18/09/2006 10:47

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Diretor da FASE

Em memória de Ítalo Lopes dos Passos

A periferia vira centro dos processos de transformação social quando ela se projeta para fora, quando ela ganha forma no corpo político de seus sujeitos organizados: da CUFA ao Afro-Reggae passando pela Casa da Cultura de São João de Meriti e pelo Setor BF de Mesquita e nos encontros como o do Café Filosófico (Antonio Gramsci e J.C.Mariategui e Paulo Freire podem ser lembrados como precursores desse processo de “Universidade Popular” em movimento). Se os intelectuais são os organizadores da cultura, os jovens da periferia, em especial da Baixada Fluminense, transformam suas atividades, se profissionalizam, criam, são produtores de linguagem, de entretenimento, são também artistas. Procuram escapar ao naturalismo darwinista e ao apartheid social-territorial-racial que visa segregá-los, enfrentando a licença dada aos grupos de extermínio para matá-los à sombra das instituições que deveriam garantir a segurança dos cidadãos. Os jovens de que falamos são como Ítalo Lopes dos Passos, do “Setor BF” de Mesquita, assassinado por policiais à paisana no dia 14 de setembro de 2006 quando saia de uma festa junto com um amigo que também foi baleado.

A desvalorização da vida no capitalismo periférico se desenvolve de maneira desigual e combinada contra o corpo da juventude, na classe média pelo excesso e pelo consumo reificado, nas classes populares pela violentação direta e pelo encarceramento. Os jovens da juventude não-branca, principalmente afro-descendentes, são criminalizados e descartados por uma máquina histórica de sujeição e segregação. Mas eles se movimentam, eles produzem. Como parte do precariado (proletariado precarizado) eles buscam estudar, se associar, cooperar, para poder alcançar as ferramentas do “cognariado” (proletariado do conhecimento), de modo a poder ocupar espaços no mundo produtivo da era das redes globais. O corpo que se movimenta na nova rebeldia negra e popular tenta gerar as condições de superação dos quadros de exclusão imposta ampliando sua liberdade nos territórios, nas cidades, nos bairros, e mesmo nos espaços institucionais e públicos de onde conseguem arrancar algumas novas políticas, pontos de cultura, consórcios da juventude, incubação de cooperativas, inclusão digital, etc.

Nos encontros do Café Filosófico se anima e fortalece essa constituição da juventude em movimento molecular e guerra democrática de posição, marcada por uma perspectiva altiva de protagonismo juvenil que se eleva contra as barreiras físicas e metafísicas do poder do capitalismo histórico brasileiro. As jovens e os jovens se colocam em espaço interativo, desenvolvem suas ferramentas cognitivas e se convertem em inteligência coletiva para romper com a barbárie exterminista e racista, para gerar oportunidades e dinâmicas de autonomia. Nos encontros realizados em vários espaços e municípios, forjam a sua liderança como sujeito de uma nova trajetória imanente, em ato, com posição face à situação. As identidades e as consciências são construídas nessas várias faces de uma rede de esforços que se operam desde múltiplas origens, desde de muitos desejos, desde a união da juventude socialista até os que se organizam para a arte dos malabares. Circo social, circo popular, rodas de cultura, forças do mambembe do periférico, força do software livre, os jovens reavivam a força das utopias refletindo sobre pensadores como Clóvis Moura, Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Darcy Ribeiro, que dialogam com o método filosófico, desde Espinosa até Deleuze, desde Rousseau até Marx, desde Heráclito até Foucault. O objetivo das conversas é atingido quando os jovens pensam sobre as saídas, conhecem Fanon, reconhecem Luther King, se vêem nas telas de Portinari e Di Cavalcanti, refletem sobre os caminhos de Mv.Bill, perguntam-se sobre como combinar a sua construção enquanto sujeitos numa luta que é a de construção de uma cidadania de produtores, de uma nova democracia que ponha abaixo a hipocrisia da “democracia racial”, do “brasileiro cordial”, buscando nos afetos e nas paixões a energia para luta com a arma criativa do vídeo, do computador, das tintas, das letras, as armas da mudança radical e pacífica num país em que se pratica uma guerra civil permanente contra o que eles representam.

As maiorias são agora falantes, atuantes, a voz de Ítalo não quer se calar, a voz da periferia vai continuar a se ampliar, são eles que constroem a base material e social do nosso futuro, mas eles não esperam em posição resignada, eles não tentam a via escapista ou o imediatismo da senda criminal, a grande maioria oscila entre sobreviver e buscar caminhos de resistência, de rebeldia, de luta por direitos, por reconhecimento. O novo bloco histórico da emancipação não virá da morte anunciada da política dos mercados e da morbidez das formas profissionais. Para os políticos e as políticas profissionais que desejarem mudar o quadro de dominação e segregação só resta buscar essa filosofia, essa política de construção de imagem, de sentido, de organização, de cultura contra-hegemônica que é tão mais forte quanto se traduz em formas de antecipação artística, em formas de rede de inteligência e trabalho, quando mobiliza saberes e rompe com os muros das desigualdades e segregações.

No movimento em que a periferia vai aos centros do mundo, uma parte da periferia se organiza para ser um outro tipo de poder, descentrado, em rede, genuinamente democrática, radicalmente desobediente e pacífica. A vitória dessa via de construção de civilização é a chave da visão de mundo, da filosofia da ação coletiva transformadora que se coloca do lado dos movimentos sociais, os novos sujeitos coletivos e a nova centralidade do trabalho cooperativo, as formas populares e solidárias de construção de um novo projeto político para o Brasil, dependerá de todo esforço que pudermos fazer para não perdermos jovens como Ítalo para as forças banalizadoras do mal.