10/12/2019 12:10
Letícia Rangel Tura¹
O Brasil vive um período crítico de ataque a nossa já frágil democracia e de crise econômica, política e social, com crescimento do desemprego, o acirramento da violência nas periferias, desmonte de direitos, desconstrução de políticas públicas estruturantes, com profundos reflexos socioambientais. Esses se explicitaram na explosão do desmatamento e queimadas na Amazônia brasileira², com reflexos em países vizinhos, como a Bolívia, resultado da ação criminosa de setores do agronegócio para abertura de novos pastos e apropriação de terras públicas. Durante os meses de agosto e setembro deste ano, a floresta Amazônia pegou fogo acima da média histórica para esse período do ano, conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Ainda que retrocessos ambientais fossem esperados após a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da república, a velocidade e a dimensão desses e a irracionalidade do desmonte de marcos legais, dos aparatos institucionais, dos órgãos ambientais de fiscalização, preservação, comando e controle e da governança ambiental do Brasil é estarrecedora.
Para entender o que esse ataque significa para a Amazônia brasileira é necessário ter em mente o processo histórico que articula o crescimento do desmatamento na região aos conflitos fundiários, às disputas territoriais (disputas entre projetos de sociedade, entre os territórios dos povos e os territórios do capital) e à forma subordinada de inserção da região na divisão internacional do trabalho, como fornecedoras de matérias-primas. Esse processo colocou sujeitos políticos em disputa e conformou um forte e diverso tecido organizativo da sociedade civil amazônica, que pressionou, nos últimos 30 anos, pela constituição de uma institucionalidade socioambiental – ainda que com altos e baixos e eivada de contradições internas –, mas que está ruindo atualmente.
O desmatamento na Amazônia é um fenômeno recente em termos históricos, ganha fôlego a partir dos anos 1970, durante o período militar, com a abertura de estradas, a construção de grandes projetos de infraestrutura, implantação de empreendimentos agropecuários e a ocupação da região com programas de migração dirigidos e ondas de migração espontânea, em detrimento da população indígena, povos e comunidades tradicionais que habitavam a região. A maior parte da abertura de áreas na floresta se deu ao longo das rodovias para atividades agrícolas, fundamentalmente a atividade pecuária, e a especulação imobiliária.
Em meados dos anos 1990 e início dos anos 2000, como se observa na tabela abaixo, vivencia-se picos na curva do desmatamento na Amazônia, no chamado Arco do desmatamento, região que concentra os maiores índices de desmatamento nas margens leste e sudoeste da Amazônia Legal.
Em 2004, em resposta a esse crescimento de 40% do desmatamento entre 2001/2002, que apontava para uma tendência de aceleração do desmatamento região, se construiu o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM). Este plano buscou fortalecer a capacidade do Estado para o combate ao desmatamento, através do planejamento de ações coordenadas em três eixos: promoção da produção sustentável; ordenamento fundiário e territorial; e comando e controle. Nas primeiras três fases desse plano (2005-2015), a expansão da rede de áreas protegidas e esse último eixo foi o que apresentou os maiores impactos. Foram criados novos órgãos ambientais, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e antigos órgãos públicos de pesquisa, monitoramento, prevenção, fiscalização e combate aos ilícitos ambientais foram reestruturados, como Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis/IBAMA e o INPE, com a destinação de recursos, abertura de concursos públicos, o aperfeiçoamento dos sistemas de monitoramento e vigilância, como o Sistema de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal (PRODES), e a criação de novo sistema de alerta, o Sistema Detecção de Desmatamento em Tempo Real (DETER).
Ao longo dos anos 2000, os principais vetores do desmatamento continuaram sendo a pecuária, a atividade madeireira e a grilagem de terra. Além disso, ganhou grande importância a expansão do monocultivo de soja, com a entrada do Brasil no mercado global como principal fornecedor de commodities (soja e carne). Os grandes projetos de infraestrutura para o escoamento da soja, a mineração e a produção de energia para indústria eletrointensiva também entram neste cômputo. Segundo o documento da 4ª. fase do PPCDAm (2016/2020), ao longo da primeira década dos anos 2000 se observa que o desmatamento, apesar de continuar concentrado no Arco do Desmatamento, se expande para além do entorno das rodovias, chegando as áreas mais remotas da Amazônia. A abertura de novas estradas e o avanço tecnológico permitiu que o desmatamento chegasse a áreas que não era possível chegar em outros períodos, ameaçando Unidades de Conservação e Terras Indígenas.
Apesar destes esforços e da significativa redução de 83% do desmatamento entre 2004 e 2012, a partir de 2013 as taxas de desmatamento voltaram a apresentar uma tendência de crescimento. No entanto, na contramão da necessidade de responder a este problema e de cumprir acordos firmados internacionalmente pelo país³, desde o início de 2019, vivenciamos uma acelerada destruição da institucionalidade socioambiental brasileira, que leva ao fortalecimento do crime organizado na região Amazônica.
A profunda reforma ministerial, conduzida nos primeiros dias do governo Bolsonaro, esvaziou o Ministério do Meio Ambiente (MMA), com cortes drásticos no seu orçamento, inclusive aquele previsto para a prevenção e controle de incêndios florestais, suspensão de convênios e extinção ou enfraquecimento de secretarias que respondiam por políticas e programas de mudanças climáticas, combate ao desmatamento e queimadas (inclusive o PPCDAm), povos indígenas e comunidades tradicionais. O Serviço Florestal Brasileiro (SFB), responsável pela gestão das florestas públicas e pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi transferido para o Ministério da Agricultura. A redução e desmonte das equipes e estrutura dos escritórios regionais do ICMBio e do IBAMA, com o desmantelamento da estrutura de fiscalização e controle destes órgãos, traduziu-se na redução de 22% de suas operações de fiscalização e, consequentemente, no ritmo de multas aplicadas, com uma queda de 29,4%, conforme dados veiculados pela imprensa. A revisão de contratos e redução de verbas para o INPE. Em abril, a presidência sancionou o decreto 9759/2019 que extinguiu ou limitou o funcionamento dos espaços de participação social (conselhos, comitês, comissões, grupos e fóruns) no âmbito da administração federal, inclusive os espaços de governança ambiental, entre eles o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e a Comissão Nacional de REDD+/CONAREDD+. Paralelamente a isto, apesar das afirmativas sobre a crise fiscal do estado e carência de recursos governamentais para execução de políticas públicas, o ministro do meio ambiente criou constrangimentos que levou a paralisação do Fundo Amazônia e o bloqueio no repasses de recursos pelos seus principais financiadores, a Noruega e a Alemanha, ainda que grande parte destes recursos sejam destinados para órgãos governamentais, inclusive para o corpo de bombeiros.
Está sendo jogado no lixo quase 30 anos de investimento do país, a partir de recursos públicos nacionais e internacionais, em pesquisa, em capacitação de gestores públicos e lideranças locais, construção de marcos legais, constituição de sistemas de monitoramento, fiscalização e alertas e estruturas de governança.
O ataque do Executivo encontra reforço no âmbito Legislativo, com a tramitação no Congresso Nacional de projetos de lei que visam flexibilizar o licenciamento ambiental, reduzir ou recategorizar unidades de conservação e terras indígenas, revisar o Código Florestal, jogar no mercado terras da União e liberar a mineração em terras indígenas.
Todas estas medidas trazem graves consequências para o país e se traduzem numa autorização do seu mais alto comando ao desmatamento. A destruição e desestruturação da institucionalidade ambiental e a paralisação de políticas públicas foi acompanhada pelo crescimento do desmatamento e queimadas na Amazônia, que culminou no “Dia do Fogo”, em agosto deste ano, no município de novo Progresso, localizado na BR-163, no estado do Pará. Conforme dados do INPE, o número de alerta de desmatamento, de janeiro a agosto deste ano, cresceu 75%, sendo que o número de alertas de julho foi 278% maior que o verificado no mesmo mês de 2018, e em agosto era 321% maior, tornando a floresta raleada e suscetível às queimadas ilegais. A fragmentação florestal aumenta o risco de incêndios florestais, ou seja, a degradação da floresta favorece o incêndio florestal causado pela ação humana. Assim, os dados do INPE mostraram que até agosto deste ano o número de focos de incêndio no Brasil cresceu 111%, quando estava apenas iniciando o período de seca. Com efeito, os dados do PRODES, recentemente divulgados por este mesmo instituto, apresentam a estimativa que de agosto de 2018 a julho de 2019 a alta do desmatamento foi de 29,5%, maior área desmatada desde 2008, sendo o estado do Pará respondendo por 40% desse aumento.
Quando povos indígenas, comunidades tradicionais e camponeses começam a ser ameaçadas, também a floresta começa a ser, pois essas populações são a primeira barreira de contenção para o desmatamento, não é à toa o ataque do governo Bolsonaro aos direitos territoriais e aos modos de vida dessas populações. É importante destacar que além da destruição e desestruturação, observa-se também a militarização dos órgãos ambientais e a militarização dessas áreas da Amazônia. Durante décadas, fartos dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Comissão Indigenista Missionária (CIMI) mostraram que junto com o aumento do desmatamento chega também o aumento da violência no campo. O mesmo fenômeno observamos agora. Dados atuais da CPT mostram que desde 2015 a extensão de terra em conflito no Brasil vem aumentando. Em 2018, o número de pessoas envolvidas em conflitos no campo no Brasil (960.000 pessoas) cresceu 35,6%, sendo metade destas só na Amazônia, onde se registrou 92% das terras em conflitos.
Por fim, é crucial entender que o combate ao desmatamento se faz com a garantia da permanência com qualidade de vida das populações que vivem na floresta e que vivem da floresta, através de ações voltadas para soberania e segurança alimentar, a agroecologia, o manejo comunitário da biodiversidade, da floresta e a construção social de circuitos curtos de comercialização. Só assim teremos políticas sérias que possam fazer frente a grande crise que assola a Amazônia, seus povos e sua biodiversidade.
[1] Artigo de Letícia Rangel Tura, diretora executiva da FASE, para o “Dossiê: Flexibilização da legislação socioambiental brasileira”, 2ª edição.
[2] Para fins dessa análise, quando falarmos em Amazônia, não estaremos nos referindo ao bioma, mas a Amazônia Legal, que compreende os estados do Tocantins, Maranhão, Pará, Amapá, Amazonas, Roraima, Acre, Rondônia e Mato Grosso.
[3] O Brasil se comprometeu frente ao Acordo de Paris, no âmbito a Convenção-Quadro das Nações Unida para as Mudanças Climáticas, através de suas Contribuições Nacionalmente Determinadas, a reduzir 37% das suas emissões de gases de efeito estufa até 2025, e 43% até 2030, alcançando desmatamento ilegal zero neste período.