22/05/2017 09:00
Francileia Paula de Castro e Maria Emília Pacheco¹
Quem já ouviu falar e já experimentou frutas como a uvaia, o biribá, o buriti, o umbu, o baru, o pinhão, o açaí, a cagaita? E os tubérculos e raízes, como a nossa conhecida mandioca, aipim ou macaxeira, o mangarito, o inhame roxo? Ou hortaliças como a bertalha, o jambu, o maxixe? Essa variedade de alimentos, originais dos biomas Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado e Caatinga, é expressão de nossa rica biodiversidade, historicamente preservada, manejada e cultivada pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e pelos agricultores e agricultoras familiares.
Conta a história que a humanidade já utilizou entre 3 a 10 mil espécies de plantas para atendimento de suas necessidades alimentares. Mas a produção de alimentos, hoje, depende de um número muito reduzido, talvez 150, e desse número, o fato é que, apenas 15 espécies são as mais recorrentes: duas que produzem o açúcar (beterraba e cana de açúcar); quatro que são produtoras de amido (batata, batata-doce, feijão e mandioca); cinco que são do grupo de cereais (arroz, centeio, milho, sorgo e trigo); duas que são frutíferas (banana e coco); e duas que são oleaginosas (amendoim e soja)².
É importante perguntar: o que (não) estamos comendo? Vivemos tempos de muitas mudanças de nossos hábitos alimentares com a redução da variedade em nossa alimentação, com maior consumo dos produtos alimentícios industrializados e ultraprocessados como, por exemplo, os refrigerantes, as massas de preparo instantâneo, os biscoitos recheados e outros. Houve uma redução do consumo de frutas e hortaliças com impactos na mudança do perfil nutricional da população. Cresce o índice de sobrepeso e de obesidade. Priorizar o consumo de alimentos in natura, alimentos de estação, que correspondam ao ciclo da natureza, comercializados sobretudo nas feiras de alimentos agroecológicos e orgânicos, é um passo importante. Faz bem ao meio ambiente, faz bem à saúde e valoriza os agricultores familiares e agroextrativistas, grupos que realmente produzem nossos alimentos.
Os alimentos tradicionais, as práticas e as receitas, os saberes, os fazeres e os sabores simbolizam formas de resistência cultural contra a padronização de nossa alimentação. “É urgente valorizar as diferentes tradições culinárias e ter em conta o valor cultural da comida, pois corremos o risco de perder a memória alimentar do país. Assegurar o direito humano à alimentação adequada e saudável também implica em garantir o direito ao gosto”³. É importante reconhecer que comer é um ato social, cultural e também político.
No Mato Grosso, em uma das área de trabalho do programa da FASE-, a Associação Regional das Produtoras Extrativistas do Pantanal (ARPEP), por exemplo, reúne mulheres agroextrativistas de três assentamentos rurais e uma comunidade tradicional nos municípios de Cáceres e Mirassol D’Oeste, localizados na região de transição do Cerrado Matogrossense com o Pantanal, no sudoeste do estado. Estas mulheres produzem uma diversidade de alimentos a partir do aproveitamento e do beneficiamento de vários frutos regionais.
O pequi (Caryocar brasiliense) é usado para a fabricação de licor, farinhas, doces e polpa, que em geral é consumido com arroz e galinha. Dele também se extrai o óleo para cozimento de alimentos. Do babaçu (Orbignyaphalerata) se extrai o mesocarpo na forma de farinha para fazer mingau, que é um costume popular de consumo, além do óleo e outros usos. O cumbaru, baru ou cumaru (Dipteryx alata Vogel) oferece um fruto que traz uma amêndoa dura, comestível, rica em proteínas e muito saborosa. Além de produzir pães e biscoitos com os frutos do Cerrado, a ARPEP passou a elaborar farinhas, farofas, óleos, rapaduras, doces, castanhas, mesocarpos in natura e licores. Os produtos são comercializados para a alimentação escolar, e na rede socioassistencial dos municípios da região (creches, asilos e hospitais). Mas também são alimentos importantes para o autoconsumo das famílias.
Outro exemplo é o mangarito, mangará, tayaó (em guarani), malangay (Xhanthosoma riedelianum Schott), um tubérculo muito apreciado no passado e pouco conhecido atualmente. Fazia parte da dieta dos indígenas. Tem origem nas regiões tropicais da América do Sul e Central do Brasil e do México. As folhas são comestíveis, mas suas pequenas raízes (rizomas) são as mais valorizadas. A prática dos intercâmbios de sementes e mudas nas festas, nas reuniões, nas feiras agroecológicas faz circular alimentos que, muitas vezes, estavam desaparecendo. A história de uma agricultora do Mato Grosso reflete isso. Ela que recebeu raízes do mangarito da família e ainda preserva o seu cultivo, levou muda para um intercâmbio de sementes durante um encontro de agroecologia em outro estado. Tempos depois, em outra feira, viu uma agricultora trocando muda do mangarito e contando a história da qual a sua interlocutora era a própria autora.
A mangaba, fruto da mangabeira (Hancornia speciosa), também permanece no hábito alimentar de povos e comunidades rurais. Da fruta, rica em vitamina C, são produzidos licores, geleias, sorvetes, além de ser consumida in natura. Nos meses de dezembro a abril exala-se nas áreas do Cerrado e nas planícies pantaneiras o aroma da canjiquinha ou canjiqueira, semaneira (Byrsonima orbignyana A. Jussieu), de sabor agridoce e de polpa carnosa. Ela marca a saborosa e rica cultura alimentar da região, além de ter uma importância econômica para povos e comunidades que comercializam localmente a fruta e as polpas de suco. Sabores estes pouco conhecidos pela maioria da população brasileira.
O agroextrativismo é “uma das práticas promotoras do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável, na medida em que contribui com o resgate da cultura alimentar regional/local e vincula a produção de alimentos ao território e às relações sociais que nele se estabelecem” [4]. As experiências de resgate de culturas e hábitos alimentares têm permitido uma ampla participação das mulheres, o que vem estimulando a valorização e a intensificação do plantio, manejo e uso de alimentos tradicionalmente utilizados regionalmente, assim como de plantas medicinais. Os grupos de mulheres são guardiões dos sabores e nos convidam a compartilhar, valorizar, proteger, preservar essa riqueza e a reconhecer e respeitar sua identidade cultural.
Esta é uma reflexão que interessa não apenas a quem produz, quem vive no campo e na floresta, mas também para a quem mora nas cidades e consome os alimentos. E para assegurar essa diversidade é fundamental garantir os direitos de quem protege a natureza e produz os alimentos. Estamos perdendo a nossa rica biodiversidade, e esses alimentos ou estão desaparecendo ou estão sob fortes ameaças em razão de problemas gerados pelo modelo agroindustrial de produção dos alimentos. O aumento dos desmatamentos, a expansão do gado e dos monocultivos de soja, milho, cana de açúcar, assim como a contaminação do solo, das águas e dos alimentos pelo uso intensivo dos agrotóxicos, ameaçam a nossa soberania e segurança alimentar e nutricional.
Por isso, também a FASE participa da Campanha em Defesa do Cerrado, Berço das águas, um bioma ameaçado. Aí estão bacias hidrográficas importantes como, por exemplo, a do São Francisco e a do Paraguai e o grande Aquífero Guarani. O Cerrado abriga milhares de espécies de plantas nativas, dentre elas inúmeras comestíveis. Aí vivem também centenas de milhares de agricultores e agricultoras familiares, quebradeiras de coco babaçu, comunidades quilombolas, povos indígenas e pescadores que cuidam da rica biodiversidade ameaçada.
Nossa proposta é a defesa da comida como patrimônio, com os seus vários sentidos para as diferentes culturas alimentares. Reafirmamos que a nossa biodiversidade é protegida pela diversidade cultural, ou nossa sociobiodiversidade, com os vários segmentos do campesinato, povos e comunidades tradicionais que fazem a história, e que precisam ter seu direito às terra e ao território e seus modos de vida protegidos.
[1] Educadora do programa da FASE no Mato Grosso e integrante do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE, respectivamente.
[2] CORADIN, L; SIMNSKY, A;REIS,A – Espécies Nativas da flora brasileira de valor econômico atual ou potencial,: plantas para o futuro – Região Sul, Brasília:MMA, 2011.
[3] Comida é patrimônio, e não mercadoria – Entrevista realizada por Gilka Resende com Maria Emília Pacheco (edição 7 do Brasil de Fato RJ).
[4] CASTRO, Francileia Paula – “Cultura alimentar e agroextrativismo: saúde na mesa e renda no campo”, artigo na Revista Agriculturas (ASPTA).