Fran Paula*
16/05/2023 14:51
Esse texto foi publicado originalmente no site ancestralidades.com
Em meio ao intenso fluxo de trabalhadores dos grandes centros, se tornou comum a presença de barracas e estabelecimentos de vendas de alimentos, sejam eles processados ou in natura.
“Na sacola de plástico já umedecida pelo calor das 11:00hs, tomates e pepinos parecem já refogados, e prontos para compor umas das refeições do dia.”
Cenas cotidianas que nos levam a pensar sobre o papel do alimento na vida desses trabalhadores.
Alimentação é uma condição essencial à vida, porém não está garantida a todos. No Brasil, a população negra se encontra em maior exposição à fome, fruto das desigualdades sociais e do racismo estrutural, que segue privando há 488 anos estes grupos do acesso a direitos básicos, como educação, trabalho digno e renda, moradia, terra e alimentação.
O racismo, o aumento das desigualdades sociais e consequente pobreza no Brasil, certamente têm dado outro significado ao ato de comer. Dados alertam para o não acesso a alimentação por 125,2 milhões de brasileiros, que em 2022 passaram por algum grau de insegurança alimentar, estejam eles vivendo no campo ou na cidade. E desproporcionalmente maior entre mulheres e pessoas negras (REDE PENSSAN 2022).
Insegurança alimentar diz respeito ao não acesso pleno e permanente de alimentos em quantidade e qualidade, sendo a fome a sua forma mais grave. O artigo A imposição da fome é racismo alimentar (CASTRO, 2022a), retrata o distanciamento da população negra do acesso a terra e também do consumo de alimentos saudáveis (Racismo Fundiário e Alimentar), onde a fome recai sobre esta população de forma impositiva, uma forma eugenista de controle social. Um dos grandes pensadores sobre a fome no Brasil, Josué de Castro, em 1980 descreveu a fome não meramente como uma causalidade natural ou geográfica, mas como resultado da omissão humana, resultado de processos políticos, econômicos e históricos. Já que as condições científicas e tecnológicas para erradicá-la já estavam disponíveis (CASTRO, 1980).
O Estado brasileiro tem responsabilidade na manutenção da fome no país. Principalmente se considerarmos medidas institucionais adotadas no passado, como a permanência de ações e políticas públicas voltadas à erradicação da fome, de incentivo à produção e consumo de alimentos saudáveis, que ignoram as desigualdades sociais e a cor dos que têm fome. O mesmo ocorre com as ações de incentivo a mudanças de hábitos alimentares que transferem exclusivamente para o indivíduo a responsabilidade sobre uma alimentação saudável. Uma lógica nada realista para mais da metade da população brasileira que não possui “decisão e/ou poder de escolha sobre o que comer”.
Ao analisarmos o acesso a alimentação saudável no Brasil, nos deparamos com uma segregação alimentar. Quanto mais saudável o alimento, mais distante ele está dos locais ocupados pela população preta. Na prática, não bastou segregar os corpos negros nas favelas e periferias, mas também distancia-los de tudo que os mantém vivos. Desde a colonização até os dias atuais ocorre essa destruição nutricional da raça negra através da alimentação, descrita pelo médico Llaila O. Afrika como Nutricídio. É quando a causa da morte está relacionada à alimentação, seja pelo não acesso ao alimento ou pelo consumo de alimentos de baixa qualidade que por sua vez provocam doenças crônicas e levam a adoecimento e morte (CASTRO,2022b).
Esta segregação alimentar no país, poderia ser descrita como um Apartheid à moda brasileira, mascarado por uma falsa democracia racial. Apartheid, que em africâner significa “segregação”, regime de separação racial ocorrido na África do Sul (1948 a 1994), promovido pelo partido nacional de extrema direita, regime que privilegiava os brancos e excluía a população negra do acesso a espaços, bens e serviços fundamentais à sobrevivência. O conceito de Apartheid Alimentar (food apartheid), é usado para destacar as estruturas políticas racialmente discriminatórias que impactam o acesso e o controle dos alimentos. Por outro lado, comunica que a distribuição geográfica de crescentes barreiras ao acesso alimentar pode ser explicada pelo legado contínuo de estruturas econômicas e políticas racialmente discriminatórias.
Estudos apontaram que as maiores taxas de insegurança alimentar nos Estados Unidos estavam localizadas principalmente nos bairros e comunidades afro-americanas e latinas, afetadas de forma desproporcional pela fome (BRONES, 2018). No Brasil, pesquisadores da UNICAMP alertam que a falta de disponibilidade de alimentos in natura e minimamente processados e maior exposição a alimentos ultraprocessados afeta indivíduos de todas as cores e raças, porém pretos e pardos são afetados de forma desproporcional. Segundo Grilo et.al (2022), onde pretos e pardos têm renda média mais baixa do que os brancos, os supermercados e os estabelecimentos que comercializam uma maior quantidade de alimentos in natura e minimamente processados se encontram em maior frequência nas regiões mais ricas. O mesmo ocorre com bairros periféricos e racializados, expostos em maior proporção ao consumo de alimentos contaminados por agrotóxicos e transgênicos. Muitos destes agrotóxicos são banidos em diversos países pois apresentam riscos à saúde e estão associados a doenças crônicas como o câncer. Esses grupos sociais estão sujeitos à perda do gosto dos alimentos, que cada vez mais apresentam altas dosagens de aditivos e produtos químicos com alto risco para a saúde.
O Apartheid Alimentar foi potencializado durante a crise sanitária da Covid. Se por um lado ocorria um aumento no consumo de alimentos ultraprocessados por famílias em situação de pobreza no Brasil (uma medida adotada para prolongar a duração dos alimentos nas despensas, um ajuste financeiro para driblar a fome), por outro lado, no mesmo período, o mercado de orgânicos apresentou crescimento de 30%, e o poder de compra destes alimentos ficou concentrados em famílias da classe média e alta com renda permanente (SILVA, 2020; ORGANICS, 2020). Em 2011 outro cenário que chocou o país foram as filas quilométricas para recebimento de ossos em açougues do estado de Mato Grosso, contraditoriamente o estado maior produtor de gado do país. Cabe questionarmos que modelo agroalimentar é esse que não alimenta o povo?
É preciso ainda considerar o desmonte do Estado promovido pelos governos de direita e extrema direita no Brasil (2016 a 2022), com a interrupção de políticas públicas que contribuíam com a redução das desigualdades sociais e erradicação da fome, situação que potencializou o Apartheid Alimentar no Brasil. A única coisa que foi alimentada nesse período foram as violações de direitos, já que o não acesso a alimentos em quantidade e qualidade ampliou as desigualdades sociais, e a sua permanência tem levado ao extermínio de grupos sociais historicamente vulnerabilizados.
Racismo Fundiário e a Produção de Alimentos
Ainda que o último Censo agropecuário (IBGE, 2020), demonstre que a população no campo majoritariamente se autodeclara preta e/ou parda, estas pessoas ocupam as menores áreas agricultáveis, e muitas sem a posse definitiva de suas terras. Esses dados caracterizam o que denominamos de racismo fundiário no Brasil: quanto maior o território, maior o número de brancos proprietários. O conceito do Racismo Fundiário pautado por Gomes Dias (2019), descreve que a elevadíssima concentração de terras no Brasil tem cor, desde 1500.
Partindo dos dados acima, precisamos ainda considerar que a insegurança alimentar está presente em mais de 60% dos domicílios das áreas rurais (REDE PENSSAN, 2022). Nas comunidades negras rurais e quilombolas, o Apartheid Alimentar se manifesta nas condições não favoráveis a produção de alimentos, que está estritamente ligada ao acesso a outros diretos básicos como terra, território e água.
Em muitos casos os territórios quilombolas estão cercados pelo agronegócio, extensas áreas de monocultivos e intensa utilização de agrotóxicos e desmatamento, ou próximas a grandes projetos de mineração, o que tem impossibilitado a manutenção dos modos de vida e produção de alimentos saudáveis. No caso dos agrotóxicos, além de contaminar rios e fontes de águas, estes têm sido usados de forma criminosa como uma arma química sobre comunidades quilombolas e indígenas para expulsão dessas famílias de seus territórios.
Essas violações impactam diretamente os modos de produção de alimentos, que estão associados à cultura e à ancestralidade destes povos, e se manifestam nas práticas de produção e consumo dos alimentos. Povos que historicamente produziram seus alimentos de forma natural ou agroecológica, onde o consumo de alimentos saudáveis é uma prática comum.
Se por um lado os grandes latifúndios e fazendas destinam a sua produção agrícola ao mercado internacional de commodities, a agricultura familiar camponesa, dos povos e comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, mesmo com todos estes desafios, têm responsabilidade significativa na produção e abastecimento alimentar do país. Portanto, a defesa de sistemas alimentares saudáveis deve considerar a diversidade dos territórios da agricultura familiar e dos seus povos, e que povos indígenas e quilombolas estão submetidos a processos de violações de direitos como o não acesso à terra, proteção das florestas e seus modos de vida.
Do não acesso à terra à fome, o racismo perpetua desigualdades sociais e distancia a população negra da produção e do consumo de alimentos saudáveis no Brasil. Assim, a noção de Apartheid Alimentar envolve não apenas as estruturas que são criadas para racializar de forma discriminatória o consumo dos alimentos, mas também a sua produção. Sendo urgente uma política de reforma agrária comprometida com a redução das desigualdades sociais e racismo no Brasil.
Comer bem não deveria ser um privilégio!
Considerando a importância de usarmos o conceito de privilégio alimentar, já que há no Brasil uma naturalização da fome e do racismo, é importante então invertemos a narrativa e refletirmos sobre quem tem direito a comer nesse país. A quem é garantido o acesso a alimentação saudável?
“30 de maio de 1958 … Troquei a Vera e saímos. Ia pensando: será que Deus vai ter pena de mim? Será que eu arranjo dinheiro hoje? Será que Deus sabe que existe as favelas e que os favelados passam fome? O José Carlos chegou com uma sacola de biscoitos que catou no lixo, quando eu vejo eles comendo as coisas do lixo penso: E se tiver veneno? É que as crianças não suportam a fome. Os biscoitos estavam gostosos. Eu comi pensando naquele provérbio: quem entra na dança deve dançar. E como também tenho fome, devo comer (Carolina Maria de Jesus, 1960).”
Ao ler este trecho do livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada, da Carolina de Jesus, observamos quanto seus escritos se tornaram uma obra atemporal, e que poderia descrever facilmente a realidade de uma família periférica e preta no Brasil atual. E tal como os alimentos revirados no lixo diariamente por milhares de pessoas, qual seria o prazo de validade do racismo no Brasil, que tanto priva a população negra do Direito Humano à alimentação?
O Direito Humano à Alimentação está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos desde 1948, mas somente em 2010 passou a ser incluído como um direito social na Constituição Brasileira, através da Emenda Constitucional nº 64, artigo 6º. Diz ele:
“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 2010, grifos nossos).
Todavia, para o povo preto que há muito tempo vem sendo desumanizado nesse país, isso não significa a realização desse direito na prática.
Considerações Finais
As desigualdades sociais e o racismo determinam quem tem acesso à alimentação e sobretudo à alimentação saudável no Brasil.
O racismo é um dos principais determinantes da insegurança alimentar e nutricional da população brasileira. É um erro criar políticas públicas para erradicar a fome que não considerem isso.
É fundamental que os sistemas alimentares estejam orientados na promoção da saúde da população e não em nichos de mercados.
Uma nova geografia alimentar dependerá não somente de arranjos descentralizados de produção de alimentos agroecológicos, mas também da democratização do acesso à alimentação saudável.
Em uma sociedade que não conhece justiça social e não reconhece o racismo estrutural, é importante dar nome certo às coisas. O racismo foi institucionalizado pelo Estado Brasileiro, e portanto este tem o dever de reparar historicamente tais violações junto à população negra.
É urgente iniciativas que promovam mudanças estruturais, e estabeleçam processos democráticos, com a participação plena dos movimentos populares e sociais que representam o povo preto, e que possuem um acúmulo de propostas para construção de novos caminhos para uma alimentação saudável no Brasil.
Referências Bibliográficas
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BRONES, A. Food apartheid: the root of the problem with America’s groceries [Internet]. 2018. Disponível em https://www.theguardian.com/society/2018/may/15/food-apartheid-food-deserts-racism-inequality-america-karen-washington-interview»
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*Quilombola e educadora popular da FASE no Mato Grosso; Doutoranda no Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agriculturas e Sociedades – CPDA/UFRRJ e Vice Presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia no Centro Oeste