Aercio Barbosa de Oliveira
06/05/2024 17:22
Infelizmente o intervalo de tempo entre as tragédias climáticas está cada vez menor. O que acontece no estado do Rio Grande do Sul (RS) confirma a expressão, como lugar-comum, do
noticiário. Em setembro do ano passado ocorreu uma tragédia e agora uma outra, com efeitos que tocam o nosso sentido de humanidade. Nesta que começou no final de abril e avança no
mês de maio de 2024, dos 497 municípios do estado 337 são afetados por chuvas torrenciais, enchentes e alagamentos. No momento em que finalizo este texto, a defesa civil informava
que 83 pessoas morreram, 111 estão desaparecidas e das 844.673 pessoas afetadas no estado, 121.957 estão desalojadas e 19.368 sem abrigos. No meio do caos, o governador do RS diz que
neste momento, de tanto trauma e desespero, não devemos analisar os fatos pela lente da política. O governador Eduardo Leite propalou pela imprensa de que o estado precisa de algo
equivalente ao Plano Marshall – plano de reconstrução da Europa após o fim da 2°Guerra Mundial.
Em entrevista coletiva, no domingo 4, o governador do RS falou que desde as tragédias do final do ano passado o governo gaúcho não mediu esforços para implementar medidas de adaptação e mitigação. Na mesma coletiva, com a presença do presidente Lula, do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, do representante do STF, o governador do estado expôs as dificuldades que teve para acessar os recursos federais destinados a atender as demandas da tragédia de setembro de 2023, e ressaltou o estrangulamento fiscal do estado. Com todas essas justificativas, não é possível desconsiderar o modus operandi, sem exceção, da maioria dos governos brasileiros. O que muda é o quanto se aloca ou não para políticas sociais e a intensidade e velocidade das privatizações das empresas de serviços públicos.
Não há como analisar essas tragédias sem considerar a desconstrução da máquina estatal e o aprofundamento da austeridade fiscal. Quando se diz austeridade fiscal, significa transferir recursos públicos oriundos basicamente de tributos, para uma minoria de famílias de brasileiros, para grandes corporações que aplicam dinheiro em fundos de investimentos, que compram títulos públicos etc. Com isso, a capacidade de investimento dos entes da federação fica comprometida. Parte substantiva do que se arrecada serve à dívida mobiliária. Basta ver o quanto do orçamento federal está comprometido com o serviço e amortização da dívida – 50% em média. O mais grave é que esse grau de comprometimento, que se reflete na vida cotidiana das pessoas, passa a ser visto com normalidade. A resposta dos governos é de que não há alternativa, a dívida precisa ser paga.
Quando se diz desconstrução da máquina estatal significa falta de funcionários públicos com capacidade técnica nas prefeituras e nos estados; significa transferir para o setor privado serviços essenciais que estavam com o poder público; significa não investir na manutenção de bombas de drenagem (como foi o caso das enchentes de janeiro, em Belford-Roxo), não investir na manutenção do sistema de comportas do Rio Guaíba (como é o caso do agravamento das enchentes nas áreas centrais de Porto Alegre); significa sucatear a Defesa Civil, ao ponto do governo do RS não ter número de profissionais adequado para um estado extremamente vulnerável aos eventos climáticos extremos, faltar botes e outros equipamentos para socorro. Seguindo a marcha da insensatez, em nome do “desenvolvimento”, da “inovação”, do possível aumento da arrecadação de impostos, alteram a legislação ambiental (no RS, o atual governo alterou o código florestal para atender o agronegócio); os governos autorizam loteamentos para moradias e construções, empreendimentos fabris e em áreas que não poderiam ser ocupadas, que são partes vitais para o funcionamento das estruturas hidrológicas naturais, tão importante para mitigar danos à vida.
A natureza é implacável, não adianta dizer que para eventos dessa magnitude há pouco o que fazer. Mesmo quem só esboça essa ideia está entre os hipócritas e negacionistas climáticos. Temos à mão uma massa considerável de informações que apontam para a recorrência dos eventos climáticos extremos, da alteração dos padrões de chuva, de calor etc. Não dá para colocar na conta do El Niño, que está prestes a concluir este ciclo, e já podemos imaginar os efeitos dos próximos. Precisamos de vigorosas medidas de adaptação e mitigação às mudanças climáticas. Precisamos de planos, com a participação de todos os segmentos da população, sobretudo dos mais afetados; precisamos de um plano para o durante e o após eventos climáticos extremos, de ajuda às vítimas, de redução das perdas e danos. Tudo isso precisa de inteligência coletiva, conjunção de diferentes saberes, investimento público em diferentes políticas, uma perspectiva holística para enfrentar essas ocorrências. Não será desconstruindo o estado, deificando o mercado, dando tudo às corporações, com austeridade fiscal que as tragédias socioambientais, nada naturais, serão evitadas.
A história recente de tragédias evidencia a disfuncionalidade do sistema capitalista. Austeridade fiscal, privatizações, todo poder ao mercado e às corporações com suas falsas
soluções, economia verde, racismo e injustiça ambiental, etnocídio de povos que mais cuidam do ecossistema, epistemicídio, etc. e etc., são incompatíveis ao enfrentamento às mudanças
climáticas.
*Coordenador da FASE Rio e integrante do Núcleo de Políticas Alternativas da FASE Nacional