Maiana Maia e Pedro D' Andrea
24/01/2024 11:32

“Terra, planeta água” e “Brasil, país azul” são algumas imagens que reforçam como senso comum a ideia de que estamos envoltos em um contexto de fartura hídrica. Somos o país com a maior abundância de água doce do mundo. Temos em nosso território dois dos maiores aquíferos do planeta – o Guarani e o Sistema Aquífero Grande Amazônia –, e o maior rio do mundo em vazão, o Amazonas. Temos o Cerrado, a caixa-d’água brasileira, habitado em seu subterrâneo por três grandes aquíferos (o Guarani, o Bambuí e o Urucuia), responsáveis pelas nascentes da maioria dos rios cujas águas transbordam para abastecer nada mais, nada menos do que oito de nossas bacias hidrográficas. Temos ainda o Pantanal, maior área alagada do mundo, considerado Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera pela Unesco. Mesmo no Nordeste, somos reconhecidos internacionalmente pela potência do paradigma da convivência com o Semiárido por meio de práticas e tecnologias sociais que, aliadas aos saberes e aos valores culturais das comunidades sertanejas de agricultores familiares, mostram-se capazes de ampliar a adaptação e a resiliência da população, garantindo a soberania hídrica e alimentar mesmo em regiões onde os índices pluviométricos são reduzidos.

De fato, temos um patrimônio hídrico a zelar. Contudo, sobre nossas águas rondam múltiplas ameaças, e muitas delas turvam o debate público de tal forma que, ainda hoje, o cenário de colapso hídrico que vivenciamos de forma sistêmica é raramente nomeado como tal, sendo mais eventual ainda que sobre ele se dediquem explicações sérias ou se proponham mudanças radicais aptas a enfrentar a questão com a urgência que ela merece.

Levantamento recente do MapBiomas1 denunciou que o Brasil perdeu 15% de superfície de água desde o começo dos anos 1990. No Pantanal, os dados revelam a dramaticidade dessa tendência: em 1988, o total de seu campo alagado chegava a 5,8 milhões de hectares, ao passo em que, em 2020, a área alagada foi de 1,5 milhão de hectares, uma redução de 74% em 36 anos. Mais seco, o Pantanal está também mais suscetível ao fogo.

Considerado pela rota desenvolvimentista como zona de sacrifício para expansão do agronegócio, o ecogenocídio em curso no Cerrado projeta um cenário em que, se mantidas as atuais taxas de desmatamento, até 2050 teremos perdido 33,9% dos fluxos dos rios desse bioma,2 com efeitos que transbordam para muito além de suas fronteiras, pois dele saem as águas que perenizam os rios da margem direita da bacia hidrográfica amazônica (Araguaia/Tocantins, Xingu, Madeira e Tapajós) e para as bacias do São Francisco, do Paraná e do Prata, do Parnaíba, do Jequitinhonha e do Rio Doce.

No Semiárido, a situação também é emblemática. Transposição de bacias hidrográficas inteiras e perímetros irrigados cortam o Sertão, não para levar água para quem não tem, mas para irrigar a expansão do agronegócio da fruticultura irrigada e dos projetos de mineração na região. O Rio São Francisco, exemplo máximo desse paradigma de infraestrutura hídrica, agoniza. Estudo feito em 2013 pela extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência indicava que poderia haver perda de até 65% de sua vazão até 2040, tendência que vem se confirmando pelos registros do MapBiomas, segundo os quais a Bacia do São Francisco perdeu 50% de suas águas nas últimas três décadas. Os milhões de toneladas de sedimentos que o rio recebe anualmente, em boa parte resultantes da exposição do solo pelo desmatamento, que assoreia sua calha principal e a de seus afluentes, contribuem para a redução da vazão do rio e a formação de ilhas e depósitos de areia. Com restrições à navegação, o processo de degradação do rio vem se aprofundando de forma acelerada, registrando-se ainda o efeito negativo da crescente salinização de suas águas doces.

(Foto: REUTERS/Bruno Kelly) 

Mesmo a Amazônia, com seus rios de horizontes oceânicos, se vê ameaçada pela lógica que barra os rios para convertê-los em reservatórios para geração de eletricidade, entre outras destinações hidrointensivas. Exemplo trágico da devastação que recai sobre a região, o Rio Xingu tem sido sufocado pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que desde 2015 desvia 70% das águas da Volta Grande do Xingu para movimentar suas turbinas. Nessa região, as vazões do rio são autoritariamente controladas pelo arbítrio da concessionária e de suas necessidades energéticas, sem pulso de inundação suficiente que garanta uma base mínima para a reprodução do complexo ciclo hidrológico do rio e das vidas que habitam suas águas e suas margens.

Em todos os cantos e biomas de nosso país, nossos rios têm tido sua vazão reduzida a ponto de muitos estarem desaparecendo por completo. No que pode ser descrito como um verdadeiro obituário das águas, a morte de nascentes cresce a ritmo acelerado. As águas subterrâneas dos aquíferos também estão sendo ano a ano rebaixadas, pois sua capacidade de recarga não vem dando conta do ritmo intensivo de extração. Aumenta o número de municípios que enfrentam quadros severos de racionamento ou escassez de água.

Somado à espoliação intensiva dos recursos hídricos, o quadro é também alarmante do ponto de vista da contaminação das águas por agrotóxicos, metais pesados e outros poluentes – para os quais não há promessa tecnológica de “descontaminação”. Os territórios e modos de vida dos povos indígenas e quilombolas, das comunidades tradicionais e de agricultores familiares são postos em xeque. A saúde e a segurança alimentar e hídrica da população como um todo estão ameaçadas.

O caminho das águas, quando percorrido com uma escuta atenta ao lamento da morte dos rios, evidencia de forma inequívoca quão rasa é a abordagem hegemônica que situa a crise hídrica como uma série de “eventos” desconexos, esporádicos e como que exclusivamente ligados à falta de água ou a seu excesso, circunscritos em sua apresentação como se fossem problemas de ordem meramente natural. Se tudo supostamente se resume a eventuais contextos de escassez hídrica por falta de chuvas ou enchentes por conta de seu excesso, resta invisibilizado o contexto das disputas por água que se aprofundam em nosso país.

Nessa linha, mesmo a questão climática é abordada de forma despolitizada, como se as alterações nos regimes de chuva, para mais ou para menos a depender da região, também fossem “naturais” – e não efeitos decorrentes da política econômica desenvolvimentista que governa o planeta. Consequentemente, enquanto a própria natureza é tida como “vilã”, os maiores responsáveis pelo consumo intensivo das águas e pelo comprometimento de seus usos múltiplos (os mesmos que promovem as elevadas taxas de desmatamento e de emissões de CO2) seguem impunes.

A força da captura corporativa das águas é tão grande em nosso país que, mesmo quando explode um cenário drástico – como a seca recém-testemunhada dos rios Negro e Solimões ou as crises de racionamento que assolam de forma cada vez mais frequente grandes capitais –, os setores do agronegócio, da mineração e da infraestrutura energética e de logística a eles associada (extremamente intensivos em uso de água durante suas operações de produção, extração e exportação de commodities) nem sequer são constrangidos na esfera pública a se responsabilizarem pelo papel que cumprem na captura, privatização, contaminação e devastação dos recursos hídricos.

Dados publicados pela Fase em seu relatório “Ralos e gargalos das outorgas de água no Brasil” dimensionam as cercas que o debate centrado nas secas costuma omitir: apenas o agronegócio irrigado consome 247 quintilhões de litros por hora, extraídos de nossas águas superficiais e subterrâneas. São 99 trilhões de piscinas olímpicas por hora irrigando os monocultivos do agro.

A vazão outorgada ao setor mineral no Brasil, muito mais modesta em comparação, mas ainda de uma grandiosidade surpreendente, é de 1,8 bilhão de litros de água por hora, ou 15,77 trilhões de litros por ano, montante que poderia abastecer 284 milhões de brasileiros. Somos no Brasil atualmente 203 milhões de habitantes, dos quais 35 milhões não têm acesso a água potável.

Nesse contexto, o impacto real das mudanças climáticas, do aquecimento global e das alterações no regime de chuvas sobre a vida no planeta deveria ser reconhecido como justificativa para intervenções drásticas que de fato atuassem no sentido da transformação para a promoção da justiça ambiental e proteção de nossas águas. Entretanto, ao revés, no que diz respeito à crise hídrica, o clima historicamente vem servindo de cortina de fumaça para que seja mantida sob o tapete a questão estruturante acerca da concentração do uso das terras e das águas em nosso país.

A forma como as crises hídricas costumam ser tratadas demonstra explicitamente essa dinâmica, por meio da qual o negacionismo climático que orientava as políticas antiambientalistas de até pouco tempo atrás vai cedendo espaço à supremacia do clima como um debate enredado em si mesmo. Como se não houvesse atores sociais implicados, o clima é convertido em um dispositivo de negacionismo das injustiças ambientais que operam a própria crise climática, hídrica, ambiental e humanitária que vivemos.

Ao não enunciarmos e muito menos enfrentarmos a fonte do problema, nos afastamos das condições para superá-lo e mergulhamos em um terreno fértil para a propaganda de falsas soluções. A crise hídrica, então, quando não é compreendida nos marcos de uma crise de injustiça ambiental, é acompanhada por uma série de respostas de eficácia questionável, a exemplo das soluções meramente individuais, das medidas de racionamento de abastecimento urbano marcadas por dinâmicas que prejudicam de forma desigual os bairros periféricos e as populações historicamente vulnerabilizadas, ou pior: por uma série de respostas de mercado capazes de aprofundar ainda mais o problema, a exemplo do crescente fortalecimento da arquitetura de privatização das águas em nosso país.

As políticas atuais de gestão das águas não estão sendo capazes de oferecer respostas satisfatórias para barrar esse cenário de colapso hídrico e de captura e devastação das águas. Muito pelo contrário, continuam a operar de forma permissiva, sob sombras e silêncios de estruturas com pouca ou nenhuma participação social, destituídas de sistema técnico e informacional apto a atestar o real patamar de consumo e de disponibilidade hídrica em território nacional – destituídas, inclusive, da intencionalidade de fazê-lo.

É urgente, entretanto, que sejam enfrentados esses sérios déficits democráticos da Política Nacional de Recursos Hídricos. A exploração devastadora e privatizante das águas precisa encontrar limites, alguns dos quais até previstos na letra da lei, mas não postos em prática, a exemplo do artigo 15 da Lei de Águas, que autoriza a suspensão de outorgas de água concedidas a empreendimentos hidrointensivos em situações nas quais haja necessidade premente de água para atender a situações de calamidade (inclusive as decorrentes de condições climáticas adversas), para prevenir ou reverter grave degradação ambiental ou ainda para atender a usos prioritários, de interesse coletivo. Outros limites e alternativas vêm sendo criativamente forjados pela gramática das lutas sociais em defesa das águas.

Para que possamos sonhar um futuro menos árido, é preciso escutá-las.

 

Publicado originalmente pelo site Le Monde Diplomatique Brasil

*Assessora da FASE e Geógrafo