03/02/2022 17:33
Maiana Maia*
No final do ano passado, a Sessão em Defesa dos Territórios do Cerrado do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) realizou sua primeira audiência temática. Chamada de Audiência das Águas, a atividade, realizada de modo virtual, apresentou ao júri e ao público seis dos 15 casos denunciados ao TPP. O ponto em comum dos seis casos é que todos explicitavam a apropriação privada e a contaminação por agrotóxicos e rejeitos da mineração das águas do Cerrado por empreendimentos privados minerários e do agronegócio, com a omissão ou cumplicidade de governos.
As denúncias trouxeram elementos concretos sobre os crimes e violações cometidos contra o Cerrado, suas águas e seus povos. Trouxeram, além disso, a dimensão ancestral e afetiva das águas – e de sua perda – para os povos e comunidades tradicionais que mantêm uma relação de vida e morte com o Cerrado.
Nas falas de cada testemunha de cada um dos seis casos, revisitamos algumas das forças-correntezas que aproximam nosso coração e pensamento da vivência dos povos e da sua relação com as águas, e nos colocam também como testemunhas dos seus sofrimentos e da responsabilidade de Estados e empresas pelos crimes e violações cometidos.
Primeira força-correnteza: a dor
A dor é a primeira força-correnteza, uma dor que, nos povos e comunidades impactados pela mineração e agronegócio, é vivida na superfície da pele, no cotidiano, e por isso é a mais profunda. Qualquer pessoa que queira entender a gravidade da destruição das águas do Cerrado precisa ouvir os povos e comunidades cerradeiros sobre o lamento da morte dos rios, córregos, riachos, lagos, aquíferos, veredas, cabeceiras, nascentes e ribeirões.
É um lamento que está no som que faz o silêncio quando uma canoa não leva mais um pescador para pescar no rio, porque o rio virou areia, e o peixe e o pescador não podem mais existir, como expressou Davi Krahô ao denunciar os impactos que o agronegócio irrigado do arroz, da soja e da melancia estão causando nos rios Formoso e Javaé, no Tocantins.
O lamento está no som que faz o soluço do choro de Eliana Marques quando ela se lembra de um tempo antes do rompimento da barragem de rejeitos da Vale em Brumadinho, Minas Gerais, quando o rio Paraoapeba ainda não tinha sido devastado pela lama, e a comunidade Cachoeira do Choro, onde ela mora, podia dele beber, nele pescar, banhar e viver do turismo comunitário. O choro de Eliana brota ao constatar que o Paraopeba, hoje, foi convertido em rio de lama tóxica.
O lamento da dor está no som do medo que assalta o coração de Maria Isabel ao alertar que a comunidade de Macaúba, onde ela mora em Catalão, Goiás, foi feita vizinha de duas barragens de rejeitos de mineração, uma das quais é ainda maior do que a que se rompeu em Brumadinho matando 272 pessoas.
O lamento está no som dos passos de Jaime, geraizeiro de Januária, norte de Minas Gerais, afundando as solas dos sapatos e da sua tristeza no leito de um vazio que era um rio, um rio que secou depois que uma centena de veredas e brejos nos gerais, na margem esquerda do rio São Francisco, foram drenados pelos desertos verdes das plantações de eucalipto.
O lamento da dor pode ser ouvido nas vozes de mulheres como Marlene Ribeiro, do Vale das Cancelas, Minas Gerais, e Élia, ribeirinha da bacia do Rio Corrente, na Bahia, ao velarem esse verdadeiro obituário das águas que foi apresentado ao longo dos dois dias de audiência. Esse lamento mostra, de forma inequívoca, o quanto a sede é irmã gêmea da fome, já que a escassez e a contaminação das águas repercute diretamente na insegurança alimentar de povos e comunidades tradicionais que são referência de uma cultura alimentar farta, diversificada e saudável.
Segunda força-correnteza: a indignação
A indignação foi a segunda força-correnteza presente nos depoimentos apresentados nos dois dias de Audiência das Águas.
Indignação porque vimos nos testemunhos que não é digno que os pivôs e bombas do agronegócio suguem, literalmente, 77% das águas do nosso país. São 969 mil litros por segundo de águas superficiais e subterrâneas consumidas só pelo agronegócio irrigado; são 83 bilhões de litros de água por dia. Os sete estados que compõem o Cerrado – Bahia, Maranhão, Tocantins, Piauí, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás – concentram 91,8% da área equipada por pivôs centrais; 79% dos pivôs distribuídos pelo país estão nos Cerrados.
Indignação porque não é digno que se ignore o levante dos ribeirinhos de Correntina, apoiados por 92% da população da cidade, que precisaram, à força, liberar o rio da sua morte certa. Não é digno que simplesmente se defina, nos planos do governo baiano, o definhamento dos rios pela continuidade do investimento e pela expansão brutal das áreas equipadas por pivôs com o objetivo de aumentar em 38% o volume de água retirada para o agronegócio irrigado até 2030.
Indignação porque não é digno que, só em 2018, mais de 600 milhões de litros de agrotóxicos (73,5% dos agrotóxicos consumidos no país) tenham sido lançados no Cerrado para pulverizar as plantações de soja, cana-de-açúcar, milho e algodão do agronegócio, com a recorrência de pulverização aérea contra aldeias e comunidades, numa prática de guerra de contaminação química.
Indignação porque vimos nos dois dias de Audiência das Águas que não é digno que o interesse privado de grandes corporações na exploração e exportação de metais do nosso subsolo valha mais do que o interesse público e do bem comum de proteger tudo mais que existe no subsolo, como os aquíferos, e acima dele. O consumo de água para o beneficiamento de minérios, minerodutos, e os impactos da retirada da canga na recarga de aquíferos, com rebaixamento do lençol freático, redução no fluxo de água de rios, desaparecimento de nascentes, a perda da qualidade da água subterrânea, diminuição do volume de água em poços, a contaminação por metais pesados como arsênio, chumbo, mercúrio, cádmio, zinco – e agora com a dinâmica de repetição dos crime-tragédias de rompimentos de barragens de rejeito instituindo uma economia de modelo mineral que banaliza os acidentes.
Indignação porque não é digno que projetos que se dizem tão modernos e precursores do desenvolvimento se instalem e operem ainda nessas regiões com base no mesmo racismo de 521 anos atrás, que atacou os povos indígenas e escravizou os povos africanos. São projetos que seguem herdeiros da mesma violência colonial que sacrifica povos e comunidades inteiras, na medida em que seus valores, saberes, fazeres e seus direitos são absolutamente desvalorizados e desqualificados, negando-se a esses povos e comunidades a possibilidade de seguir afirmando e realizando modos outros e ancestrais de existir.
Terceira força-correnteza: a admiração
Por fim, a terceira força-correnteza que nos arrastou durante os dois dias de Audiência das Águas foi a admiração.
A admiração, o reconhecimento da importância e do papel dos povos e das comunidades tradicionais do Cerrado é que nos impulsionam justamente na contramão dessa lógica racista que combina seu ecocídio e o genocídio cultural dos seus povos e comunidades.
Admiração porque a relação das comunidades com as águas é de profunda intimidade, intimidade de quem conhece o rio pelo seu nome, de quem se conhece e se faz conhecer pelo nome das águas, como tantas comunidades que se batizam assim: o rio e elas sendo o mesmo nome, o mesmo ser. Intimidade de quem sabe na água reconhecer os peixes, os encantados, a própria mãe, com a mesma reverência ao líquido sagrado que nos embala desde a barriga.
Admiração deles que sabem colher água, plantar água – como dizem os veredeiros – mapeando e recuperando as nascentes, fazendo rebrotar olhos d’água. De quem sabe conviver com as águas, compartilhá-las, dialogar com seus ciclos, respeitar seus limites.
Admiração de quem acredita tão piamente que a água é vida, que costuma arriscar a própria vida para defendê-la.
Nós, que moramos em grandes e médias cidades, a gente conhece o nome do rio que oferece a água que a gente bebe? A gente sabe o caminho que ela faz até chegar na nossa torneira, no nosso copo?
O Cerrado abriga nascentes de oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras. É bem provável que quem assistiu à Audiência das Águas nunca mais possa beber um copo d’água sem sentir a força dessa admiração, da gratidão e da interconexão entre nossas vidas e a dos povos e comunidades do Cerrado, guardiões das nossas águas, das nossas sementes, da nossa sociobiodiversidade.
É preciso agradecer aos povos e comunidades que construíram a audiência temática das águas pela competência e generosidade com que compartilharam tantas informações urgentes; pela sensibilidade com que lembraram daqueles que não podiam falar por si na audiência – o próprio rio, que quer poder seguir seu curso, e as futuras gerações que ainda nem nasceram, mas que teriam falado, durante a audiência, sobre seu desejo e direito de poderem se banhar e beber dessas águas.
É preciso agradecer aos povos e comunidades por sua sabedoria, pelos valores, pela peleja. Por serem vaga-lumes num tempo tão sombrio, mostrando que existem e resistem outras formas de se relacionar com a vida, com a natureza, que inspiram nossa criatividade a sonhar outros futuros possíveis, que não o da lógica privatizante, individualista, financeirizada e predatória tão fadada a nos levar ao colapso e à barbárie.
É preciso agradecer, também, ao júri do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), por acolher todos os testemunhos apresentados durante os dois dias de audiência, e por sustentar a escuta desses relatos tão dolorosos com respeito, sensibilidade e compromisso. Que a palavra do júri do TPP possa honrar essas dores, alegrias e as resistências dos povos e comunidades do Cerrado, e creditar verdade na denúncia que eles trouxeram.
*Assessora da FASE. Texto publicado originalmente em Mídia Ninja.