet a diversas outras lutas sociais. Tais lutas também denunciam os limites da democracia liberal e que dizem basta ao racismo estrutural da sociedade capitalista.
A solidariedade também tem sido uma estratégia de resistência dos movimentos sociais. Temos que considerar que as demandas sociais impostas não são de ordem individual, são demandas essencialmente coletivas por trabalho, por condições de moradia, por acesso à água, por acesso à saúde. Portanto, ao reduzirmos as ações de solidariedade ao assistencialismo ou a substituição do estado, estamos desconsiderando a potência da solidariedade politizada, aquela que deve ser construída de baixo para cima, com os movimentos do território, aquela que além de matar a fome constrói redes de confiança, apoio mútuo, informa e constrói referencias concretas de pertencimento a uma coletividade tão pouco valorizada na sociedade capitalista individualista, competitiva e indiferente ao outro.
[1] Educadora da FASE no Rio de Janeiro.
[2] Neologismo que mescla as palavras privatização e pirataria e foi utilizado inicialmente para descrever o processo de privatizações de empresas estatais iniciado pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995–2002).