17/10/2006 10:07

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva (Diretor da FASE)

O líder revolucionário Vladimir Ilitch Ulianov, Lênin, considerava o esquerdismo a doença infantil do comunismo. Parafraseando-o, podemos considerar o projeto do neoliberalismo como uma doença infantil do capitalismo. As políticas de adequação a uma nova divisão do trabalho e ao novo regime de acumulação de capital se “naturalizaram”, como uma profecia que se cumpre, no quadro de crise social e fragmentação permanentes. A força geopolítica e a facticidade da nova desigualdade foram construídas pela onda da dominação globalista aberta nos anos 80 do século XX. No caso brasileiro, esse processo se deu por meio da abertura do ultraliberalismo econômico com a hegemonia dos dispositivos de ajuste estrutural, reforma do Estado, privatização e estado de guerra permanente contra as classes populares. As classes dominantes acentuaram, com Collor, um mimetismo do padrão americanista perverso de produção e reprodução social, que radicalizou a barbárie do “moinho satânico” da utopia do mercado auto-regulado. Após o impedimento do marajá das Alagoas, fomos brindados pela racionalização técnico-financeira desse processo de rendição incondicional aos ventos que sopram do norte.

Nos dois mandatos de FHC, fomos objeto dos grandes “negócios da China” que só têm paralelo com a obra do governo do presidente Dutra, que após a queda da ditadura do Estado Novo queimou as divisas obtidas ao longo da segunda Guerra Mundial. Os governos de FHC concluíram o ciclo de adaptação e naturalização da arrancada neoliberal, na busca de um caminho de superação das políticas desenvolvimentistas. Ao longo de oito anos, gerou-se a maior transferência patrimonial da história brasileira como tributo ao projeto de desenvolvimento dependente e associado, impulsionando o impacto do processo de transnacionalização do capital.

A vitória de Lula define um quadro ambivalente, de continuidade e bloqueio desse projeto. Mantendo os pilares do ajuste estrutural e do cumprimento dos acordos para o pagamento da dívida, ele reabre o processo de luta por alternativas ao conceder um vasto conjunto de medidas parciais ou quase-políticas. As bases para os pequenos avanços são bem menos sólidas do que foram as esperanças depositadas numa vitória do PT, para que se operasse um giro à esquerda na realização de um projeto de país. A guinada para o centro viu ainda a desagregação e recuo do bloco orgânico da luta social que esteve centrado no tripé movimentos sociais/sindicatos/partido político de massas. O governo seguiu a tendência histórica de rendição ao modo de reprodução e sustentação política da oligarquia liberal pela repetição dos padrões da República Institucional. Ao mesmo tempo, desencadeou inúmeras medidas de impacto social e distributivo. As contradições desse processo se ligam aos deslocamentos nacionais e internacionais nas relações de força através da recomposição da estrutura de classes e do regime de acumulação flexível, gerando uma grande confusão e ambivalência política. O quadro eleitoral, por força do reagrupamento das forças de direita em torno de Geraldo Alckmin, força os movimentos sociais populares, sindicatos e as forças de esquerda do antigo bloco a uma posição de defensiva estratégica.

No momento eleitoral, o cenário fica turvado pela pressão plebiscitária gerada pela lógica inerente ao espetáculo político, em que se acentuam os processos fóbicos e as paixões mórbidas por meio do espetáculo midiático. O preço pago pela precarização social e pela crise do Estado por força do impulso liberal gerou efeitos na composição de classe, acentuando clivagens, segregações e violências que permitem o retorno dos espectros da mobilização direitista das classes médias. A busca de uma avaliação lúcida dos projetos de desenvolvimento é substituída pela moralização e atemorização, que substituem o debate ético-político. O primado da ética só pode ser estabelecido nas bases racionais de uma análise das opções dos sujeitos para além do mascaramento dos atores na cena política. O objetivo estratégico num cenário desse tipo só pode ser o de desnaturalizar a opção pela via única neoliberal, a fim de desmascar a retórica da ideologia adesista ao globalismo financeirizado, numa disputa que passa por um projeto que vá muito além da atual disposição de forças.

Superar o estreitamento do quadro que combina as quase-políticas sociais de Lula e o capitalismo selvagem exige sair da camisa de força hegemônica das políticas de transferência de capital, de corte de gastos públicos e gestão empresarial do Estado, de modo a produzir a solução ilusória do ambiente atratativo para novos investimentos diretos de capital externo. Frente a uma sociedade desigual, o capital acentua os processos espoliativos e especulativos de curto prazo. Diante de um território fragmentado, a apartação social se amplia construindo seus enclaves de pseudomodernidade em meio ao arquipélago de desigualdades.

Se a tarefa mais óbvia é situar o efeito predatório da agenda Collor-FH e questionar a sua aplicação ambivalente pelas políticas de Lula, cabe uma recusa da sua agressiva radicalização sob a batuta prussiana de Alckmin. Esse esforço se torna mais complexo quando do exame das condições para construirmos novos possíveis num mundo hegemonizado pelo novo constitucionalismo imperial norte-americano, em relação ao qual já não precisamos reiterar os efeitos danosos de sua farmacologia. A barbárie que nos assola produziu um mal-estar pós-moderno que se alimenta do mecanismo de fuga para adiante, de contra-reforma permanente que marcou a nossa história de revolução passiva, de revolução pelo alto, de revolução sem revolução.

Entramos no século XXI sem a construção do modelo povo nação, sem a realização de uma trajetória de reformas de interesse democrático popular. Hoje, somos empurrados pela modernidade no meio da “nova grande transformação” do sistema capitalista em crise e reestruturação. Será que podemos barrar a onda da via única? Será que nossas elites já nos forçaram a um novo ciclo de contra-revolução permanente ou podemos unificar um novo bloco de forças capaz de reorientar as estratégias de desenvolvimento em outra direção? Para pensar essas questões, sugerimos um esforço de descrição das três principais apostas em disputa que servem de base programática para a continuidade, a retomada ou a ruptura em matéria de caminhos para a construção de um projeto nacional.

No ambiente internacional que difunde um padrão de guerra, uma lógica de disciplinação dos territórios e das populações, temos um tipo de novo imperialismo. Ele funciona numa dinâmica de supremacia que se soma a uma política de redes corporativas e fluxos financeirizados das grandes empresas transnacionais e dos blocos políticos dos países da OCDE, cuja velocidade se apóia na flexibilização perversa dos processos de virtualização com a destruição mercantil dos processos culturais e de subjetivação.

O neoliberalismo que nos atinge é apenas a combinação da forma ideológica com o conjunto de normas disciplinares apoiadas na força militar e na subserviência das elites dos países dependentes. Um projeto político que empobrece a inteligência ao retroceder ao paradigma da atualização da “mão invisível” do cálculo mercantil-capitalista, que alimenta o individualismo e acentua a destruição da possibilidade de resgate da crítica racional. O discurso pseudocompetente da lógica dos vitoriosos tem deixado um gigantesco saldo de desgraças. O totalitarismo do mercado só se compara em barbárie ao preço em vidas das conquistas coloniais e imperialistas, das grandes guerras e dos genocídios perpetrados pelas fúrias totalitárias.

Precisamos começar a ousar avançar no rompimento com a primeira via (única) neoliberal e recusar o acomodamento na opacidade ambivalente de uma terceira via (social-liberal), que não passa de uma versão adocicada da primeira. Precisamos ousar pensar e experimentar um projeto alternativo a partir de várias questões levantadas por autores como Otávio Ianni, Paul Singer, Francisco de Oliveira, Joel Birman e Mangabeira Unger. Na seqüência desse artigo pretendemos abordar o tema dos projetos e das alternativas para o Brasil.