04/06/2014 12:56

Evanildo Barbosa da Silva* (Diretor da Fase)

Os impactos da Copa do Mundo chegaram a Pernambuco assim como a outros estados com cidades-sede, deixando um legado de violações. Para o Comitê Popular da Copa pernambucano, um dos principais problemas foi a desapropriação compulsória de famílias de seus locais de moradia, apesar da indenização juridicamente praticada. Aproximadamente mais de 2 mil famílias foram afetadas em sete municípios da Região Metropolitana do Recife em decorrência de um conjunto de intervenções urbanas relacionado ao megavento esportivo. Calcula-se que já foram executados mais de R$ 2 bilhões de investimentos públicos em obras na capital pernambucana e nos municípios de Camaragibe, São Lourenço, Olinda, Jaboatão dos Guararapes, Paulista e Igarassu.

Uma parte importante desse montante foi destinada à construção da Arena Pernambuco, em São Lourenço da Mata. De acordo com dados oficiais, o estádio custou cerca de R$650 milhões e pelo menos metade desse valor tem origem em empréstimos pelo governo estadual ao BNDES e à Caixa Econômica Federal. E há outra questão por trás dessa iniciativa: a gestão da Arena é feita por meio de Parceria Público-Privado (PPP) e o contrato sempre poderá ser revisado pela concessionária do negócio, a Odebrecht/IFL Empreendimento e Tecnologia.

A querela fica ainda mais intrigante quando questionamos os números governamentais. O Comitê Popular da Copa de Pernambuco afirma que é preciso olhar com ressalvas para esses dados, já que o governo do estado não tem oferecido precisão nas informações. Essa realidade nos faz pensar que a situação pode ser ainda pior. Por exemplo, enquanto se noticia que 2 mil famílias foram impactadas, o governo de Pernambuco alega que ocorreram 457 desapropriações relacionadas à Copa. Alguém está enganando e alguém está sendo enganado, certo?

Quem passa pelas grandes avenidas do Recife sabe que a cidade está um canteiro de obras. A justificativa para execução dos recursos é o Programa de Mobilidade Urbana, voltado para a Região Metropolitana da capital. É estimado R$1,5 bilhão. A implantação de corredores, estações de ônibus e metrô, dentre outros, é a responsável direta por desapropriações em áreas populares do Recife. São exemplos as comunidades Cosme e Damião, Coque e o Loteamento São Francisco, em Camaragibe. Só nesse Loteamento foram desapropriados cerca de 120 lotes que abrigavam pelo menos 200 famílias.

Nesse quadro, o mais grave é a naturalização dos fatos. Famílias até podem ser destituídas de seu lugar de moradia para fins públicos, mas, o mesmo Estado que desaloja teria a prerrogativa constitucional de amparar, pois, sem medo de errar, essas famílias destituídas de seus direitos básicos, já experimentados quando tiveram suas casas, agora são, potencialmente, famílias sem-teto. Esse quadro revela uma face perversa do Estado e da legislação que protege seus atos: a Lei de Desapropriação. Essa está, na prática, apartada da lei que garante ao cidadão o direito à moradia. Em Pernambuco, o governo foi ágil para desapropriar, mas permanece de costas para qualquer tentativa de respeito aos direitos dos atingidos. Continua sendo negado o debate sobre a urgência de um plano habitacional que pudesse configurar, no mínimo, um deslocamento organizado dos que negociaram a desapropriação de seus imóveis ou benfeitorias.

A Copa do Mundo está aí e perguntas como “Copa para quem e para quê?” sempre voltarão ao nosso cardápio. As respostas necessariamente apontarão para um debate mais profundo sobre a qualidade e o tamanho da democracia nas cidades. O que nos aflige e ao mesmo tempo nos mobiliza tem a ver com participação popular nas decisões sobre aquilo que é de interesse público. E não é sem razão que essa é uma agenda de destaque, já que a questão urbana brasileira está marcada por uma profunda conexão com a violência pelo domínio da terra urbana pelo e para o grande capital imobiliário. Essa violência impetrada pelos interesses privados só tem sido vitoriosa devido o caráter autoritário da atuação do Estado na determinação do regime de alocação dos recursos públicos e isenções fiscais, dentre outros ativos, nos territórios urbanos.

Enfim, os modelos de cidades que se constituem nessa experiência histórica recente dos megaeventos esportivos estão a revelar não só formas de violações de direitos básicos, mas, principalmente, o quanto o modelo de desenvolvimento urbano é funcional ao próprio modelo de desenvolvimento brasileiro. Por isso, se faz necessário pensar a resistência e as alternativas a esses modelos de maneira articulada. Ou seja, repensar as cidades e a vida nelas nos obrigará a rever as opções e as escolhas do próprio modelo de desenvolvimento do nosso país.

* Historiador e doutor em desenvolvimento urbano/UFPE.