28/06/2022 09:28
*Franciléia Paula de Castro
O Brasil vive uma crise civilizatória e fracassa na garantia da saúde da população e do meio ambiente, sobretudo em um contexto crítico com a pandemia do coronavírus, que já ceifou 658 mil vidas de brasileiros e brasileiras. Caminhamos na contramão do mundo. Enquanto muitos países buscam soluções para conter mudanças climáticas e investem em modelos de produção e consumo saudáveis e sustentáveis, o Congresso brasileiro opta pela manutenção de sistemas agrícolas quimicamente dependentes e tóxicos à saúde humana e do meio ambiente. Um marco deste retrocesso foi o que presenciamos em fevereiro deste ano, 2022, durante a aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei, PL 6299/2022, denominado pela sociedade de PL do Veneno.
Pautado na mudança do marco regulatório dos agrotóxicos no país, o projeto de lei demonstra o alto grau de dependência do agronegócio brasileiro e a forte influência das empresas do setor químico de agrotóxicos no legislativo brasileiro. Alterar o marco regulatório dos agrotóxicos, flexibilizando a legislação atende basicamente aos interesses econômicos de um mercado agrícola que fatura bilhões por ano com a venda destes produtos. Observa-se uma política de dois pesos e duas medidas nos mercados globais. Os fabricantes de agrotóxicos produzem numerosas substâncias que já não são mais permitidas nos seus países de origem, na União Europeia, exportando-as para países do Sul global, nos quais as regulamentações para o uso de agrotóxicos são bem mais permissivas, como é caso do Brasil (LUIG. et.al, 2020).
Segundo o relatório PESTIZIDATLAS 2022 (CHEMNITZ, et.al 2022), as quatro principais multinacionais do setor Syngenta (Suíça/China), Bayer e BASF (Alemanha) e a Corteva (EUA), só em 2020 atingiram um volume de negócios conjunto de 31 bilhões de euros. E estima-se que nos últimos anos, as vendas globais de agrotóxicos cresceram em média 4% ao ano, como aponta o documento. De autoria de Blairo Maggi, na época senador e um dos maiores produtores de soja no Brasil, o PL do Veneno tramita há 20 anos no congresso, agregando várias medidas que visam alterar a Lei atual de agrotóxicos (Lei n7.802/89), permitindo a ampliação do uso dessas substâncias no país, que já é um dos maiores consumidores do mundo.
Segundo o monitoramento de dados da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, atualmente no Brasil são comercializados 3.720 agrotóxicos e nos últimos quatro anos o governo já liberou 1.654 novos registros, o que demonstra uma avalanche nas liberações dessas substâncias nunca antes registrada no país e uma política de permissividade. Situação que pode ser agravada com a aprovação do PL do Veneno, considerando as principais mudanças que este propõe como a alteração do nome agrotóxico, que passa a se chamar “pesticida”, demonstrando uma tentativa de encobrir a nocividade destas substâncias comprovada cientificamente.
Transfere o poder decisório de aprovação de um novo agrotóxico para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento –MAPA, tornando praticamente consultivos órgãos fundamentais no processo de avaliação e aprovação, como o Ministério do Meio Ambiente e a Anvisa, responsáveis pelas análises dos impactos desta substância na saúde e meio ambiente; o que não acontece na lei atual onde as competências e responsabilidades é tripartite entre estes órgãos. O PL do Veneno diverge da lei atual e permite o registro de agrotóxicos com potencial cancerígeno, proibindo apenas substâncias que possam trazer “riscos inaceitáveis” à população, sem definir o que é “aceitável”, tornando essa avaliação altamente subjetiva, colocando ainda mais em risco a saúde da população.
Esse conjunto de medidas comprovam que o pacote do veneno não é composto apenas de agrotóxicos, mas de interesses econômicos da indústria química e do agronegócio brasileiro, não se tratando de uma demanda da agricultura, mas sim de grupos econômicos que quem lucrar a custo da contaminação humana e do meio ambiente. Contaminação comprovadamente fundamentada em diversas pesquisas realizadas no Brasil há décadas, e que demonstram a exposição ampliada e contaminação por agrotóxicos nas águas de consumo humano de acordo com os dados do Sistema de Monitoramento da Qualidade da água – SISAGUA do Ministério da Saúde, dos alimentos demonstrados nos relatórios anuais do Programa de Análise de Resíduos de agrotóxicos em alimentos – PARA/ANVISA, nas águas da chuva, rios, ar e leite materno, animais entre outros (PIGNATI et al, 2021).
Foram esses dados que levaram centenas de organizações da sociedade civil e instituições de pesquisas em saúde e ambiente a manifestarem publicamente contrárias a aprovação do PL do Veneno. Entre elas a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto Nacional do Câncer, a própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária e o IBAMA, o Conselho Nacional de Saúde e também a ABA que destacou em nota pública:
A alteração/revogação da Lei 7.802/1989 pelo substitutivo do PL do Veneno (Projeto de Lei 6299, apresentado em 13 de março de 2002), que objetiva essencialmente garantir maior ganho econômico para as corporações do agronegócio, atenta contra a natureza, viola os direitos dos povos originários e das populações e comunidades tradicionais, bem como de toda a população (rural e urbana), potencializa os processos de contaminação dos rios, lagos e mares, bem como intensifica a pulverização aérea, comprometendo assim a produção e consumo de alimentos saudáveis, impondo riscos inaceitáveis para a saúde e o bem viver da sociedade brasileira (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE AGROECOLOGIA, 2018).
E mesmo com todas as manifestações contrárias, em regime de “prioridade” foi votado na câmara dos deputados, com 301 votos favoráveis e 150 contrários. Aprovado no plenário da câmara dos deputados em 09 de fevereiro de 2022, o PL do Veneno segue para o Senado Federal onde deverá ser apreciado em subcomissões antes de sua votação em plenário.
É inconstitucional o PL do Veneno, pois fere diretamente direitos humanos e fundamentais como direito humano à saúde e a alimentação saudável, e o próprio ato de votação em regime de prioridade no congresso desta matéria. É lamentável que a prioridade do congresso seja defender interesses de indústrias de veneno. Sobretudo em um ano eleitoral, em plena pandemia, crise econômica, onde 116,8 milhões de brasileiros não possuem acesso pleno e permanente a alimentos e se encontram em insegurança alimentar e nutricional e fome (REDE PENSSAN, 2021). Por outro lado, organizações sociais, movimentos ambientais e agroecológicos exigem a aprovação imediata do projeto de lei 6670/2016 que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA).
E a defendem como marco regulatório de agrotóxicos para o Brasil, pois esta sim é resultado de uma ampla participação da sociedade civil nos últimos 10 anos e reúne um conjunto de iniciativas e medidas concretas e graduais para reduzir o uso de agrotóxicos, além de incentivar a produção agroecológica de agricultores familiares, ampliando a produção e o consumo de alimentos que promovam saúde a população e ao meio ambiente.
Texto publicado originalmente na Revista Brasileira de Agroecologia (ABA).
*Franciléia Paula de Castro é educadora da FASE em Mato Grosso, vice regional da ABA no Centro Oeste, integrante da Coordenação Nacional de Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e Mestra em Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ