10/02/2022 15:52

Tatiana Dahmer Pereira

Estudos como o da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 2020, e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da OXFAM, em 2021, registram que a pandemia de Covid-19 no Brasil impactou de maneira perversa e desigual os mais pobres, sobretudo a população negra, assim como indígenas. Esse viés deve-se a elementos estruturais e conjunturais que acentuam as desigualdades no país e as características próprias do rumo da política pública de assistência social brasileira, agravadas pelo aprofundamento da crise capitalista e o fortalecimento da extrema direita na gestão neoliberal do Estado.

Nossa trajetória de conformação republicana combina, como disse Chico de Oliveira, o arcaico e o moderno como facetas da mesma moeda. Como elementos do arcaico, presentes na modernização, estão: o racismo estrutural, a permanente prática genocida e criminosa para com populações indígenas, a histórica relação predatória com a natureza com base em interesses patrimonialistas e as desigualdades sociais na nossa configuração de classes.

A despeito de mobilizações de organizações e movimentos sociais, a conformação da assistência social no Brasil como política pública percorre caminho tortuoso entre a crença/esforço (ainda que com baixo êxito) de se tornar algo protetivo, capaz de assegurar mecanismos de sobrevivência e de dignidade às pessoas versus a materialização em meras ações assistencialistas, controladoras, obscuras e moralizadoras sobre as pessoas mais empobrecidas. Cada vez mais capitaneadas por grupos religiosos,  difusores de discursos de ódio e de práticas autoritárias, ações assistencialistas pífias e esvaziadas da dimensão mais básica do direito têm servido como suporte de gestões arbitrárias, como a que vivemos neste contexto específico.

É esse o caldo de configuração da assistência social no Brasil: política pública que, apenas a partir de 2004, apresenta a proposta de criação de um sistema único nacional, descentralizado e voltado à garantia da autonomia municipal em sua gestão participativa, com possibilidades de mapeamento territorial das desigualdades e concessão pecuniária de apoio às famílias mais empobrecidas, priorizando a titularidade feminina no acesso ao benefício. No entanto, a regulamentação da assistência social desde sua inscrição na Constituição Federal de 1988 como uma política pública universal e de proteção social, percorreu acidentado e longo percurso até a sua regulamentação, ficando bastante distante dos princípios éticos que a norteiam.

Marcado pela violência desde o colonialismo e recorrentes ditaduras, e, mais recentemente, pela devastação da implantação do neoliberalismo desde os anos de 1990, nossa política de assistência social não se construiu de forma sólida e na lógica de alguma proteção social – pretensamente universal como a vivenciada (ou, ao menos anunciada) no período de expansão capitalista na Europa nos chamados “anos de ouro”, quando se materializam diferentes experiências de Estado de bem estar social nos países europeus no século XX. Por aqui, considerando nossa característica periférica capitalista, nunca conseguiu se integrar setorialmente com outras políticas públicas ou mesmo estabelecer conexões importantes com a dinâmica do trabalho.

Ao vivenciar o rebatimento da crise capitalista no final da década de 2000, sempre se fizeram presentes essas marcas originárias de autoritarismo estatal e de controle sobre os pobres – e não da proteção estatal. Da mesma forma, a criminalização dos/as que se organizam e lutam contra as desigualdades, os racismos, sexismos e explorações classistas no campo e na cidade, se acentuou nos últimos 20 anos, se tornando dramática durante o atual governo.

As organizações não governamentais que atuam no campo da defesa de direitos, são parte integrante dessa política. Elas travam dura batalha no âmbito dos espaços de controle social e de representação política, a fim de assegurar rumos distintos para as ações estatais. É no período da pandemia que, em meio à profunda crise sanitária e já em contexto de crise capitalista, o governo de Jair Bolsonaro (PL) aproveitou para “deixar a boiada passar”. Isto é, implementou cortes em recursos para políticas sociais e ambientais, flexibilizou legislações ambientais e promoveu refuncionalização ainda maior do Estado para atender aos interesses da acumulação capitalista e da concentração de renda de modo ainda intenso.

O perfil governamental durante a pandemia, combinou descaso e cinismo quanto às decisões fundamentais para amenizar e proteger as pessoas mais expostas aos impactos desses tempos. Ações importantes, que deveriam ter sido adotadas na primeira hora, como a concessão de auxílios e benefícios sociais básicos, investimentos na integração de políticas sociais que combinassem proteção sanitária e social, não foram tomadas em um país que, em 2019, já apresentava um quadro de mais de 12 milhões de pessoas desempregadas (IBGE, 2019), em parte, como expressão de cortes progressivos em valores e mesmo alcance de programas de transferência de renda que têm início ainda em abril de 2019.

Nesse contexto, o monitoramento do  Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA – BPS, 2021) demonstra como a intermitência, a demora e a instabilidade na concessão de auxílios no período, impactaram e geraram inseguranças e acentuaram contradições junto às populações empobrecidas. No início de 2021, de acordo com pesquisadores, em seis meses, o número de pobres é multiplicado por 3,5 vezes, correspondendo a 25 milhões de novos pobres em relação ao último semestre de 2020.

Ao chegarmos à pandemia, a assistência social já se encontrava bastante precarizada e o Estado dominado por segmentos religiosos fundamentalistas, grupos empresariais vinculados ao agronegócio e à produção de armas, demarcando gestões com práticas territoriais punitivistas e controladoras, contribuindo significativamente para acentuar as desigualdades sociais. Outro aspecto fundamental refere-se ao rápido desmonte de bancos de dados sobre investimentos públicos e políticas, bem como de transparência das ações governamentais, fragilizando o monitoramento de políticas públicas e de participação social.

Houve, portanto, uma opção deliberada pela execução da assistência social em uma determinada direção, expressa em: cortes de recursos para a área; fechamento de Centros de Referência de Assistência Social em todo o Brasil; criação de programas específicos (e pífios); destruição dos bancos de dados públicos de monitoramento e de controle social de políticas públicas; desrespeito à autonomia dos municípios; desqualificação da participação de organizações da sociedade civil.

Por outro lado, exacerbaram-se ações punitivistas e militarizadas no âmbito da segurança pública em territórios periféricos e de favelas, aprovou-se a liberação do acesso às armas de fogo por civis, além de outras ações deliberadas de ampla militarização do Estado em diferentes níveis. Essa atuação destrutiva do Estado, em um contexto de agravamento da crise capitalista – e tendo a crise sanitária como uma de suas expressões -, impactou imediatamente no crescimento substantivo de pessoas em situação de extrema pobreza, fragilizando-as, inclusive, em sua saúde e nas condições de higiene. É nesse período  que aumenta o número de pessoas em situação de rua nos grandes centros urbanos (Fiocruz, 2021), assim como de mortes de populações indígenas, especialmente de crianças por fome e contaminadas por Covid-19.

As atuais ações no campo da política de assistência social sequer atendem os mínimos requisitos de políticas públicas de combate à pobreza desenhados pelo Consenso de Washington e amplamente imposto pelo Banco Mundial aos países em desenvolvimento, a partir dos anos de 1990. Isto é, não ocorre retrocesso, na medida em que não voltamos no tempo e nem vivenciamos, em outros momentos, condições semelhantes às atuais. Mergulhamos, sem qualquer rede de proteção, em um abismo sem fundo.

Por fim, as ações de determinadas organizações não governamentais de defesa de direitos humanos no âmbito da política – como previsto pelo Artigo 3º da LOAS -, têm sido asfixiadas política e economicamente pelo próprio Estado brasileiro. Desde o corte de recursos, como a burocratização e a morosidade quanto às isenções e imunidades e outras formas de apoio tributário, até a deliberada perseguição, especialmente das que possuem conexões com movimentos sociais, fizeram com que as entidades buscassem entre si, com o apoio de organizações internacionais, estratégias capazes de conformar redes territoriais de solidariedade, apoio e mapeamento de dados como expressões de resistência pelo simples direito de existir.

Tatiana Dahmer Pereira é professora da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF e presidenta da FASE.