16/06/2020 10:29
Sara Pereira¹
Nas cidades, o gargalo no sistema de saúde, aprofundado pela pandemia do novo coronavírus, tem provocado milhares de mortes, muitas por não terem conseguido atendimento adequado. Contudo, muito antes da Covid-19, as populações amazônidas padecem (e até falecem) pela falta de assistência médica, até mesmo a mais básica como ter acesso a soro antiofídico.
Nessa semana, Eliana Batista, uma conhecida e querida liderança do Alto Arapiuns, perdeu seu filho Roni, de 39 anos, vítima de uma picada de cobra surucucu. O acidente ocorreu por volta das 16h do sábado (13/06) na Comunidade Nazário, distante cerca de 9h de barco de Santarém. Em Nazário, não há posto de saúde. Então, a mãe, com ajuda de vizinhos, levou Roni de moto até a comunidade Curi, por uma estradinha esburacada, que só passa mesmo moto e bicicleta, sob forte chuva num percurso de mais ou menos 1h. Porém, no posto de saúde de Curi o único remédio que tinha era dipirona. NÃO TINHA SORO ANTIOFÍDICO. Sem condições de prestar socorro na comunidade, o enfermeiro chamou a ambulancha, a qual chegou em Curi à meia-noite, apanhou o paciente e sua mãe e retornou imediatamente à cidade. Por volta de 2h45 da madrugada (quase 12h após o acidente) deram entrada no hospital municipal. Mas, pela demora no atendimento, o estado de saúde do rapaz se agravou e ele não resistiu. Faleceu pouco antes do meio-dia do domingo (14/06).
Na certidão de óbito de Roni Batista a causa mortis estará descrita como complicações decorrentes de veneno de cobra, acidente ofídico ou coisa semelhante. Mas, a verdade é que Roni morreu pela falta de assistência básica em saúde que historicamente faz vítimas entre as populações amazônidas ribeirinhas, agroextrativistas, indígenas, quilombolas e agricultores do campo.
E a morte de Roni não é um caso isolado. A precariedade no acesso a políticas públicas de saúde é uma realidade vivenciada cotidianamente na zona rural amazônica, principalmente nas aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas, onde nem o mais básico, como soro antiofídico, está disponível à população
Alheio a essa realidade, o Congresso Nacional, em 2016, aprovou a Emenda à Constituição (EC 95) que congelou os investimentos públicos por 20 anos. Assim, as políticas públicas em saúde, que já eram deficitárias, ficaram ainda mais restritas, deixando a população que depende unicamente do Sistema Único de Saúde (SUS) abandonada à precarização dos atendimentos.
A indiferença dos parlamentares federais em relação às necessidades da população brasileira, em realidades tão diversas, também se repete em nível estadual e municipal. Comunidades como Nazário, conforme testemunham seus moradores, só costumam receber visitas de “autoridades políticas” em períodos de campanha eleitoral quando chegam com ações pontuais. Mas, o que os povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia precisam é de que sejam assegurados seus direitos a políticas públicas adequadas e não de mero assistencialismo de cunho eleitoreiro.
À dona Eliana, cuja principal característica sempre foi a contagiante alegria, restou encarar a insuportável dor da perda de um filho e retornar à Comunidade Nazário para sepultá-lo. Roni era o único filho que ainda morava com a mãe, sendo seu braço direito na lida da roça e na criação dos animais. Num lamento carregado de indignação, dona Eliana desabafou “se tivesse soro antiofídico no Curi, meu filho poderia estar vivo”.
Além da solidariedade com o sofrimento dessa mãe, é preciso exigir ao prefeito municipal e demais autoridades públicas competentes que o direito das populações amazônidas em relação às políticas públicas de saúde seja garantido, como a disponibilização de soro antiofídico em todas as unidades de saúde da zona rural, sobretudo nas comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas mais longínquas, a fim de que não continuemos a contabilizar e a chorar mortes evitáveis, seja em decorrência da Covid ou de picada de cobra.
[1] Educadora da FASE na Amazônia. Texto publicado originalmente no jornal comunitário O Boto.