13/12/2018 12:50
Diana Aguiar¹
Um ano sombrio está prestes a se encerrar, projetando perspectivas desanimadoras sobre as lutas por justiça social em nosso país. Ainda que diante desse contexto, vivemos recentemente um momento potente de solidariedade internacional, o que nos fortaleceu imensamente. Entre os dias 20 e 22 de novembro de 2018, ocorreu em Tóquio, no Japão, a IV Conferência Triangular dos Povos Moçambique-Brasil-Japão. Foi um momento muito importante de articulação da resistência nos três países, quando tivemos a oportunidade de encontrar oficialmente a JICA (agência de cooperação japonesa) e o Ministério de Relações Exteriores do Japão (MoFA) para denunciar o papel histórico do Japão na ocupação predatória dos Cerrados e Savanas por meio de programas de cooperação como o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer) e o ProSavana e, mais recentemente, a associação daquele país ao Matopiba.
Encontramos também o JBIC (banco japonês de desenvolvimento) e pudemos expor as violações cometidas ao longo do Corredor de Nacala em Moçambique, projeto joint-venture da mineradora brasileira Vale com a empresa japonesa Mitsui, financiado pelo JBIC. Denunciamos também, a partir da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale , da qual a FASE é membro, o histórico de irregularidades da Ferrovia Carajás.
Estivemos presentes representantes do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), da FASE e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) , juntamente com diversos movimentos do campo e organizações sociais moçambicanas e japonesas. Durante os dias que estivemos no Japão, participamos de outras atividades, como intercâmbios com camponeses (as) japoneses (as), quando pudemos aprender que há um movimento de resistência à histórica descampenização naquele país. Inspirados pela mensagem cunhada no processo de libertação nacional moçambicana, afirmamos coletivamente que “a luta continua” em defesa da agricultura familiar e camponesa.
A declaração final² da Conferência expressa as mensagens comuns dos povos dos três países. Algumas dessas canalizam as análises coletivas da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, a partir de uma perspectiva de valorização dessa imensa e diversa região ecológica e de seus povos.
Crítica ao papel da JICA
É extremamente preocupante que quase 40 anos após o início do Prodecer, a JICA siga divulgando uma narrativa celebratória a respeito do programa. Os anos de implementação deste programa foram marcados pela modernização conservadora e autoritária do campo brasileiro, tendo o Cerrado como espaço principal de sua realização. A ocupação dirigida pela ditadura civil-militar – e mediada por programas como o Prodecer – foi marcada pela concentração fundiária. Isso provocou “processos de extermínio, expulsão e subordinação de diversos povos indígenas e sertanejos que ali viviam e cujos saberes constituíram ao longo dos séculos a agrobiodiversidade dos Cerrados”³.
As consequências desse modelo de ocupação predatória, algumas décadas depois, são desastrosas. “Extensos monocultivos – sobretudo de soja transgênica – provocam a erosão da biodiversidade e a exaustão hídrica e dos solos, contaminando as águas com agrotóxicos – alguns dos quais, inclusive, proibidos no Japão”. O desmatamento da vegetação original chega a representar mais de 50% desta, deixando a região ecológica do Cerrado sob séria ameaça e, por consequência, também seu complexo sistema de recarga hídrica, fundamental para alimentar algumas das mais importantes bacias hidrográficas e aquíferos da América do Sul.
O Cerrado, nosso berço das águas, está sendo exterminado pela ocupação predatória do agronegócio da soja, promovida historicamente por programas como o Prodecer. Povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores (as) familiares e camponeses (as) do Cerrado têm visto, em muitos casos, seus territórios – seus espaços de vida, de coleta de frutos, de cultivo de alimentos diversos – serem cercados e contaminados por monocultivos dirigidos aos mercados internacionais, tendo sua soberania alimentar profundamente ameaçada.
Em relatórios recentes, a JICA se associa a funcionários da época da ditadura civil-militar brasileira na celebração dessa ocupação. É especialmente chocante a denominação que fazem do Cerrado como infértil.Trata-se de uma visão estreita e colonizadora, que considera infértil qualquer solo que não tenha os nutrientes precisos para a produção de commodities para a exportação. Medir a qualidade de um solo ou região por parâmetros exógenos a estes e ignorar a riqueza intrínseca da savana mais biodiversa do planeta é traço persistente da visão colonial da JICA sobre os Cerrados.
Ao contrário do que divulga a JICA, é a monocultura da soja que restringe a riqueza do Cerrado, já que essa região ecológica detém cerca de 5% da biodiversidade do planeta. Além disso, esta é uma região de diversos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais que resistem há décadas a esse modelo predatório e cujos modos de vida e produção são resilientes e sustentáveis, tendo sido testados ao longo de séculos de convivência com as especificidades dos Cerrados.
Não ao MATOBIBA e ao ProSavana
“A mais recente fronteira do Cerrado brasileiro, o MATOPIBA [projeto do agronegócio que engloba áreas do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia], enfrenta atualmente graves conflitos em decorrência da persistência dessa visão. E uma vez mais a JICA e o governo japonês preferem ignorar as críticas públicas e os desastres socioambientais decorrentes de décadas de ocupação predatória, associando-se ao programa”. Não é mais o Japão o destino prioritário da soja brasileira, tal como contido na visão do Prodecer. Os Cerrados seguem sendo desmatados, os solos e águas contaminadas, suas populações mortas, expulsas ou cercadas para saciar o apetite chinês por soja para ração animal.
Investidores japoneses desembarcam no MATOPIBA para mais uma vez se aproveitarem de uma oportunidade de negócios, turbinando processos de captura de terra que servem como plataforma para a intensificação da ocupação predatória. A celebração contínua desse modelo perverso tem rebatimento em outras savanas do mundo, como é o caso da tentativa de replicar este modelo em Moçambique por meio do ProSavana. Por tudo isso, organizações do Brasil, Moçambique e Japão presentes na Conferência Triangular dizem basta para a celebração de uma visão colonial sobre os Cerrados e Savanas. Dizemos não ao ProSavana e ao MATOPIBA.
[1] Diana Aguiar integra o Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE.
[2] Baixe aqui a Declaração de Tóquio
[3] As citações entre aspas são trechos da Declaração de Tóquio.