02/01/2017 14:06
Diana Aguiar¹
O crime da Samarco/Vale/BHP na bacia do Rio Doce, que teve seu estopim no rompimento da bacia de rejeitos de mineração em Mariana (MG) em 5 de novembro de 2015, sem lugar a dúvidas, se somou ao rol dos maiores crimes ambientais dos últimos 50 anos, juntando-se aos da Chevron na Amazônia equatoriana, da Shell no território Ogoni, na Nigéria, dentre outros. E, assim como no caso desses outros crimes emblemáticos causados pelas operações de transnacionais, a resolução do caos gerado e a reparação ao meio ambiente e a necessidade de acesso à justiça para os povos atingidos estão longe de encontrar desfechos razoavelmente dignos.
Após desastres como estes, onde vidas e territórios são devastados, a reparação plena não é um horizonte possível. Em todos esses casos, são gritantes os maus-tratos às vítimas, a impunidade das empresas e o não estabelecimento de marcos que visem a evitar a repetição de crimes similares. Se o tempo não dá marcha a ré, olhar no retrovisor de forma detida e cuidadosa deveria garantir o papel da memória em inspirar o sentido futuro dos sistemas de Justiça.
Tendo em vista esta tarefa, e diante da falência dos sistemas de Justiça de diversos países de fazer frente aos crimes e violações em seus territórios, organizações comunitárias, movimentos sociais e articulações de atingidas e atingidos têm documentado casos para sistematizar o aprendizado das resistências. Ainda que a maior parte dos casos permaneça invisibilizada e seja constantemente naturalizada, a experiência mostra similaridades aterradoras no modus operandi de grandes empresas, dos Estados e da Justiça.
Durante três audiências (Viena em 2006, Lima em 2008 e Madrid em 2010), o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) ouviu 48 casos de violações de direitos humanos e dos povos, perpetrados por transnacionais na América Latina. O veredito final aponta para: o caráter sistemático destas violações; a repetição de padrões das operações violadoras de direitos; a persistência da impunidade; a tolerância e cumplicidade dos Estados sede das empresas investidoras e dos Estados receptores dos investimentos; o papel das estratégias de responsabilidade social das empresas em dotá-las de uma fachada de legitimidade; e a interdependência e o tráfico de influência entre os setores público e privado, que geram uma aliança que tem se traduzido, ao longo dos anos, em uma verdadeira arquitetura institucional da impunidade.
Esta arquitetura da impunidade se assenta não somente sobre a assimetria de poder entre as grandes empresas e os povos que resistem e sofrem as espoliações causadas por megaprojetos de investimento, mas também sobre a assimetria de poder entre essas empresas e muitos Estados receptores de investimentos². Uma arquitetura que possibilita e favorece a injustiça sistêmica, a continuidade dos padrões observados nos casos apresentados e a certeza de impunidade por parte das empresas.
Nesse contexto, a judicialização frequente dos conflitos ambientais, ao invés de demonstrar a pujança de um sistema de Justiça, é antes um sintoma de que as violações de direitos são cada vez mais inerentes à atuação das empresas nos territórios e de que o Estado, em suas diferentes instâncias, tem sido frequentemente cúmplice – por omissão ou ação – dessas violações.
Não à toa, a luta por justiça dos 30 mil atingidos e atingidas pela Chevron na Amazônia equatoriana se tornou uma referência para movimentos sociais de justiça ambiental e de direitos humanos. Enfrentar uma batalha jurídica contra uma gigante petroleira é uma tarefa hercúlea. Mais ainda, fazê-lo ao longo de duas décadas mantendo a coesão comunitária e a firmeza de propósito, mesmo com todas as perseguições e tentativas de difamação por parte da empresa, é algo digno da admiração que a União de Atingidos e Atingidas pela Petroleira Texaco (UDAPT) tem despertado ao redor do mundo. Apesar deste ser o caso mais grave e emblemático da atuação da Chevron, a resistência à petroleira já demonstrou que suas características expressam um modo de operar da empresa³.
Ao longo de quase 30 anos de operação no Equador, a Texaco (atual Chevron) utilizou tecnologia então obsoleta para a extração de petróleo e tratamento dos resíduos, derramando 60 bilhões de litros de rejeitos tóxicos de petróleo em cerca de 1000 “piscinas”, que contaminaram um total de 480 mil hectares de floresta amazônica. A UDAPT, depois de um litígio iniciado nos anos 1990 em cortes estadunidenses e depois equatorianas, obteve uma decisão favorável às vítimas, que determinou o pagamento pela empresa de 9,5 bilhões de dólares a um fundo de reparação ambiental a ser gerido pela população atingida. Desde então, a empresa tem dedicado uma soma enorme de recursos em advogados, lobby, propaganda e perseguições para evitar pagar a reparação. Como não existem mais ativos da Chevron no Equador, a UDAPT decidiu buscar a homologação da sentença em outros países.
Um destes países é o Brasil. O caso encontra-se em avaliação no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O sistema de Justiça brasileiro tem a oportunidade histórica de fazer valer a justiça para os 30 mil atingidos e atingidas da Amazônia e abrir um importante precedente para as vítimas de crimes socioambientais, que buscam um amparo legal para as violações que sofreram. Ao participar do Tribunal dos Direitos da Natureza durante a COP 21 em Paris, em dezembro de 2015, Pablo Fajardo, advogado da UDAPT, ele mesmo originário da região atingida, fez comovida referência ao crime ambiental da Samarco/Vale/BHP na bacia do Rio Doce no Brasil, ocorrido um mês antes da realização do evento. Pablo e a UDAPT, além de serem importantes referências na luta global por justiça diante da impunidade corporativa, têm atuado em solidariedade com outras comunidades atingidas que enfrentam crimes ambientais e violações cometidas pelas empresas.
No aniversário de um ano do crime socioambiental da Samarco/Vale/BHP, Robinson Yumbo, presidente da nacionalidade indígena Cofan, uma das cinco nacionalidades atingidas pela Chevron na Amazônia equatoriana, compôs a delegação da Articulação Internacional de Atingidos e Atingidas pela Vale em uma Marcha e Encontro dos Atingidos que percorreu toda a Bacia do Rio Doce, de Regência (ES) a Mariana (MG), em solidariedade aos atingidos pela Samarco/Vale/BHP. Essa atividade, assim como outras, têm demonstrado que o desmantelamento da arquitetura da impunidade que favorece as empresas é uma luta que une a todas as vítimas de violações e crimes corporativos e aos povos resistindo a megaprojetos espoliadores em todo o planeta. É embebido deste espírito que a UDAPT – juntamente com a FASE e mais de 200 movimentos, redes e organizações de todo o mundo – compõem o esforço coletivo da Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo e Parar a Impunidade.
[1] Edição de artigo de Diana Aguiar, integrante do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE. O texto original foi publicado pela Fundação Rosa Luxemburgo Brasil no boletim Ponto de Debate junto a outro elaborado por Pablo Fajardo, da UDAPT.
[2] Das 100 maiores economias do planeta, 59 são países e 41 são empresas transnacionais. Diversas empresas são maiores do que a economia de países, que muitas vezes escolhem flexibilizar legislações ambientais, trabalhistas e sociais e mecanismos de proteção de suas populações em nome da atração de investimentos. Fonte: Planeta Tierra: un Mundo Corporativo, em Transnational Institute: Estado del Poder, 2012.
[3] A Planet in Danger: the World of Chevron (EjaAtlas).