31/03/2020 13:00

Equipe FASE Rio de Janeiro¹

Em menos de duas semanas, a população das favelas e periferias do Rio de Janeiro viu o governador Wilson Witzel (PSC) projetar-se na cena política nacional com algum grau de sensatez em relação à pandemia da Covid-19 se comparado com o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que, ao contrário do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), esteve presente em ato público, cumprimentou pessoas sem nenhum tipo de equipamento de proteção e disse que “não passa de uma gripezinha”.

Manguinhos. Foto: Rosilene Miliotti/FASE

É inegável a importância das medidas tomadas pelo governador ao colocar-se na dianteira e comunicar a população sobre os riscos à saúde decorrentes da Covid-19 e, posteriormente, tomar medidas jurídicas de limitação de circulação entre o interior do Estado e a região metropolitana. No entanto, quando olhamos as alterações feitas no orçamento público estadual, fica evidente, mais uma vez, o seu desprezo à população mais vulnerável, principalmente num momento de emergência sanitária, que é quem mais precisará de políticas sociais e de distribuição de renda.

Witzel contingenciou² recursos de várias áreas em meio à pandemia. Merece destaque o contingenciamento de R$7,6 bilhões feito no orçamento sob a justificativa da queda do preço do barril do petróleo e da necessidade de reorientar o orçamento para enfrentar a Covid-19. O Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social, por exemplo, também perdeu 29% do orçamento, que inclusive poderia ser utilizado para melhorias habitacionais nas favelas. O que chama atenção é que, exceto a área da saúde, a única que não foi contingenciada foi a área da Segurança Pública (Polícias Civil e Militar, Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e o Programa Polícia Presente). Essa escolha de onde se tira e de onde se deixa orçamento é mais um exemplo da política genocida deste governo.

Para a população de favela e periferia tais medidas já têm consequências diretas. Sendo uma população majoritariamente formada por pessoas negras, cujos vínculos formais de trabalho são raros e que a sobrevivência é garantida por meio da inserção em empregos do setor de serviços, precarizados, intermitentes e informais; as medidas de contenção da epidemia geraram um impacto brutal sobre a sua condição de subsistência. Um exemplo deveu-se no âmbito do direito ao transporte já que passou a ser necessário comprovar vínculo formal de trabalho para ingressar nos trens e ônibus intermunicipais. Houve uma sobreposição de violação de direitos, na medida em que as portas das estações de trens e de ônibus ficaram lotadas e grandes filas se formaram expondo ainda mais os trabalhadores ao risco de contágio. Outro impacto negativo foi a diminuição da renda familiar para os moradores destas áreas que, obrigados pelas determinações estadual e municipal a fazer quarentena, estão vivendo em situação de extrema necessidade.  A pandemia, portanto, tem deixado visível a faceta mais cruel de viver numa cidade tão desigual como Rio de Janeiro: quem fica com os piores efeitos da Covid-19 são os que já não tem acesso à direitos.

Sem saúde, água e “isolamento social”

Muito antes que a epidemia da Covid-19 chegasse às favelas e periferias a situação da precariedade dos serviços de saúde que atendem estes territórios já era uma realidade. A lógica neoliberal, que orienta a gestão dos serviços públicos, fez com que, ao longo dos últimos anos, a Empresa Pública Rio Saúde fosse sucateada e as Organizações Sociais de Saúde (OSS), que operam por meio de parceria público-privada, ganhassem seu lugar. A péssima qualidade do atendimento oferecido pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPAS) não deixa dúvida.

Maré. Foto: Rosilene Miliotti / FASE

Outro exemplo da negação do direito à saúde à população de favela e periferias deu-se em 2019, quando o prefeito Marcelo Crivella (PRB) diminuiu drasticamente as equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e dos Núcleos de Atenção à Saúde da Famílias (NASF), assim como atrasou os salários dos funcionários vinculados a estes equipamentos. Na ocasião ocorreu a paralisação dos profissionais da saúde, que, mesmo tendo mantido serviços mínimos em 30%, impactou diretamente a população negra e pobre, que tem o Sistema Único de Saúde (SUS) como a única forma de acessar o direito a saúde. Ainda nessa linha, não podemos esquecer que no plano federal a PEC 95/2017 congelou os gastos públicos pelos próximos 20 anos. Deste modo, a lentidão e a inópia de respostas por parte das autoridades para com as populações pobres em relação a Covid-19 se somam a sensação de desamparo já conhecida pela população de favela e periférica.

No que se refere à imposição do distanciamento social e higienização das mãos como medida preventiva, a realidade da favela, periferia e de ocupações urbanas impõe desafios enormes. Casas de apenas um cômodo, sem ventilação, onde geralmente o compartilhamento do espaço é feito por muitas pessoas e pessoas idosas convivem com jovens, adultos e crianças. Portanto, o distanciamento social na favela é impraticável tanto do ponto de vista habitacional quanto do ponto de vista dos modos de vida que, diferente da classe média, expandem a casa além dos seus muros. Quanto a necessidade de “lavar as mãos” a pergunta sem resposta é a seguinte: com que água? O direito à água não uma realidade para muitos moradores de favelas e periferias! Não é à toa que nesses locais as casas têm mais de uma caixa d´água, resultado do abastecimento intermitente e precário que serve essas áreas. Ali, reservar água é uma questão de sobrevivência.

Alternativas que vem de dentro

Diante do quadro de poucas ações governamentais para as populações de favela e periferia, os próprios moradores têm se mobilizado e criado alternativas de enfrentamento à proliferação da Covid-19. Essas ações se baseiam em algumas frentes como o compartilhamento e coleta de informações de prevenção e sintomas; recolhimento de doações para compra de alimentação e materiais de limpeza; medidas educativas sobre a importância do racionamento de água; monitoramento de pessoas que são consideradas do grupo de risco.

Complexo do Alemão. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Nas favelas do Complexo do Alemão, por exemplo, estão sendo desenvolvidas ações de recolhimento de cestas básicas e doações de alimentos, álcool e gel, sabão; além de ações de conscientização dos moradores acerca da importância do distanciamento social e da lavagem das mãos. A ação é realizada por meio de carros de som e cartazes no território. Devido à ausência de recursos básicos de saneamento e saúde, esta favela tem sofrido com à falta d’água, o que levou os moradores a adotarem medidas de compartilhamento e racionamento da água. A solidariedade se destaca em tempos de caos.

De acordo com Raull Santiago, jornalista e morador do Complexo do Alemão, foi criado um “gabinete de crise na comunidade” que tem por objetivo conscientizar a população, buscar recursos para o enfrentamento à pandemia e pressionar para que os governantes atuem nas favelas e viabilizem condições básicas para a prevenção.

No Complexo da Maré, os moradores utilizam os rádios locais para divulgar informações de prevenção, inclusive o funk tem sido instrumento de conscientização. Moradores também estão gravando vídeos que alimentam uma campanha comunitária de informações sobre a Covid-19. Foi criado ainda um canal no WhatsApp para tirar dúvidas.

Em Manguinhos, o Fórum Social de Manguinhos e as Mães de Manguinhos lançaram campanha em suas redes sociais para recebimento de cestas básicas e kits de limpeza, como forma de colaboração com os moradores que se encontram desempregados e em situação de vulnerabilidade.

Em todas essas favelas os próprios moradores estão fazendo um monitoramento dos idosos e suas necessidades, para que os mesmos não precisem sair de casa. Voluntários e coletivos estão em constante contato com as unidades de saúde para atualização de informações e medidas que possam ser tomadas para a prevenção. E, apesar das dificuldades de acesso à internet que a população de favela enfrenta, as redes sociais tem sido um importante instrumento para disseminação de informações e combate às fakenews.

Na Baixada Fluminense destacamos a articulação “#CoronaNaBaixada” que reúne cerca de 100 lideranças e organizações da Baixada Fluminense para combater a proliferação da Covid-19 e apontar propostas para enfrentar a crise nesse momento. Em “Carta Manifesto”³ a iniciativa denuncia que ainda não há uma ação coordenada entre os municípios da Baixada e o governo do Estado, tanto que há municípios que ainda não estão seguindo as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das autoridades sanitárias. A articulação reivindica, por exemplo, a realização de testes em pacientes da Baixada com sintomas do novo coronavírus.

No momento, todos vivemos a sensação da incerteza sobre condições mínimas de subsistência. A diferença é que, para quem vive nas favelas e periferias, além da incerteza causada pela pandemia existe o medo de que em nome da Covid-19, tudo possa ser utilizado como justificativa para suspensão de direitos que, no limite, pode gerar mortes cujo fim não tem nenhuma relação com o vírus. As violências cometidas pelas forças de segurança, pela precariedade dos serviços de saúde e saneamento são questões que devem permanecer sendo monitoradas. 

Por fim, mais uma vez as populações de favelas e periferias estão submetidas a uma sobreposição de tipos de violência que, do nosso ponto de vista, precisam ser enfrentadas. No momento em que existe uma disputa ideológica entre “salvar vidas” versus “salvar a economia” é fundamental defender princípios social democratas que orientaram a construção do estado de bem-estar social. Mesmo longe de ser uma realidade num país como o Brasil atual, acreditamos que a defesa de direitos é estratégica para disputar a gramática política atual.

 [1] Aercio Barbosa de Oliveira, Bruno França, Caroline Rodrigues, Emanuelle Anastasoupoulos, Milla Gabrieli dos Santos Faria, Monica Oliveira e Rachel Barros.

[2] Decreto 46.993/2020 e 46.994/2020. Essa ação representou, por exemplo, uma perda de orçamento da ordem de 29% para o Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social, de 19% para a UERJ, de 15% para a Secretaria Estadual de Educação.

[3] Documento assinado por mais de 50 grupos, coletivos e organizações da sociedade civil.