27/01/2017 14:23

Apesar de o governo de Michel Temer ter escolhido como lema o velho e retrógrado refrão da “ordem e progresso”, o país tem suportado cotidianamente algo ainda pior: a paradoxal combinação da escalada repressiva contra os movimentos sociais com o mero gerenciamento da desordem, que se traduz em insegurança das trabalhadoras e trabalhadores e na constante negação de direitos. A ruptura democrática ocorrida com a posse do governo não eleito tende, assim, a aprofundar a perversa combinação da ausência do Estado provedor com a presença do Estado que reprime e gera ainda mais a exclusão de parcelas crescentes da população brasileira.

Protesto contra a PEC no Fim do Mundo em Brasília. (Foto: Mídia Ninja/ Reprod.)

Protesto contra a PEC no Fim do Mundo em Brasília. (Foto: Mídia Ninja/ Reprod.)

Refletindo sobre 2016, em “O Ano em que o Capitalismo Real Mostrou a que Veio”¹, Jerome Roos, da Universidade de Cambridge, constata que “o gerenciamento da desordem — este se torna o principal paradigma do governo sob o neoliberalismo. Em vez de confrontar diretamente as causas subjacentes à instabilidade política, à catástrofe ecológica e aos problemas sociais endêmicos, o Estado de controle considera “mais seguro e útil tentar administrar seus efeitos”. Assim, em vez de combater as severas desigualdades de riqueza e de poder no coração do capitalismo financeiro, o ‘Estado de controle’ cada vez mais recorre à polícia contra o precariado. Em vez de reverter a exclusão social e a marginalização econômica dos historicamente oprimidos, o Estado há muito resolveu hostilizar, assassinar e encarcerar essas pessoas.

Podemos estabelecer uma relação direta entre esse diagnóstico e a situação brasileira neste começo de ano, marcado pela explosiva manifestação da falência do sistema prisional brasileiro e a brutal violação dos direitos das pessoas privadas de liberdade. Embora o governo ilegítimo de Temer não possa ser responsabilizado pelas décadas de omissão dos estados e do próprio governo federal, está clara sua opção estratégica por uma política que levará ao aprofundamento da exclusão social. Como a economista Laura Carvalho demonstrou no artigo “Corte o gasto social, torre o dinheiro em prisões”², “a opção por ‘menos Estado’ econômico e social, que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva nos vários países, leva à necessidade de ‘mais Estado’ policial e penitenciário”.

Como resultado, temos presídios superlotados que, em sua massiva maioria, aglomera jovens negros empobrecidos pelo sistema. Esses locais são incapazes de garantir a vida à população carcerária, muito menos promover uma reinserção na sociedade. Segundo os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen),  em 14 anos o aumento da população encarcerada foi de quase 170%. O Brasil é o quarto país no mundo em número absoluto de detentos, seguido pelos Estados Unidos, China e Rússia. A obsessão encarceradora do Estado brasileiro continua ignorando que não há solução estrutural para o problema que não passe, entre outras medidas, pela redução do número de pessoas presas. Dos cerca de 630 mil prisioneiros no país, cerca de 40% ainda não foram julgados. Enquanto isso, é amplamente difundida na opinião pública a valorização de formas arbitrárias de encarceramento como instrumento de combate à corrupção. Junto à incapacidade do Estado de gerir presídios, se fortalece a ideia de privatização das penitenciárias como solução. Ou seja, existem grupos interessados no crescimento de uma política repressiva e de encarceramento para obter lucros.

40% das pessoas presas no Brasil não foram julgadas. (Foto: ABr)

40% das pessoas presas no Brasil não foram julgadas. (Foto: ABr)

Após a posse de Temer, a lógica privatista já se mostra ainda mais forte em diversos setores. A aprovação da PEC do corte de investimentos públicos, que ficou conhecida como PEC do Fim do Mundo, promove o ataque aos direitos da população por pelo menos 20 anos. Junto à medida, chegaram as controversas reformas da previdência e trabalhista, pavimentando o caminho para o aumento da desordem generalizada, a ser gerenciada pelo Estado de forma cada vez mais precária e impotente.

Por outro lado, cabe destacar que desde as Jornadas de Junho de 2013 já crescia extraordinariamente a violência contra os setores da população que lutam por seus direitos, como a FASE e demais organizações do campo democrático têm denunciado frequentemente. Junto com a realização de megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, além do fortalecimento de um desenvolvimento destruidor, chegaram mais estratégias e leis repressivas. O aumento da criminalização das lutas sociais só se fez acentuar de lá para cá.

O golpe traz mais um conjunto de retrocessos. Propostas que promovem a violação de direitos humanos no Congresso Nacional tomam fôlego e estão sendo aprovadas a cada dia. Nas cidades, existe a crescente insegurança, a proliferação dos homicídios, das vítimas de balas ditas perdidas, já que geralmente essas atingem populações empobrecidas e negras, o ataque aos direitos das pessoas em situação de rua, etc. Nos campos, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os índices de conflitos agrários atingiram os piores níveis dos últimos anos. Em 2016, 59 pessoas foram assassinadas por lutarem pela Reforma Agrária, historicamente paralisada, e por territórios tradicionais. Nas florestas, não é diferente. Propostas de mercantilização de terras para estrangeiros, de ainda mais flexibilização dos licenciamentos ambientais e de promoção da violação dos direitos de povos tradicionais tomam mais força.

São Paulo - Reitegração de posse de terreno em São Mateus, zona leste.(Rovena Rosa/Agência Brasil)

Aparato policial em remoção da ocupação Colonial em São Paulo. (Foto: Rovena Rosa/ABr)

Entidades que lutam pela democratização da comunicação já denunciam ainda mais retrocessos na liberdade de expressão no Brasil. Prossegue a escalada repressiva e de violência privada e estatal que atingem indígenas, mulheres, negros, sem terras, sem tetos, as juventudes, LGBTs, setores que lutam em defesa do ensino e da saúde públicos, funcionários estaduais cujos direitos são cinicamente negados, e muitos outros setores. A prisão de Guilherme Boulos, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), durante expulsão de cerca de 3 mil pessoas da Ocupação Colonial, em São Paulo, é apenas mais um exemplo de que as possibilidades de lutar por direitos se encontram cada vez mais ameaçadas no país.

Concluindo, assistimos a uma combinação perversa de desordem e repressão em um contexto de desmonte do que resta do Estado democrático de direito – inexistente já para grande parte da população brasileira. Mas não nos intimidaremos e continuaremos resistindo aos ataques à democracia e ao atual modelo de desenvolvimento.

[1] ROAR Magazine, Issue #4.

[2] Outras Palavras, Boletim 759, 19/01/2017.

[3] Acesse esse editorial em inglês.